18 Julho 2016
“A crítica ao Estado deve estar pautada por quem se apropria de suas ações. Nos últimos dez anos o governo federal transferiu aproximadamente 45% do PIB para o capital financeiro. Com esses recursos seria possível custear o Programa Bolsa Família por mais de 100 anos, ou, ainda custear a educação por mais de 35 anos”, adverte o economista.
Imagem: www.rb.am.br |
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Goularti avalia como se deu a intervenção do Estado na economia brasileira durante os governos Lula e Dilma e frisa que houve uma “mescla de ortodoxia e heterodoxia”, porque “ora a política foi conservadora, ora progressista”, mas o “capital foi o maior ganhador do sistema tributário construído nos governos FHC e Lula”.
Em oposição à defesa da intervenção estatal na economia, Goularti faz críticas à escola austríaca de economia, porque, segundo ele, o “resultado do Estado mínimo e do capitalismo darwinista” é uma “sociedade com 2,2 bilhões de pessoas vivendo em situação de pobreza, outros 800 milhões estão em risco de pobreza, e, além disso, cerca de 1,5 bilhão de trabalhadores têm postos de trabalho informais ou precários”.
Juliano Giassi Goularti é mestre em Economia e doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as principais características da escola austríaca de economia? A partir de quais premissas essa escola sustenta sua tese acerca do desenvolvimento da economia?
Foto: brasildebate.com.br
Juliano Giassi Goularti - A escola austríaca é uma escola de pensamento econômico. Menger, Böhm-Bawerk e Mises são os pais fundadores. A escola possui ainda inúmeros outros economistas, dentre eles Hayek, ganhador do Nobel de economia em 1974. No Brasil arriscaria dizer que o economista Roberto Campos foi o mais entusiasta do pensamento da escola. Quanto à característica principal atribuo à crítica que a escola faz às teorias econômicas que defendem a intervenção estatal na economia, isto é, a coordenação do Estado enquanto forma superior de organização capitalista, como por exemplo, as políticas keynesianas que colocam o Estado como “maestro da orquestra”. Outra característica diria que é a ação individual, isto é, a ação humana. Com destaque para Mises, a ação humana é “a vontade posta em movimento”, que em síntese quer dizer que a busca por satisfação das necessidades do homem o coloca em movimento e isso movimenta o conjunto da sociedade e da economia.
No que confere à tese da escola para o desenvolvimento da economia, diria que a crença é sustentada por uma tríade liberal conservadora: i) Mão invisível; ii) Estado mínimo; e iii) Livre mercado. A reunião dessas três premissas é uma espécie de camisa de força a que a escola se prende na defesa do desenvolvimento. A escola parte da crença na superioridade do liberalismo em relação ao intervencionismo e ao próprio socialismo. O socialismo é uma utopia, mas ninguém pode impedir a liberdade de as pessoas sonharem. Nesse contexto, no entendimento da escola o Estado enquanto “maestro da orquestra”, como diria Keynes, é um agente opressor que inibe as liberdades individuais de escolha. O ponto é que essa tríade, ao colocar para escanteio o Estado, significa, no curtíssimo prazo, a anarquia do capitalismo – ainda mais nos tempos atuais de crise.
É preciso entender o regime do capital enquanto uma contradição viva em processo. Para tanto, pensando num Estado mínimo, o qual se negaria a intervir de fato nas relações econômicas, o capitalismo ainda estaria cambaleando de suas anarquias. Exemplo disso são as crises de 1929 e 2007. Tanto que a revolução keynesiana pós-1930 levou ao declínio da escola, ressurgindo somente nos anos 1970 com a crise do regime de acumulação fordista com Kirzner com o conceito do homo economicus.
Mas o ponto central é que o liberalismo econômico da escola renega a entender o quão fundamental é o Estado, tanto para expandir a base produtiva, evitar a tendência a cair da taxa de lucro, abrir novas frentes para expansão capitalista e promover política social, uma vez que o darwinismo social não faz política social. “O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado” como nos ensinou Braudel.
IHU On-Line - Quais são os principais expoentes da escola austríaca? Essa escola tem sido estudada no Brasil? Em que instituições de economia há uma identificação com as teorias dessa escola?
Juliano Giassi Goularti - Como dito, os principais expoentes são os austríacos Menger, Böhm-Bawerk, Mises e Hayek. No Brasil, penso que seu precursor foi Roberto Campos, um ex-keynesiano. Mas a difusão do pensamento da escola no Brasil ganhou força na última década, em particular com a crise financeira internacional de 2007. Quanto à instituição principal, acredito que o Instituto Ludwig von Mises Brasil é o principal propagador dos ideários austríacos, assim como o curso de pós-graduação em escola austríaca com sede em São Paulo capital. Tenho acompanhado algumas publicações em forma de artigo no site do Instituto, mas penso que carecem de consistência teórica, estão descolados do mundo prático e apresentam uma crítica vulgar e desqualificada aos economistas de formação crítica. É preciso entender a lei geral da acumulação capitalista enquanto um processo vivo em movimento que está em permanente contradição. Isso falta à escola.
"Se os agentes que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável, são racionais, por que não previram a crise de 2007?" |
IHU On-Line - Que visão antropológica é sustentada pela escola austríaca em sua tese econômica e de que modo tal visão é rebatida por defensores de escolas opostas?
Juliano Giassi Goularti - Os estudos da escola, como também sua interpretação de mundo e sociedade, trabalham com a ideia do indivíduo, e nasceram com a publicação do livro de Menger Princípios de Economia Política, em 1871 – importante obra que integra os clássicos da economia. Neste particular, no campo da política, a postura de Menger e depois de seus sucessores será conhecida principalmente pela sua postura antissocialista ao longo do século XX. Se por um lado constroem uma narrativa frágil, fragmentada e pobre do socialismo e do marxismo, por outro, enaltecem o capitalismo sem apresentar suas contradições.
Compartilhando sua origem com a tradição neoclássica, propondo uma teoria econômica baseada no subjetivismo, no individualismo metodológico, na liberdade econômica e, queira ou não, na abordagem evolucionista, os austríacos procuram se diferenciar em pontos específicos dos neoclássicos. Aqui menciono um ponto: enquanto para os austríacos o mercado que não se encontra em equilíbrio (oferta = demanda; porque cada venda é compra e vice-versa), mas sim em movimento que caminha rumo ao equilíbrio, ou não, para os neoclássicos é a lei de Say e assunto encerrado. O fato mais curioso que chama atenção é que a escola não é enquadrada dentro do mainstream. Friedman deu um chega para lá nos austríacos dizendo que “não existe economia austríaca, mas apenas economia boa e economia ruim”.
Partindo do ressurgimento da escola austríaca nos anos 1970 com Lachmann e Kirzner, uma tese econômica a qual os austríacos se prendem é a ideia do homo economicus, isto é, a ação do homem enquanto agente econômico é sempre racional e é capaz de prever o futuro como também prover a eficiência dos negócios. É o típico comportamento maximizador que enfatiza a ação proposital e certeira dos agentes. Em outros termos, o conhecimento do futuro trata-se como algo passivo de cálculo. Se os agentes que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável, são racionais, por que não previram a crise de 2007? Por que quando a rainha Elizabeth II ousou perguntar aos acadêmicos e professores da London School of Economics por que não se anteciparam da crise, eles se calaram?
Partindo de uma leitura crítica pós-keynesiana, que apagou as luzes dos austríacos com sua revolução nos anos 1930 que pariu o Welfare State até a retomada liberal dos anos 1970, diria que os austríacos “veem árvores, mas não veem florestas”. O futuro é incerto como também não é passivo de cálculo probabilístico. Por si só a desenvoltura de Keynes quanto à incerteza extrema quanto ao futuro e ao que ele possa trazer, desmorona o conceito do agente racional da escola. Quanto ao quesito do equilíbrio geral de Say, ou mesmo parcial de Marshall ou rumo ao equilíbrio ou não dos austríacos, o certo é que a economia enquanto processo contraditório, não tem limites, sendo o limite do capital o próprio capital. Como já advertiu a professora Maria da Conceição Tavares, o equilíbrio no capitalismo é cada vez mais regulável por relações de poder, e não pela tautologia da oferta = demanda, ou equilíbrio parcial ou mesmo rumo ou não ao equilíbrio.
Os austríacos não entenderam que o regime do capital enquanto uma contradição viva é uma contradição em processo que tem um duplo caráter: um progressivo e outro antagônico, onde ambos estão ligadas à postura do Estado. Por isso interpretam mal o desenvolvimento do capitalismo e sua dinâmica contemporânea.
IHU On-Line - Quais são os argumentos econômicos contrários à escola austríaca de economia e de que modo eles são comprovados?
Juliano Giassi Goularti - Dentre as principais teorias críticas à escola austríaca, diria que estão: Marx, Keynes e Schumpeter. Essa trinca revolucionou o modo de pensar a economia política. Marx construiu a crítica à economia política, Keynes renegou sua formação clássica, desconstruindo na Teoria Geral os postulados da economia neoclássica e Schumpeter mostrou em sua teoria que os ciclos econômicos assim com o desenvolvimento não cabem no quadro matemático e estão interligados com o processo de destruição criativa. Todos esses autores apresentam interpretação, diria que, revolucionárias do processo de desenvolvimento capitalista. Renegam os princípios clássicos e neoclássicos que não se aplicam nem em caso específico muito menos em caso geral. No seu tempo, com destaque para Keynes, seu debate se deu muito mais com os postulados neoclássicos do que com os austríacos. Mas tem destaque na história o acalorado debate entre Keynes e Hayek nos anos 1930.
Keynes x Hayek
Nesse debate, o qual virou um rap da batalha Keynes x Hayek, a teoria de Keynes acabou prevalecendo pela sua aplicabilidade e capacidade de alavancar com mais impulso da dinâmica da acumulação capitalista. O mundo estava em crise, e a teoria de Keynes, através da intervenção do Estado como “maestro da orquestra”, era a única que seria capaz de gerar emprego e renda para a massa de desempregados como também de salvar o capitalismo – aqui convém citar metáfora das garrafas, onde no período matutino um grupo de trabalhadores contratados pelo Estado abriria valas, no vespertino outro grupo empilhava as garrafas dentro da vala e por último, no período noturno, outro grupo de trabalhadores as enterravam. No dia seguinte a rotina era a mesma. Assim o Estado mantinha o nível de emprego e a economia aquecida.
Nos anos 1930 o laissez-faire mostrava-se incapacitado de evitar grandes flutuações no emprego. O capitalismo sob o signo do Estado mínimo produziu sua própria anarquia. A desregulamentação da economia e a preferência pela liquidez levou a economia para o buraco. Neste ponto, partindo dos marcos teórico da heterodoxia econômica, é o gasto (público ou privado) na esfera produtiva que vai determinar o volume de emprego e o nível de renda da comunidade. Como diz Keynes, os proprietários de riqueza preferindo a “Lua ao invés de Queijos Verdes” pouco contribuem com a geração de emprego e renda. Conectado com o mundo real, Keynes arguia que o impulso de que necessita a economia para manter a atividade econômica está na política de gastos produtivos.
Quando Keynes publicou a Teoria Geral, teve como preocupação central o emprego, pois estava olhando para os estragos da crise de 1929. Com maestria Keynes soube captar o momento. Por isso sua teoria apresentou praticidade e foi revolucionária. Era preciso uma profunda mudança, a teoria keynesiana soube dar essa resposta, ao contrário dos austríacos.
Já no contexto da atualidade, a política neoliberal sustentada pela doutrina do Estado mínimo recebeu críticas do próprio Fundo Monetário Internacional. O Fundo disse que a abordagem tradicional para ajudar os países a reconstruir suas economias através de corte de gastos do governo, privatização, livre comércio e abertura de capital podem ter custos "significativos" em termos de maior desigualdade. Em vez de gerar crescimento, aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura. As políticas de austeridade, que frequentemente reduzem o tamanho do Estado, aprofundam o desemprego. Não por menos que mundo afora, economistas ortodoxos relativamente sérios estão reavaliando suas teses e rediscutindo o papel do Estado como elemento indutor e regulador do processo econômico.
"O capitalismo darwinista não faz política social, e sim concentra renda e poder à custa da miserabilidade social do conjunto da coletividade" |
IHU On-Line - Por que Estado mínimo é sinônimo de “oposição às políticas de direitos e garantias sociais”, como você argumenta no artigo?
Juliano Giassi Goularti - Primeiro de tudo, o capitalismo darwinista não faz política social, quem faz política social é o Estado. Se hoje temos direitos trabalhistas, universidades e previdência públicas, SUS, dentre outros direitos sociais e serviços públicos, é porque teve a intervenção do Estado, e não do capital privado. Isto porque a essência elementar do capital privado é o lucro. Sendo uma atividade de alto interesse social, mas que tem lucro zero ou mesmo é deficitária, o capital renega. E renegando, renega o conjunto da coletividade. Por isso a importância fundamental do Estado. Portanto é óbvio que, se fôssemos submeter a economia política ao modelo de Estado mínimo privatista, não haveria tais direitos sociais e os serviços seriam privados, o que privaria a ampla e esmagadora maioria da sociedade.
Neste sentido categórico, o Estado mínimo nos leva a parafrasear Tucídides: “os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”. Poderíamos também comparar o Estado mínimo com a pintura a óleo de Francisco de Goya: “Saturno devora seu próprio filho”. Eu diria que como resultado do Estado mínimo e do capitalismo darwinista tem-se hoje uma sociedade com 2,2 bilhões de pessoas vivendo em situação de pobreza, outros 800 milhões estão em risco de pobreza, e, além disso, cerca de 1,5 bilhão de trabalhadores têm postos de trabalho informais ou precários; é a história da barbárie. É preciso mais Estado para minimamente reverter essa situação gestada pelo darwinismo social capitalista.
Por isso reafirmo que o capitalismo darwinista não faz política social, e sim concentra renda e poder à custa da miserabilidade social do conjunto da coletividade.
IHU On-Line - Quando se trata de defender a intervenção estatal na economia, como tal intervenção deve ocorrer? Sobre quais aspectos da vida da sociedade o Estado tem que ter um peso maior?
Juliano Giassi Goularti - A intervenção deve ocorrer para corrigir as contradições do capitalismo. Corrigir suas negações, sua renúncia em promover o Estado de Bem-Estar Social. Por exemplo, no Brasil uma das marcas da elevada concentração de renda e das desigualdades sociais é o caráter regressivo da carga tributária. O sistema tributário brasileiro tem sido um instrumento a favor da concentração de renda, agravando o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando o das classes mais ricas. Quando se agrega a tributação incidente sobre o consumo com aquelas imputadas sobre a renda dos trabalhadores, fica revelado que o Estado brasileiro é financiado pelos trabalhadores assalariados que são responsáveis por 65% das receitas arrecadadas pelo setor público.
Os países centrais do pós-guerra privilegiaram a redistribuição da renda gerada por meio dos fundos públicos, com tributação sobre os mais ricos e transferências dos recursos dos fundos para os mais pobres. O Welfare State não tratou apenas de disponibilizar serviços sociais e garantir renda aos pobres, mas tratou principalmente de retirar das forças de mercado o monopólio da expansão econômica e da gestão sobre a força de trabalho. Pela primeira vez, os ricos passaram a pagar impostos, especialmente com o mecanismo da progressividade sobre a renda e patrimônio, assim como a população pauperizada passou a ser beneficiada pelo acesso aos serviços públicos básicos - educação, saúde, transporte e moradia.
Consolidou-se uma nova estrutura de redistribuição da renda, que veio a se sobrepor à existente, em que os ricos passaram a ser tributados consideravelmente (impostos sobre a renda, patrimônio e herança); foi possível formar fundos públicos capazes de financiar a transferência de renda para a população de menor rendimento, permitindo reduzir a pobreza, o desemprego e a desigualdade social no centro do capitalismo mundial. Este não é o caso do Brasil. O orçamento público das três instâncias de governo é financiado pelos pobres via impostos sobre o salário e por meio de tributos indiretos, sendo apropriado pelos mais ricos, via transferência de recursos para o mercado financeiro e acumulação de capital.
Por isso a importância e o peso da intervenção do Estado na política de redistribuição de renda pela tributação, como já nos diz Piketty, que sugere a tributação de grandes fortunas como mecanismo importante para o combate à desigualdade econômica e à concentração da riqueza. O Estado tem em suas mãos um importante mecanismo que é a tributação para reduzir as desigualdades, concentração de renda e os rentistas, enquanto inimigos da democracia. Países europeus possuem menor desigualdade que o Brasil, parcialmente por conta do fato de seus impostos não serem de caráter regressivo.
Desta forma penso que a intervenção deve começar pelo lado da tributação, uma vez que uma das principais marcas da elevada concentração de renda e das desigualdades sociais no Brasil é o caráter regressivo da carga tributária.
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"Países europeus possuem menor desigualdade que o Brasil, parcialmente por conta do fato de seus impostos não serem de caráter regressivo" |
IHU On-Line - Que modelos econômicos ou teóricos econômicos têm influenciado a formulação das políticas econômicas nos últimos anos, especialmente no governo do PT?
Juliano Giassi Goularti - Eu diria que o modelo econômico e teórico que sustentou o governo do presidente Lula e da presidente Dilma foi uma mescla de ortodoxia e heterodoxia. Ora a política foi conservadora, ora progressista. Apesar da política de juros e superávit primário, dentro do pacto conservador foi possível estabelecer uma política social que permitisse a inclusão da população pobre no mercado de consumo.
Dada a incapacidade do Consenso de Washington em fundamentar políticas econômicas capazes de engendrar processos de desenvolvimento mais duradouros, acabaram culminando numa mudança de rumo das práticas políticas que davam sustentação a sua implementação. Não chegou a ser um cavalo de pau num Titanic. Mas pós-2003 assistimos à retomada do crescimento econômico associado à melhoria da distribuição da renda, resultantes não só de um contexto internacional benigno, mas de práticas internas de política econômica progressivamente mais distantes do neoliberalismo.
A ortodoxia perdeu força e o keynesianismo começou a ganhar espaço dentro do governo depois da queda do ministro Antônio Palocci e da nomeação de Guido Mantega. Mas assim como a troca do ministro Palocci por Mantega representou uma mudança na trajetória política do governo Lula, a escolha de Joaquim Levy representa uma nova mudança. Em 2015, o debate político foi reposicionado e os caminhos trilhados pela política econômica são distintos dos anos anteriores. A escolha de Levy reacendeu a ortodoxia dentro do governo e enfraqueceu o keynesianismo.
IHU On-Line - Como você caracteriza a intervenção do Estado brasileiro na economia?
Juliano Giassi Goularti - Como positivo, sem dúvida. Temos que parar de demonizar o Estado. A questão é como o Estado tem investido na economia e em favor de qual classe. Esse é o debate. Tratando-se do caso brasileiro como exemplo, diria que a intervenção no conjunto de políticas sociais, como o Programa Bolsa Família, valorização do Salário Mínimo, formalização do emprego, expansão do crédito (em particular o crédito consignado) e diminuição de preços relativos de artigos populares por meio das desonerações tributárias, permitiu um maior poder aquisitivo das famílias de baixa renda. Assim, diante de uma conjuntura internacional favorável e políticas de ativação do mercado interno, a massa miserável que o capitalismo brasileiro mantinha estagnada começava a ser absorvida no circuito econômico formal. Isso é positivo.
No Brasil, como em qualquer outro país, existe uma disputa por recursos do fundo público no âmbito do orçamento público. O orçamento público é um espaço de luta política, com as diferentes forças da sociedade buscando inserir seus interesses. É ele que assegura recursos suficientes para o financiamento das políticas sociais. Todavia no caso brasileiro o orçamento estatal é refém dos rentistas do capital financeiro, obstaculizando a construção de um sistema de proteção social universal. Os ricos neste país continuam não pagando impostos e sonegando. Ao mesmo tempo em que a maior parcela do orçamento é destinada ao capital portador de juros, por meio do pagamento de juros e amortização da dívida pública. Essa é a crítica que devemos fazer.
O capital foi o maior ganhador do sistema tributário construído nos governos FHC e Lula. O sistema financeiro paga menos imposto que o restante da sociedade. Não se trata de ser contra a atuação do Estado na economia, mas sim sua forma de atuação e qual classe se apropriam do orçamento público. A crítica ao Estado deve estar pautada por quem se apropria de suas ações. Nos últimos dez anos o governo federal transferiu aproximadamente 45% do PIB para o capital financeiro. Com esses recursos seria possível custear o Programa Bolsa Família por mais de 100 anos, ou, ainda custear a educação por mais de 35 anos.
Neste sentido, defendo que o Estado seja mínimo, mas mínimo mesmo, para os rentistas que se apropriam de R$ 500 bilhões do orçamento federal somente no ano passado, e máximo para os que habitam o andar de baixo.
IHU On-Line - Quais são os principais resultados da intervenção do Estado brasileiro na economia hoje?
Juliano Giassi Goularti - Fruto de medidas heterodoxas, os caminhos percorridos pela política econômica entre 2007-14 resultaram num crescimento acumulado de 27%, o que dá uma média anual de 3,8%. A estratégia de atuação estatal recolocou o crescimento, a distribuição de renda e a política social no centro da agenda governamental. Gradualmente, o índice de Gini passou de 0,589 em 2003 para 0,501 em 2011, a massa de miseráveis que representava 24% em 2002 caiu para 7,5% e a baixa classe média passou de 29% para 43%. As medidas heterodoxas livraram a sociedade brasileira de impactos mais sérios na estrutura social. O não acatamento das fortes pressões para impor austeridade fiscal protegeu a sociedade e preservou conquistas recentes. Justamente o contrário do que se passa com os países europeus.
Nos governos Lula e Dilma I, houve uma melhora significativa nas condições de vida do brasileiro. A política de valorização do salário mínimo, os programas de transferência de renda, o acesso ao crédito popular e o conjunto das políticas sociais constituíram anseios de certa fração de classe. De uma maneira geral, o Estado desbloqueou muito das privações da coletividade, e foi, sobretudo, a ascensão social materializada pela subida na renda de mais de 20 milhões de brasileiros que atravessaram a divisa da miserabilidade e da pobreza e a estabilização dos rendimentos da alta classe média e média classe média que tem provocado o ódio de classe.
IHU On-Line - Evidencia problemas também na intervenção do Estado na economia ou não? Quais e por quê?
Juliano Giassi Goularti - Vejo a intervenção como positiva. Porém, como já referenciei, a questão central do debate da intervenção é quem se apropria do orçamento público. O problema é que hoje o todo poderoso capital financeiro tem se apropriado da maior fatia do orçamento público.
"O problema é que hoje o todo poderoso capital financeiro tem se apropriado da maior fatia do orçamento público" |
IHU On-Line - Como você caracteriza e avalia o lulismo? De que modo o lulismo pode ser entendido como um projeto que teve intervenção do Estado?
Juliano Giassi Goularti - O lulismo foi um momento histórico na política nacional, assim como o getulismo e/ou varguismo. Ao publicar o livro Os sentidos do lulismo, André Singer expõe as contradições e avanços do governo Lula. Sem radicalização política e sem um conteúdo programático socialista, o lulismo se destaca pelas políticas de combate à miséria sem o confronto direto com os interesses do capital.
O conjunto de políticas sociais, como o Bolsa Família, valorização do Salário Mínimo, formalização do emprego, expansão do crédito e diminuição de preços relativos de artigos populares por meio das desonerações tributárias permitiu um maior poder aquisitivo das famílias de baixa renda. Assim, diante de uma conjuntura internacional favorável e políticas de ativação do mercado interno, a massa miserável que o capitalismo brasileiro mantinha estagnada começava a ser absorvida no circuito econômico formal.
Apesar do receituário neoliberal da política de juros e superávit primário, dentro do pacto conservador foi possível estabelecer uma política social que permitisse a inclusão da população pobre no mercado de consumo. Sem o radicalismo dos anos oitenta, o lulismo atende às reivindicações históricas da população pobre sem afrontar as contradições capitalistas. Em suma, o lulismo recolocou o crescimento econômico, a distribuição de renda e a política social no centro da agenda governamental a partir de uma coalizão política que manteve um relativo equilíbrio e cujos benefícios foram usufruídos tanto pelo subproletariado como pelo capital.
A questão é que a escolha de Levy para o Ministério da Fazenda reacendeu a ortodoxia dentro do governo e enfraqueceu o keynesianismo e por consequência, o lulismo. Se o objetivo era acalmar os ânimos do mercado financeiro depois de uma acirrada campanha eleitoral, acabou contrariando parte expressiva da militância petista, da esquerda e dos movimentos sociais. No seu conjunto, a ausência de uma política econômica pró-ativa de Dilma II e o afinamento ortodoxo da Fazenda, a presidente Dilma queimou seu capital eleitoral e político colocando o lulismo numa situação de xeque.
IHU On-Line - Seria possível ter avançado mais com o lulismo? Sim, não e por quê?
Juliano Giassi Goularti - Acredito que sim. Enfrentamentos importantes foram feitos pelo lulismo. Diante de uma conjuntura internacional que se tornara desfavorável, a presidente Dilma determinou que o Banco Central baixasse a taxa Selic, chegando ao patamar de 7,25% a.a. (out/2012), o Ministério da Fazenda estabeleceu controle de capitais e os Bancos Públicos forçaram uma redução do spread bancário. Colossalmente essa tríade desagradou ao sistema financeiro e frações de classes que vivem do rentier.
Dentro da autonomia do Estado, não absoluta, mas sim relativa, a heresia do lulismo em valorizar o salário mínimo, aumentar o gasto social e permitir que 76% da PEA (população economicamente ativa) pudessem ter acesso a serviços públicos e privados que antes eram monopólio da classe média e média alta, aguçaram o ódio de classe.
Quando se deu conta de que a burguesia se articulava para isolar o governo, Dilma começou a ceder elevando a taxa de juros e cortando o gasto público. O governo recuou até substituir o desenvolvimentista Mantega pelo liberal-conservador Levy, o que fez retroceder o lulismo.
Por Patricia Fachin
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"O capitalismo darwinista não faz política social, quem faz política social é o Estado". Entrevista especial com Juliano Giassi Goularti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU