A espinhosa relação da esquerda com a Venezuela. Artigo de Pablo Stefanoni

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

07 Agosto 2024

"Chávez, em seus sucessivos governos, entre 1999 e 2013, apaixonou-se por diferentes modelos, mas apesar das diversas formas de 'participação popular' adotadas, o tripé 'líder, exército, povo' que Ceresole propôs permaneceu, o que levou a uma participação cada vez maior regime autoritário", escreve Pablo Stefanoni, pesquisador da área de estudos e análises da Fundação Carolina, em artigo publicado por El País, 07-08-2024.

Eis o artigo.

Desconfiança-entusiasmo-decepção (mais ou menos silencioso). A relação entre a esquerda latino-americana e a revolução bolivariana passou por diferentes etapas, ao ritmo da própria dinâmica do país caribenho. A liderança esmagadora de Hugo Chávez – uma máquina quase infinita de carisma – forneceu, sem dúvida, uma dose de energia incomum a uma esquerda regional duplamente derrotada: a queda do Muro de Berlim não afetou apenas a esquerda tankista que apoiava os regimes do “socialismo real” —incluindo os tanques soviéticos — mas na esquerda como um todo, enquanto o neoliberalismo parecia reinar sem contrapesos ideológicos.

Mas a relação entre a esquerda e os militares venezuelanos não foi amor à primeira vista. O Chávez que se seguiu ao frustrado golpe de Estado de 1992 ainda era difícil de ser examinado pela esquerda, que o via com desconfiança. As suas ligações com figuras como Norberto Ceresole – um antigo esquerdista que acabou numa linha nacionalista de direita próxima dos militares argentinos Carapintada – geraram suspeitas, enquanto a sua proposta de uma terceira via à la Tony Blair lhe deu tons demasiado moderados.

Na verdade, a Constituição de 1999 não fala de socialismo, mas de “democracia participativa”. Este foi um Chávez que, nas palavras do jornalista Marc Saint-Upéry, parecia ter “apreendido com os fracassos da esquerda estatista do século XX e sabia que não existe um modelo pré-constituído e puramente voluntarista de alternativa económica.” Mais tarde, Chávez avançaria numa “mistura confusa de pragmatismo moderado, promessas de bem-estar generalizado e retórica inflamatória sem apoio real”, em meio a um crescente “caos administrativo devido a uma mistura de inexperiência e burocratismo”.

Foi a tentativa de golpe contra Chávez em 2002 que mudaria radicalmente as coisas. A imagem de uma “plutocracia corrupta” expulsando do poder um presidente constitucional e plebeu, através de um golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos e parte da Europa, constituiu um ponto de ruptura.

O golpe foi na Playa Girón de Chávez. Se aquela tentativa fracassada de invadir Cuba apoiada pelos Estados Unidos daria a Fidel Castro a épica necessária para a “construção socialista” na ilha caribenha, o golpe fracassado, com contornos racistas, deu a Chávez um enorme impulso político.

A Venezuela acabaria sendo o único país do mundo a se declarar socialista após a queda da União Soviética; sim, com o sobrenome “do século 21”. A ideia, insistiu-se, era não repetir “os erros” do socialismo do século XX.

Se o golpe deu a Chávez a imagem de um líder que concentrou na sua pessoa o desprezo das elites no próprio povo, para a oposição venezuelana foi uma mancha quase indelével. A partir daí, seria uma “oposição golpista”. Isso fez com que a esquerda regional adotasse um discurso que perdura até hoje: não importa o que Chávez fizesse, e desde 2013 Nicolás Maduro, a oposição seria sempre “pior” que o chavismo.

Com o aumento do preço do petróleo – de 10 para 100 dólares – Chávez tinha recursos para implementar políticas sociais abundantes, como as chamadas “missões”, e era um líder verdadeiramente popular, dentro e fora da Venezuela. O evento ocorrido na cidade argentina de Mar del Plata, no final de 2005, onde mandou “para o inferno” a a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), promovida pelos Estados Unidos, marcou um dos marcos da Chávez latino-americano, que reativou a seu favor a velha diplomacia petrolífera venezuelana. Chávez poderia então dizer no Fórum Social Mundial em Porto Alegre, no mesmo ano, que “o caminho é o socialismo”. Como “um novo Fidel Castro”, segundo uma mídia brasileira. Foi o momento de entusiasmo. A de um presidente que voltou a falar de revolução, mandou os ianques para o inferno e até teve na sua secretária livros de teóricos como o filósofo marxista István Mészáros. Líderes e militantes de esquerda começaram a viajar para a Venezuela, vista como território de ousada experimentação social.

Mas apesar do bom relacionamento dos governos de esquerda com Chávez, os grandes países da região não aderiram à sua Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba). Para o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva era um clube pequeno e sem interesse, e para a Argentina de Néstor Kirchner era muito ideológico. Na verdade, de acordo com o seu biógrafo Walter Curia, Kirchner disse uma vez a Chávez: “Hugo, pare de brincar com o socialismo”, que o pragmático peronista considerava uma coisa do passado. Assim, o jogo entre uma Venezuela radical e um Brasil moderado parecia funcionar do ponto de vista geopolítico.

Chávez, em seus sucessivos governos, entre 1999 e 2013, apaixonou-se por diferentes modelos, mas apesar das diversas formas de “participação popular” adotadas, o tripé “líder, exército, povo” que Ceresole propôs permaneceu, o que levou a uma participação cada vez maior regime autoritário. A única vez que o socialismo realizou um plebiscito (no referendo constitucional de 2007) perdeu, mas ainda assim avançou no seu projeto.

Diante dos problemas, a maior parte da esquerda latino-americana adotou uma posição semelhante à que manteve em relação a Cuba: não criticar Chávez/Maduro, nem os retrocessos democráticos, enquanto o país era assediado pelo “império” e pela oligarquia local. Figuras da oposição que apelavam a uma invasão sem dúvida alimentaram estes discursos.

Mas o problema é que esta abordagem sempre deixou de lado a dimensão predatória que o regime foi adquirindo, com um saque de recursos públicos que acompanhou um declínio catastrófico nas condições de vida da população, que piorou sob Maduro, que dependia, ainda mais do que Chávez, sobre os militares. A tal ponto que, na última campanha eleitoral, elogiou a “perfeita união cívico-militar-polícia” que o chavismo-madurismo encarna.

Se no passado o chavismo era um trunfo – material e simbólico – para a esquerda regional, desde meados da década de 2010 tornou-se cada vez mais um fardo. As forças conservadoras cansaram-se de apelar para a questão venezuelana como material de propaganda interna, ainda mais depois do êxodo venezuelano. O espectro da venezuelanização, habituado ao ridículo em todo o lado, fez parte da mudança do ciclo político de 2015, quando a região parecia virar-se para a direita. Foi o momento de decepção, mas também de silêncio, em relação à Venezuela por parte de grande parte da esquerda (com exceção dos eternos crentes).

As eleições de 28 de julho marcaram uma importante etapa de degradação do projeto bolivariano. Desta vez, a vitória de Maduro, como disse o presidente chileno Gabriel Boric, é “difícil de acreditar”. A ilegitimidade do presidente no poder torna-se mais evidente, ao mesmo tempo que o empenho eleitoral de toda a oposição - que sempre esteve dividida entre sectores favoráveis ​​à insurreição e apoiantes da batalha eleitoral - a reforçou dentro e fora do país. Até o Partido Comunista Venezuelano exige respeito pela vontade popular.

Neste quadro, Lula, Gustavo Petro e Andrés Manuel López Obrador procuram uma solução ordenada para a crise. Até a ex-presidente argentina Cristina Kirchner pediu que a ata fosse publicada, “por causa do legado de Chávez”. Mas a saída não é clara: sem rupturas internas, que por enquanto não existem, o governo de Maduro não tem incentivos para iniciar uma transição acordada.

O aumento da repressão, que parece ser a única forma de superar a crise, além das consequências para os venezuelanos, terá um custo elevado para a esquerda da região. Não só para os remanescentes bolivarianos que fazem campanha a favor dos resultados oficiais e da “ampla vantagem” de Maduro sobre Edmundo González, mas também para a esquerda crítica, que hoje enfrenta uma nova direita radicalizada.

As imagens da repressão na Venezuela – e de um governo que se entrincheira sem sequer mostrar os minutos da sua suposta vitória – constituem um presente inestimável para os reacionários em todo o mundo. Um “socialismo” associado à repressão, às dificuldades diárias e ao cinismo ideológico não parece ser a melhor base para “tornar o progressismo grande novamente”.

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