16 Agosto 2024
Vivemos em um mundo sitiado pela guerra e a ameaça de destruição, marcado também por diversas crises, da falta de confiança na democracia ao aquecimento global. A razão profunda deste desassossego reside em uma crise cultural que pôs em dúvida valores essenciais da civilização ocidental, afirma Rob Riemen, ensaísta nascido nos Países Baixos e fundador e presidente do Instituto Nexus, um fórum independente criado em 1994 com o objetivo de fomentar o debate intelectual e por onde passaram grandes personalidades de nosso tempo.
A entrevista é de Héctor M. Guyot, publicada por El Tiempo, 10-08-2024. A tradução é do Cepat.
Concentrada sobretudo nos avanços da ciência e da tecnologia, incapazes de proporcionar uma visão integral do homem, a sociedade atual relegou o papel das humanidades e das artes, e com elas a sabedoria e o conhecimento da alma humana. Ao mesmo tempo, diz Riemen, um convite constante ao entretenimento e à distração conduz ao esquecimento das lições da história, a tal ponto que nos custa reconhecer a raiz fascista de líderes que, na esquerda ou na direita, fomentam o nacionalismo, a intolerância e a divisão.
Esta amnésia da história favoreceu o que Riemen chamou, a partir do título de um livro que publicou em 2010, O eterno retorno do fascismo. “Quisemos acreditar no progresso eterno e nos convencemos de que os seres humanos são bons. Um mundo Disney. Contudo, os fatos nos confrontam com uma evidência essencial que tínhamos esquecido. Temos uma natureza dupla. Temos um lado bom e outro mau. Podemos escolher a vida ou a morte. A segunda questão é que nos tornamos uma sociedade muito materialista. E no caminho esquecemos do espírito”.
Como antídoto, Riemen chama a um retorno ao humanismo, proposta que desenvolve em El arte de ser humanos (Taurus), livro que apresentou recentemente em Buenos Aires. “Estamos diante de uma crise civilizatória e estamos perdendo a perspectiva essencial, a que nos permite entender o que significa ser um humano. Só a partir daí podemos refletir (e agir) sobre as muitas crises atuais”, argumenta.
No livro, há muitas referências ao surgimento dos fascismos e dos totalitarismos no século XX. Que paralelos encontra entre aquela etapa histórica e o nosso tempo?
Ao longo da história, a humanidade passou muitas vezes por períodos como aquele. Contudo, também contou com momentos de renascimento e iluminação. O que é fascinante e ao mesmo tempo trágico sobre o nosso tempo é que não só temos a tecnologia para destruir tudo, como também, paradoxalmente, após a queda do Muro, quisemos acreditar no fim da história.
As grandes guerras terminaram, dissemos a nós mesmos, o comunismo desapareceu, a democracia liberal venceu e o nosso modelo capitalista vai tirar todos da pobreza. Um mundo maravilhoso, não é?, como diria Louis Armstrong. Então, Le Pen cresce na França, chega um Geert Wilders nos Países Baixos. Frente ao crescimento destes líderes de extrema direita, escrevi um ensaio sobre o retorno do fascismo. Como isto era possível?, perguntei-me.
E como foi possível?
Primeiro, quisemos acreditar no progresso eterno, uma ideia do Iluminismo. Nós nos convencemos de que os seres humanos são bons. Um mundo Disney. Mas, então, os fatos nos confrontam com uma evidência essencial sobre os seres humanos, que havíamos esquecido. Temos uma natureza dupla. Temos um lado bom e outro mau. Podemos escolher a vida ou podemos escolher a morte.
Em segundo lugar, apoiados na ciência e na tecnologia, nós nos tornamos uma sociedade muito materialista. Carro novo, iPhone novo... queremos sempre mais. No caminho, nós nos esquecemos do espírito. Vivemos em uma espécie de estupidez organizada que provoca, entre outras coisas, uma amnésia da história. Por isso, não nos lembramos daqueles momentos tão trágicos da humanidade e desta dupla face, positiva e negativa, do homem.
O que seria a estupidez organizada?
Penso que o poder e as elites nos querem estúpidos. Se fôssemos menos estúpidos, por que votaríamos em pessoas que não resolvem nada? Por que votaríamos em algo sem sentido? Por que aceitaríamos universidades que não nos educam?
Junto a uma tecnologia que vende a ideia de progresso ilimitado, temos o barulho das redes sociais, que nos instalam em uma espécie de puro presente. De certa forma, a tecnologia é uma ilusão vazia que promove a amnésia do passado.
Uma ilusão vazia, gosto dessa frase. Um fator dessa amnésia é a tecnologia, sim, mas também a necessidade permanente de entretenimento. As pessoas precisam de distração o tempo todo e a obtém. Isto significa que esquecemos ou não queremos enfrentar as perguntas fundamentais.
Primeiro, quem sou eu? Depois, o que eu faço com a minha vida? E, por último, quando alguém enfrenta o sentimento trágico da vida, como lidar com isso? Desde sempre, são as perguntas que a arte e a cultura propõem. Hoje, no entanto, temos pseudoculturas.
Como é isso?
Uma pseudocultura é a do kitsch, que nos faz acreditar que a vida deve ser divertida, sexy, acelerada, superficial; outra é a pragmática, a da ciência e da tecnologia, que diz que só o que é empiricamente calculável pode ser verdadeiro e que só o que é útil importa; outra é a do capitalismo e a farsa, que celebra a fama e a riqueza; outra é o esnobismo estético, que venera com nostalgia as “obras belas” para fugir da realidade.
O vazio espiritual provocado por estas pseudoculturas estimula um desespero que se traduz no consumo de drogas, na violência e no nacionalismo. A cultura, no verdadeiro sentido do termo, é o que ajuda a encontrar a sua própria resposta às perguntas fundamentais. Por isso, a educação cultural e a arte são sumamente importantes, e também por isso que a primeira coisa que todos os líderes não democráticos fazem é se livrar do mundo da cultura e da educação.
Nos Estados Unidos, e o que acontece lá acontece um pouco mais tarde na Europa, cerca de 300 pessoas morrem todos os dias por overdose. E cerca de 100 morrem por disparos de armas de fogo. É uma civilização em decadência. E, para sermos sinceros, vemos o mesmo fenômeno na Europa. No entanto, será que a saída é o retorno ao fascismo, ou seja, depositar a nossa fé em falsos messias, em demagogos que prometem “acabar com a corrupção na política”?
Em seu livro, descreve como a ideologia extrema anula o pensamento crítico. E oferece exemplos tanto da esquerda quanto da direita.
Sim. O problema é que os extremistas, de esquerda ou de direita, são pessoas inteligentes. Mas, como dizia Robert Musil, a inteligência pode levar à maior estupidez. É o que acontece, por exemplo, com a ideologia woke, que é uma forma de neoestalinismo. A cultura do cancelamento foi inventada por Hitler e Stalin, não há nada de novo nisso.
Em meu livro, imagino uma conversa com Thomas Mann. Ele foi testemunha da crise de sua civilização, presenciou a crise da democracia e o surgimento do fascismo. Baseado em Schiller, adverte que os seres humanos possuem esta dupla natureza e ao mesmo tempo nos lembra de nossa nobreza de espírito.
Não existem atalhos, a vida humana é um trabalho árduo. Como disse Cícero, cultura animi philosophia, o cultivo da alma humana é a busca da sabedoria. Aqui está o cerne do problema. Não há mais cultura. Ninguém quer mais acreditar na alma. Ninguém mais fala de sabedoria. Não percebemos que a vida é busca. E é o mundo do humanismo que oferece o centro para evitar o fanatismo e qualquer forma de extremismo.
Do que é feito esse humanismo? Das ideias do Iluminismo já despojadas de sua fé absoluta no progresso? De princípios religiosos?
O humanismo é a tradição que leva a sério a ideia de ser humano. Por isso, para mim, o humanismo começa com Sócrates e as perguntas fundamentais: o que é uma vida boa? O que é uma sociedade boa? Dessas inquietações surgem os valores morais. E esses valores devem ser transcendentais, espirituais, porque não somos robôs, não somos máquinas, não podemos substituir qualidade por quantidade. Só os valores que são transcendentais podem ser universais, verdadeiros para todos. O que significa que o humanismo tem raízes religiosas.
Nossa vida é a tentativa constante, até o final, de nos tornarmos seres humanos melhores do que somos. E a tentativa de encontrar respostas aos enigmas da vida em meio às escolhas cotidianas. Isto inclui o tipo de sociedade que queremos. Aí reside a beleza da vida. Mann falou de um humanismo militante para enfrentar as forças que querem destruí-lo. Hoje, essas forças são o eterno fascismo e o que poderíamos chamar de tecnofascismo.
Como seria um humanismo militante?
Não é que deveríamos fazer parte da polarização, mas, sim, da força que expõe as mentiras. As mentiras dos demagogos, a mentira de que as crianças não precisam mais ler livros porque têm as redes sociais, a mentira de nos afogarmos no entretenimento, enquanto esquecemos as inspirações, a mentira de que não precisamos investir na cultura porque não é prática.
A essência do humanismo é proteger a dignidade de cada ser humano. E o modelo político do humanismo é uma democracia em que as pessoas das mais diferentes origens possam viver em harmonia porque compartilham valores fundamentais. Uma sociedade capaz de proteger o que é vulnerável: as crianças, os idosos, os doentes, os desempregados... até os animais e a Mãe Terra são vulneráveis, assim, são protegidos.
Em seu livro, diz que a academia e as universidades são hoje baluartes da estupidez. O assunto é tão grave assim?
Supõe-se que as universidades devem oferecer ao mundo o conhecimento da universitas. Daí provém o seu nome. Universitas é a educação liberal, que se expressa na história, na filosofia, na literatura, nas artes. Não são ciências exatas, mas representam a arte superior da leitura, que permite ver as conexões entre as coisas e os fenômenos. É uma formação sobre o que significa ser um humano, seus paradoxos e mistérios, e que inclui a arte, da literatura de Dante à música de Carlos Gardel.
É por isso que A montanha mágica, de Thomas Mann, é um livro tão importante para mim, porque busca sobretudo enfrentar as grandes perguntas e a busca das respostas corretas. As universidades não oferecem mais esse tipo de ensino. Prevalecem as ciências exatas e a tecnologia, coisas com as quais se possa fazer dinheiro. Max Weber falou do perigo de reduzir o mundo apenas aos fatos.
O que pensa da inteligência artificial?
Há muitas coisas importantes que podem ser feitas com a inteligência artificial. O Google me permite encontrar o caminho em Buenos Aires, por exemplo. O problema é quando a inteligência artificial começa a substituir aquelas capacidades que nos tornam humanos. Agora, os estudantes estão usando o ChatGPT para fazer suas teses. Talvez até obtenham uma boa nota. Contudo, isto não lhes permite usar o seu entendimento e se esforçar para criar algo próprio. Isto torna as pessoas mais estúpidas.
Parece que esta geração está tirando das seguintes a possibilidade de treinar o pensamento crítico através do esforço da escrita, porque acessam um texto já dado.
Há 33 anos, fundei uma revista, Nexus. Fiz isto junto com um velho editor judeu que por milagre sobreviveu ao Holocausto e depois, após a guerra, decidiu que queria investir tudo o que tinha para manter vivo tudo o que Hitler quis destruir. Fundou uma editora e uma livraria.
Morreu em 1992, mas antes me ensinou duas coisas. Dizia que depois da Segunda Guerra Mundial a ciência e a tecnologia não conheceram limites, mas que a nível cultural estávamos de volta à Idade Média. Por isso, acreditava que deveríamos seguir o exemplo dos mosteiros, onde eram preservadas certas coisas e saberes para transmiti-los às gerações futuras.
Por outro lado, tinha a esperança de que surgisse uma espécie de novo Renascimento. E eu penso que se a bomba não nos destruir, esse ressurgimento virá de baixo, das livrarias independentes, das pessoas que continuam lendo, dos jovens que estão renunciando ao X e o Facebook porque sabem que estão sendo enganados pelo sistema.
Quero acreditar que ainda temos um senso de qualidade. As pessoas sabem quem é um verdadeiro amigo, sabem intimamente se a vida que levam faz sentido ou não. Ou seja, o problema não está do lado da demanda, mas, sim, do lado da oferta. Nossa geração teve sorte. Nossos influenciadores não foram as Kardashians, mas García Márquez, Vargas Llosa, Kafka... Isto faz uma grande diferença. Hoje, nossa obrigação moral é buscar que a geração jovem se afaste da estupidez que lhe é oferecida.
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“A estupidez organizada em que vivemos provoca uma amnésia da história”. Entrevista com Rob Riemen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU