Por: Jonas Jorge da Silva | 15 Março 2022
“Nem mesmo os direitos humanos serão salvaguardados, esta é a grande novidade, sem que no mesmo ato salvaguardemos os direitos de não humanos”, avaliou Stelio Marras, professor e pesquisador em antropologia do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo – USP, ao abordar o tema Onde estamos? O novo regime climático e a releitura dos horizontes políticos, que inaugurou a série de debates [online] Brasil: emergências socioambientais e horizontes políticos, no último dia 12 de março.
Em sua avaliação, “uma esquerda verde, por assim dizer, é chamada a povoar o nosso pensamento, as nossas práticas, a se reinventar. Uma esquerda socioecologicamente orientada”. No cenário atual, nossa esperança está na possibilidade de refazer o mundo com mil outros nomes que se refiram a uma nova ética, em compor economia com ecologia, fazendo reverberar o eco presente na economia.
A iniciativa do CEPAT conta com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB, Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá.
Stelio Marras, da USP, na atividade: "Onde estamos? O novo regime climático e a releitura dos horizontes políticos"
De antemão, em convergência com o tema proposto, Stelio Marras citou as duas principais obras do pensador francês Bruno Latour, com as quais dialogou durante sua exposição: Onde aterrar? Como se orientar politicamente no antropoceno (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020) e Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (São Paulo: Ubu Editora, 2020).
Estudioso das obras de Bruno Latour há pelo menos duas décadas, Marras o considera um dos responsáveis pela renovação na abordagem dos estudos das ciências e a tecnologia, problematizadas na esfera da modernidade. Em sua avaliação, as premissas presentes na obra Jamais fomos modernos (1991), de Latour, vai se confirmando ao longo dos anos, já que não conseguimos falar de nós mesmos sem colocar no centro as ciências e a tecnologia. Trata-se de uma renovação radical na formulação de uma antropologia de nós mesmos.
Ao integrar os agentes não humanos que povoam as ciências e a tecnologia em seus estudos, Latour sacode as bases das ciências humanas, rompendo com a perspectiva de grandes autores das ciências sociais clássicas, que se convenceram do processo de desencantamento do mundo pela ciência. Em contraposição a essa visão, encontra na etnografia dentro dos laboratórios não tanto coisas sobre o humano em si, mas resultantes de suas práticas na lida com reagentes, micro-organismos, conformando um mundo confuso, emaranhado, no qual divisões simplistas caem por terra. Nesse sentido, segundo Marras, em vez de desencantar o mundo, como se a ciência “roubasse a sua alma”, de fato, ocorre um reencantamento do mundo.
Tal perspectiva requer que as novas análises escapem da zona de conforto abarcada pela tradicional oposição entre natureza e cultura ou natureza e sociedade. Aqui, não sobra espaço para uma divisão de tarefas entre cientistas naturais, legitimados a falar sobre coisas da natureza, e cientistas humanos, restritos apenas aos domínios do humano, da sociedade, da cultura.
Para Marras, é nesse contexto que o novo regime climático também requer outros horizontes políticos. Trata-se menos de uma questão que envolve o “nós” humanos e muito mais uma na qual o “nós” se traduz em uma espécie de “nó”, um emaranhado do mundo das coisas que questiona sobre quem somos. Na medida em que a natureza se desestabiliza, emerge um outro humano. A emergência climática não respeita as divisões entre o natural e o político, por isso ambos precisam ser pensados em conjunto. Se a natureza é outra, a política também deve ser outra.
Na avaliação de Marras, a passagem da physis ao logos e deste para a pólis, que marcou a marcha da civilização, está em revisão. O Antropoceno inspira outra unidade de análise, não a do humano puramente. Daí a questão: Qual é a unidade de análise mais pertinente para finalmente trazermos o mundo como uma miríade de autores políticos com os quais devemos negociar o nosso futuro? É aí, na problematização de uma matriz de pensamento e de práticas permeadas pelo progresso e o desenvolvimento no capitalismo que emerge um novo desafio político que tem provocado a reação autoritária das ultradireitas.
“Como se orientar politicamente em um mundo que está se desagregando socioambientalmente?”, questiona Marras. O caminho passa por uma composição com agentes, entidades e atores que antes não julgávamos políticos, que eram figurados apenas como recursos. Passa por abrir mão de diversas coisas que sonhávamos em termos de desenvolvimento e conforto. Nesse sentido, assim como Terra está para recurso, Gaia está para entes, seres e atores “reanimados, perigosamente reanimados, naquilo que muitos estão chamando de fim do mundo”.
Stelio Marras, da USP e André Langer do CEPAT, na atividade: "Onde estamos? O novo regime climático e a releitura dos horizontes políticos"
Fazendo menção à provocação de Michel Serres, com seu livro O contrato natural (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991), Marras ressaltou o desafio de compreender a política para além do contrato social moderno que deu origem ao estado, à pacificação e a organização social. A tarefa atual, conforme aponta a filósofa e historiadora Isabelle Stengers, é a de “civilizar as práticas modernas, civilizar a civilização”. Isto não quer dizer que tudo deve ser jogado fora, pelo contrário, é preciso se valer da ciência e a tecnologia para enfrentar o que elas próprias ajudaram a causar.
A resposta aos negacionismos atuais parte da defesa de outra orientação política, na qual a ciência e a tecnologia são encaradas da forma mais lúcida possível, sem se prender ao chão das velhas utopias modernistas, modernização do mundo e exploração de recursos, que provocaram um empobrecimento das condições de habitabilidade do planeta. É preciso pensar em uma unidade de análise que esteja à altura da desordem climática e ambiental que seguirá.
Para Marras, ao repensarmos nossa unidade de análise, o humano não pode mais ser pensado sem suas dependências, sem suas composições de mundo. Sendo assim, “nem mesmo os direitos humanos serão salvaguardados, esta é a grande novidade, sem que no mesmo ato salvaguardemos os direitos de não humanos”. Direitos humanos e não humanos devem caminhar juntos. Protege-se não humanos para proteger humanos.
Marras lembrou que Latour não considera realista dizer que se vive uma crise climática, pois a palavra “crise” sugere algo que será superado. Para ele, não se trata de uma crise, pois é algo que nos acompanhará por muitos anos, decênios, talvez séculos. A crise não passará, pois já atingimos situações irreversíveis e teremos que lidar com as suas consequências.
Marras citou a importância de revisitar a noção de princípio da precaução, que tem a ver com a reflexão sobre as consequências do que fazemos. A questão de fundo de nossos problemas é socioambiental, pois o mundo responde às nossas ações, existem paralelos entre os humanos e o mundo.
Também o tema da desaceleração se impõe para o terror dos tipicamente modernistas, que desejam a todo custo avançar em seu projeto: garimpo em terras indígenas, exploração de florestas, inação na agenda da transição energética, persistência na queima de combustíveis fósseis, consumismo, entre outros pontos.
Repensar nossos vínculos com o mundo impacta em nossa noção de liberdade e emancipação. Marras salientou que a tentativa de ainda fazer política sem cosmos, de não incorporar as respostas do não humano, de uma terra desestabilizada, fracassou. O desafio atual passa pela inclusão dos climatologistas na cena política, pois são porta-vozes desses não humanos que precisam ser trazidos ao parlamento. É isso que apavora todos os que querem continuar na mesma velocidade, na mesma trilha moderna.
Não existe mais mundo para o crescimento e o progresso relacionados a noções de liberdade e emancipação para todos. Então, cabe perguntar: Caso levemos a sério esses porta-vozes de não humanos, hoje, quais utopias podemos vincular ao liberalismo? Constata-se que o que era utopia liberal se transforma em uma distopia generalizada que vai alimentando uma escatologia do fim do mundo.
Contudo, Stelio Marras não considera que tudo é motivo para desesperança, pois existe uma juventude entrando nesse debate, levantando novas questões políticas, existem partidos políticos que passam a abordar as questões socioambientais, movimentos sociais, indígenas, comunidades tradicionais, entre outros. A questão é fazer com que esse novo regime climático, cientificamente orientado, guie também um novo regime político. Vive-se uma guerra de mundos e as novas gerações já perceberam muito bem o que está em jogo.
Questionado acerca do papel da esquerda, Marras se ateve à noção de esquerda de Gilles Deleuze e Félix Guattari, entendendo que sua tarefa é a de fazer pensar, ativar o pensamento, ao passo que a direita se posiciona a favor do status quo, pela manutenção da ordem. Contudo, lembra que historicamente a esquerda possui uma relação muito importante com o desenvolvimento e também é chamada a se pensar.
Não cabe mais uma esquerda que continue compactuando com uma imagem de mundo como recurso, não é mais possível que continue compactuando com a ideia de desenvolvimento, crescimento e progresso que orientou e orienta grande parte de uma massa crítica da esquerda no Brasil e no mundo. “Uma esquerda verde, por assim dizer, é chamada a povoar o nosso pensamento, as nossas práticas, a se reinventar. Uma esquerda socioecologicamente orientada”, pondera Marras.
Todas as promessas da modernidade estão em xeque. Para Marras, estamos passando por uma desagregação das condições de habitabilidade no planeta e os mais pobres são e serão os mais impactados. Cabe desacelerar, não ignorar Gaia. No cenário atual, nossa esperança está na possibilidade de refazer o mundo com mil outros nomes que se refiram a uma nova ética, em compor economia com ecologia, fazendo reverberar o ‘eco’ presente na economia.
É preciso cultivar uma nova sensibilidade em relação a todos esses desafios, revendo nossos vínculos com o mundo. Buscar maior igualdade social, mas não mais baseadas nas antigas promessas da modernidade. A associação entre humanos e não humanos deve alargar a nossa noção de sociedade.
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Novos horizontes políticos: “civilizar a civilização” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU