23 Mai 2024
A crise civilizacional afeta a vida na Terra e as respostas corporativas perpetuam o capitalismo e o colonialismo, bloqueando transições justas, populares e democráticas. Apesar de décadas de debates, a crise climática piora com soluções neoliberais. Na América Latina, o “extrativismo verde” agrava as desigualdades e o neocolonialismo.
O artigo é Pablo Bertinat, da Universidade Tecnológica Nacional, e Jorge Chemes, da Universidade Nacional de Rio Negro, ambas na Argentina, publicado por El Diario, 16-05-2024. A tradução é do Cepat.
Estamos atravessando uma crise civilizacional profunda (multidimensional e multiescalar) que afeta a vida no planeta Terra. Aqui, o componente ambiental é um a mais entre outros, em uma conjunção sinérgica dos fracassos da racionalidade/modernidade: crise econômica e financeira; de segurança e justiça; ecológica, ambiental, climática, epidemiológica, bélica, ontológica, moral e existencial.
Neste marco, os poderes corporativos, estatais, multilaterais e inclusive científico-tecnológicos vêm construindo respostas à crise sem alterar os padrões de dominação que articulam no sistema-mundo: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Centrados na métrica da descarbonização, propõem uma transição energética corporativa bloqueando dinâmicas de transições justas, populares e democráticas.
Após décadas de debates, acordos internacionais, relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas e COPs, a situação relacionada à mudança climática não só não melhorou, como piora minuto a minuto. As soluções propostas seguem as mesmas: crescimento sustentado em um marco neoliberal e antropocentrista, sem tocar na dívida ecológica histórica do norte global.
A transição energética corporativa possui um cunho claramente mercantilista, colocando a energia na esfera da mercadoria capitalista e adoptando abordagens estritamente físicas e técnicoeconômicas. Ou seja, sobre como intercambiar recursos naturais não renováveis por renováveis para diversificar a matriz energética, buscando a acumulação de capital pela descarbonização (Argento & Kazimierski, 2022) e a adaptação para articular a nova rede de poder global.
Para que a China, os Estados Unidos e a Europa transitem para a desfossilização, são criadas novas zonas de sacrifício nas periferias mundiais. Este processo começa a ser conhecido no ativismo e na academia crítica como “extrativismo verde” ou “colonialismo energético”: uma nova dinâmica de extração capitalista e de apropriação de matérias-primas, bens naturais e mão de obra, especialmente no sul global (embora não exclusivamente), com o objetivo de realizar a “transição energética verde”.
Sustentar este novo ciclo de acumulação capitalista energívoro e encapsulado na descarbonização requer devorar mais materiais, mais corpos, territórios e biodiversidade. Neste sentido, a neocolonialidade da América Latina segue com a sua espoliação.
Poucos meses atrás, publicou-se o Relatório da economia circular, um trabalho realizado pela Fundação Economia Circular em colaboração com a CEPAL, o BID e o PNUMA (Circle Economy Foundation, 2023).
O relatório fornece informações sensíveis, produzidas por fontes insuspeitas de fazerem parte de uma proposta ambientalista radical, que nos permitem observar o contexto em que está ocorrendo o aumento da pressão sobre os territórios para abastecer o norte global com materiais. Embora os dados sejam de 2018 (já que segundo os autores não há informações consolidadas mais recentes), fornecem uma referência imprescindível para se pensar na atitude da região frente ao crescimento da demanda por materiais por parte da União Europeia, a partir de suas novas e agressivas políticas neste sentido, em particular a exigência dos chamados materiais críticos para a transição energética.
Como sabemos, a América Latina é uma região rica em natureza, em “recursos” e desde a época da conquista é fonte de materiais de todos os tipos. Inicialmente, mobilizou-se basicamente biomassa e minerais metálicos (ouro e prata, por exemplo), com o tempo, somaram-se os combustíveis fósseis e os minerais não metálicos.
A riqueza material da América Latina é tal que é uma das regiões que menos importa materiais, mas proporcionalmente é a região que mais extrai e exporta materiais.
Neste caso, não estamos falando de dinheiro, mas de quantidades físicas de “coisas”, de toneladas de “coisas” que são geradas ou extraídas de nosso continente e vão para outros. Por isso, a análise da extração e da circulação é medida em toneladas, toneladas de coisas.
Os números analisados contemplam quatro tipos de materiais: biomassa, que inclui soja, trigo, cana-de-açúcar, abacate, palma, madeira balsa e muitos mais; combustíveis fósseis, basicamente, petróleo, gás e carvão; minerais metálicos como ouro, prata, cobre, zinco e ferro, e minerais não metálicos, como enxofre, e a estrela principal, o lítio.
Nos últimos 50 anos, a América Latina e o Caribe quadruplicaram a extração doméstica de materiais. Em 2018, a região teve uma extração doméstica de materiais de 10,6 bilhões de toneladas de “coisas”. Desse total, a biomassa extraída representa 48% do total, os minerais metálicos 24%, os minerais não metálicos 21% e os combustíveis fósseis 6%.
É claro que em todas as regiões do mundo são extraídos materiais para ser processados de alguma forma, que depois basicamente são utilizados para moradias e infraestruturas, alimentação, produtos industrializados, mobilidade, serviços, saúde, educação e comunicação. Embora todas as regiões extraiam materiais, na América Latina e no Caribe há duas particularidades.
Em primeiro lugar, a alta quantidade de extração por habitante. Enquanto a extração mundial per capita é de 12,2 toneladas e a da União Europeia é de 10,3 toneladas, a da América Latina e do Caribe é de 16,6 toneladas. O mesmo estudo estima o consumo “sustentável” de materiais em 8 toneladas per capita.
Em segundo lugar, e um dado sumamente relevante, é que das 10,6 bilhões de toneladas extraídas em 2018, 4,3 bilhões foram exportadas. Ou seja, de cada 10 toneladas de “coisas” extraídas, 4 são exportadas. Destas extrações, 60% são destinadas à região da Ásia-Pacífico e 13% à Europa. É importante destacar que, no caso dos minerais metálicos, a quantidade exportada é quase o dobro da utilizada regionalmente.
Assim, os Estados Unidos, através do seu Serviço Geológico (USGS, na sigla em inglês), atualizam regularmente a sua lista de minerais críticos, que inclui 50 minerais em sua última versão. A União Europeia tem a sua própria lista, que inclui 34 minerais e outras matérias-primas, e a China tem 28 minerais. Alguns desses minerais são: zinco, lítio, magnésio, manganês, alumínio, cobalto, cobre, disprósio, aço, níquel, platina, praseodímio, silício, carboneto de silício, térbio e as chamadas terras raras (escândio, ítrio, lantânio, cério, praseodímio, neodímio, promécio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio e lutécio).
As tecnologias para aproveitar as fontes de energia renováveis utilizam muitos desses minerais. Em seu estudo, a pesquisadora Alicia Valero não apenas contabiliza os minerais necessários para a fabricação de tecnologias de energias renováveis, como também suas limitações para o crescimento sustentado da demanda por energia, concluindo que não há possibilidade de sustentar um crescimento infinito da demanda por energia devido à escassez desses minerais.
A América Latina possui grande parte das reservas de muitos destes minerais e bens energéticos comuns. Neste contexto, em que o norte global demanda mais energia e mais minerais, articulam diferentes estratégias para obter os minerais tão valorizados. De golpes de Estado a um delicado delineamento de normativas internacionais.
Cabe lembrar o Golpe de Estado na Bolívia, em 2019, seguido das declarações de Elon Musk, no Twitter: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso” (“We will coup whoever we want! Deal with it”). Recentemente, o atual presidente da Argentina, Javier Milei, declarou: “Musk está extremamente interessado no lítio, assim como o governo dos Estados Unidos e muitas empresas daquele país”.
No mesmo sentido, Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, declarou, em 2022, a necessidade de “cuidar” dos recursos estratégicos da região, ameaçados por China e Rússia. Além disso, em uma entrevista ao Atlantic Council (2023), em 19 de janeiro de 2023, afirmou que: “(…) tivemos uma reunião pelo Zoom com os embaixadores da Argentina e do Chile e, depois, também com o vice-presidente de operações globais da Albemarle [empresa que opera na Argentina e no Chile] para falar sobre o lítio (…) e como podemos ajudar, quem mais podemos trazer para a mesa para nos ajudar a resolver este problema e eliminar nossos adversários, formando uma equipe entre nós e com os outros ”.
Por sua parte, em março de 2023, o Parlamento Europeu votou a Lei de Matérias-Primas Fundamentais.
A necessidade do poder corporativo global é tal porque, sob o paradigma energívoro e do crescimento ilimitado, para alcançar neutralidade nas emissões de carbono até 2040, é necessário multiplicar por 42 vezes a extração de lítio, por 25 a de grafite, por 21 a de cobalto, por 19 a de níquel e por 7 as de terras raras (IEA, 2021).
Esta complexa rede de poder que articula o norte global a partir da narrativa da transição energética corporativa, permeia algumas organizações da América Latina. Assim, a Organização Latino-Americana de Energia - OLADE publicou, em fevereiro de 2024, o documento “Os minerais críticos para as transições energéticas da América Latina e o Caribe” (Siroit, 2024). Alinhando-se às necessidades impostas, considera: “A ALC tem diante de si grandes desafios. Duplicar a produção de cobre, se deseja descarbonizar a economia até 2050 (Net-Zero). Multiplicar por dez a produção de lítio, nos próximos 20 anos”.
Nesse sentido, o documento levanta uma série de desafios sociais, ambientais, econômicos e de governança. Enuncia também que “a mineração se torne um novo vetor de desenvolvimento socioeconômico”. A pergunta: desenvolvimento para quem?
Os modelos implementados até agora só aprofundaram ainda mais as desigualdades, além de aumentar todos os indicadores que apontam um colapso civilizacional iminente. É preciso pensar em transições energéticas populares, com justiça socioambiental e democratizantes, incluídas em uma transição ecossocial e em outras epistemologias do desenvolvimento e a felicidade.
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