13 Julho 2023
“Nada do que uma empresa faça ou deixe de fazer pode isentar o Estado de sua responsabilidade de garantir os direitos humanos”, afirma enfaticamente o relator especial da ONU sobre substâncias tóxicas e direitos humanos, Marcos Orellana, em alusão aos graves danos ambientais que indústrias como a de petróleo deixam nos territórios da América Latina. Sua visão sobre o impacto das más práticas ambientais dessas operações e a falta de sanções dissuasivas não mudou, desde a última vez que esteve no Peru, em fevereiro de 2022.
Naquela oportunidade, havia acabado de visitar o lote 192, uma área de petróleo na região amazônica de Loreto, que conta com 126 locais impactados dos quase 171 reconhecidos pelo Estado peruano. Em uma entrevista a este meio de comunicação, disse: “Que conduta empresarial pode ser chamada de responsável, se diante de passivos ambientais simplesmente aprontam suas malas e vão embora? Isso é um abuso”.
Um ano depois, em meio à agitação de suas atividades em Washington, voltou a conversar com Mongabay Latam sobre os problemas por trás da exploração de hidrocarbonetos, a falta de fiscalização estatal e a necessidade de estabelecer políticas públicas para que essas histórias não voltem a se repetir.
Também se referiu aos resultados da pesquisa As Dívidas do Petróleo, que conseguiu mapear 8.278 resíduos tóxicos na Bolívia, Colômbia, Equador e Peru. Esta pesquisa, coordenada por Mongabay Latam, em parceria com La Barra Espaciadora, Rutas del Conflicto, Cuestión Pública e El Deber, também revelou que 6.371 dos resíduos detectados não foram remediados e que para menos de um terço do total de casos foram encontrados responsáveis.
A entrevista é de Vanessa Romo, publicada por Mongabay, 09-07-2023. A tradução é do Cepat.
Que mensagem fica para as empresas petrolíferas quando os Estados não as responsabilizam pelos passivos ambientais e, além disso, continuam lhes oferecendo lotes de petróleo?
As empresas petrolíferas provocaram uma grave emergência planetária que coloca em risco o gozo efetivo dos direitos humanos em escala mundial. Essa situação afeta de forma desproporcional os povos indígenas, que dependem física e espiritualmente de suas florestas e meio ambiente. Além disso, a exposição a poluentes perigosos gerados pela indústria petrolífera provocou doenças em milhares de pessoas e muitas delas perderam a vida. Isso é incompatível com a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos e com a responsabilidade dos Estados de garantir esses direitos por meio de leis robustas e eficazes.
Essa situação ressalta a importância da primazia dos direitos humanos sobre as considerações comerciais e, em particular, em relação ao direito de viver em um ambiente não tóxico. Contudo, muitas vezes, os Estados dão prioridade às indústrias poluidoras, seja porque suas estruturas são capturadas por conflitos de interesse, seja porque os custos ambientais não são devidamente contabilizados ou porque as pessoas afetadas não têm voz nos processos de tomada de decisões. É o que acontece nas zonas de sacrifício: as pessoas são sacrificadas em seus direitos para que certas empresas tenham lucros econômicos.
Além dos passivos ambientais, cada país tem suas próprias denominações para resíduos de petróleo em seus territórios. No Equador, há fontes de contaminação, no Peru, existem lugares impactados, na Bolívia, temos poços abandonados e, na Colômbia, há impactos não solucionados. Considera que essas diferentes denominações obedecem a decisões políticas?
Quando nas negociações do Acordo de Escazú sobre direitos ambientais na América Latina e no Caribe foram abordados os passivos ambientais, começou-se a utilizar o conceito de “áreas contaminadas” como uma terminologia genérica que poderia acomodar as diversas definições utilizadas nos países da região. Não obstante, as palavras e os termos empregados nas políticas ambientais e energéticas, sem dúvida, podem ter um caráter político.
Nesse sentido, os passivos ambientais refletem a fragilidade institucional e normativa dos Estados e quando esses passivos ambientais são da dimensão revelada pela pesquisa do Mongabay Latam, observa-se que os Estados estão mais orientados a facilitar a atividade extrativista do que a proteger os direitos das pessoas diretamente afetadas por essas indústrias.
Na pesquisa, descobrimos que para menos de um terço dos mais de 8.000 impactos do petróleo na Colômbia, Bolívia, Equador e Peru foram encontrados responsáveis. Como avalia que os países estão respondendo a esses vazios de informação?
A principal responsabilidade de garantir os direitos corresponde ao Estado. Isso inclui a obrigação de estabelecer um marco regulatório eficaz que assegure o respeito aos direitos à vida, à saúde e ao meio ambiente saudável. Além disso, tem a obrigação de informar os passivos ambientais e as empresas responsáveis por gerá-los. No entanto, muitas vezes, vemos que os Estados não têm essa informação, não têm programas para gerá-la ou, inclusive, quando a tem, recusam pedidos de informação.
Cabe ressaltar que nada do que uma empresa faça ou deixe de fazer pode isentar o Estado de sua responsabilidade de garantir os direitos humanos. Dito isto, as empresas também têm de responder: têm a responsabilidade de respeitar os direitos e isso implica que ao menos evitem práticas que estejam proibidas em seus países de origem. Temos visto padrões duplos, uma vez ou outra, nos países da região amazônica. Este respeito pelos direitos por parte das empresas também deve ser traduzido em evitar buscar lucros à custa dos direitos das pessoas e do meio ambiente.
Em seu relatório sobre o impacto das substâncias tóxicas nos direitos humanos dos povos indígenas, destaca-se a vulnerabilidade dos povos indígenas nessas áreas de contaminação. Em “As Dívidas do Petróleo”, verificamos que 670 impactos do petróleo estão em 50 territórios indígenas e 15 áreas protegidas, nos quatro países abordados. Neste cenário, considera que está havendo “violência e injustiça ambiental”, como destaca em seu relatório?
Os passivos ambientais significam uma tremenda injustiça ambiental na região. Diante da entrada de empresas petrolíferas, os povos indígenas que vivem na Amazônia sofrem os graves impactos da contaminação, com consequências adversas em seus corpos, suas moradias, suas fontes de água e alimentação, e também em suas práticas culturais e acesso a plantas medicinais, por exemplo. É uma negação sistemática e em larga escala dos direitos dos povos indígenas.
O enfoque dos direitos humanos aos processos de desenvolvimento busca olhar a realidade pela ótica daquelas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade e sofrem a negação de seus direitos. É por isso que meu relatório sobre resíduos tóxicos e os direitos dos povos indígenas aborda as fontes de contaminação que negam aos povos indígenas o gozo efetivo de seus direitos, entre elas, as atividades petrolíferas, a mineração de ouro com mercúrio, as fumigações de praguicidas altamente perigosos, entre outras atividades altamente poluentes.
Você fala sobre o impacto do petróleo na saúde das pessoas. No entanto, há empresas que apontam que não há “dados credíveis” que relacionem doenças às operações petrolíferas, como é o caso da empresa Occidental Petroleum Corporation (Oxy), no Peru. A partir de sua relatoria, como observa isto?
As atividades de extração de hidrocarbonetos geram poluentes perigosos, e muitas empresas simplesmente os descartam no meio ambiente. Isso gerou a proliferação de zonas de sacrifício, que são áreas extremamente contaminadas. A ciência revelou a relação causal que existe entre a exposição a esses perigosos poluentes e diversos efeitos à saúde, muitos deles graves e até fatais. No entanto, os sistemas jurídicos dos países ainda não respondem adequadamente aos desafios da sociedade contemporânea, onde os produtos químicos invisíveis geram riscos e danos.
Existem muitos casos de pessoas que vivem em locais contaminados e não sabem por que adoeceram. Não sabem porque não possuem os meios para provar suas consequências. É aí que os sistemas jurídicos dos países devem evoluir para garantir o acesso à justiça, incluindo a prova dinâmica do fato, conforme estabeleceram tribunais na Argentina e México, que exige que uma empresa demonstre que não é responsável por um impacto.
Em 2022, após a visita que fez ao lote 192, em Loreto, no Peru, encontrou algumas lições que podem servir a outros casos de contaminação por petróleo?
A situação do Lote 192 é responsável por contínuos derramamentos de óleo, falta de remediação e de assistência médica adequada, entre outras deficiências que refletem o abandono do Estado de seu dever de garantir os direitos dos povos indígenas que foram afetados. A grande lição para outros casos é a importância da prevenção da contaminação e a necessidade imperiosa de que o Estado garanta o respeito ao direito dos povos indígenas ao consentimento prévio, livre e informado.
Conhece alguma experiência bem-sucedida em que o Estado tenha avançado na resolução desses problemas dos passivos ambientais?
Vários países começaram a identificar qual é o grau e tipo de poluição nas áreas contaminadas para implementar planos de restauração. Contudo, a restauração desses danos pode custar muito. Um caso específico é o da Itália, país que visitei oficialmente e que possui grandes áreas contaminadas e passivos ambientais, incluindo poluentes orgânicos persistentes como as dioxinas e os bifenilos policlorados. O governo italiano, com alguns atrasos e falhas, promoveu programas de limpeza que demonstram uma consciência da gravidade do problema e a necessidade de agir.
Qual é a sua opinião sobre o que os governos do Peru, Equador, Colômbia e Bolívia estão fazendo em relação a esses passivos do petróleo?
Os números revelados pela pesquisa As dívidas do petróleo refletem uma grande contaminação por passivos ambientais e isso explica as falhas e fragilidades institucionais e normativas do Estado. Não obstante, na região, vejo que existem países que estão a caminho de implementar o Acordo de Escazú sobre os direitos de acesso à informação, participação e justiça em matéria ambiental.
Esse compromisso me parece importante destacar, porque os passivos ambientais são muitas vezes o resultado da aplicação mal-entendida do desenvolvimento sustentável. Além disso, o Acordo de Escazú expressamente requer que cada parte possua sistemas de informação atualizados. Esses sistemas podem incluir a lista de áreas contaminadas, por tipo de poluente e localização.
Os especialistas de nosso material especial destacavam que as empresas e os países têm uma visão muito limitada do impacto ambiental desses resíduos do petróleo. O que você recomenda aos governos em relação a essas áreas de contaminação por petróleo?
Em vários países, o centralismo caracterizado pelos governos faz com que, muitas vezes, as dinâmicas políticas se concentrem em disputas de poder nas capitais. Frequentemente, o que acontece longe da capital não é visível ao público, nem às autoridades. Daí a importância de assumir o compromisso de se gerar e divulgar informações detalhadas e completas sobre as áreas contaminadas: o tipo de poluente e a localização. Essa informação também deve identificar as empresas responsáveis, bem como as medidas exigidas para a reparação integral e os processos de participação das comunidades na reparação.
Qual seria a solução para interromper a geração de mais resíduos tóxicos de petróleo, considerando que os países continuam dependendo dessa indústria?
A prevenção da poluição requer marcos regulatórios fortes e isso significa o fortalecimento daquelas instituições do Estado que têm como mandato a proteção do meio ambiente, a avaliação dos impactos ambientais e a fiscalização do cumprimento da normativa. Passa também pelo fortalecimento das instâncias judiciais, porque em muitos países as multas e outras medidas tomadas pelas autoridades para buscar o cumprimento das normas ambientais são judicializadas.
É possível sair da dependência do petróleo e completar a transição energética na América Latina?
De acordo com a evidência científica, a concentração de gases do efeito estufa na atmosfera levou a humanidade a estar diante de uma verdadeira emergência climática. Frente à ameaça planetária que supõe a mudança climática, essa transição energética não é uma opção, mas um imperativo para a sobrevivência da espécie humana no planeta.
Nas próximas eleições no Equador, deve-se decidir se será proibida ou permitida a exploração de petróleo no Parque Nacional Yasuní e a exploração mineira na reserva da biosfera Chocó Andino. O presidente Lasso disse que isso causaria um grande problema econômico. Como equilibrar economia e preservação ambiental, diante de um caso como esse?
Desde a Cúpula da Terra de 1992, o desenvolvimento sustentável tem sido o paradigma utilizado para conciliar desenvolvimento e meio ambiente. No entanto, os números de passivos ambientais na pesquisa do Mongabay Latam refletem que esse paradigma está em desequilíbrio na região. Ou seja, o desenvolvimento sustentável tem servido para promover atividades poluidoras em detrimento da integridade ambiental e dos direitos das pessoas, sobretudo dos povos indígenas.
Reequilibrar o paradigma do desenvolvimento sustentável supõe a articulação real dos direitos de acesso à informação, à participação informada na tomada de decisões ambientais, e o acesso à justiça e remédios reais e eficazes. Significa também reconhecer que o processo de desenvolvimento deve estar direcionado pelo respeito aos direitos humanos. A vida e a saúde das pessoas dependem de ecossistemas saudáveis. A civilização humana depende de um meio ambiente saudável, limpo e sustentável.
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A extração de petróleo e a proliferação das zonas de sacrifício. Entrevista com Marcos Orellana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU