09 Dezembro 2024
A linguagem “nupcial” está bem viva na Igreja, e a forte resistência à linguagem inclusiva, tanto no Catecismo quanto na liturgia, deixam claro que a linguagem de gênero para a Igreja e para a humanidade não são “meras palavras”.
Publicamos aqui a conferência “Sexismo e (des)masculinização da Igreja”, proferida pela Prof.ª Dr.ª Susan A. Ross (emérita), da Loyola University Chicago, nos Estados Unidos. A conferência, realizada em novembro passado, fez parte do Ciclo de Estudos “O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja” promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O texto da conferência foi originalmente publicado no capítulo “The Church as ‘Spotless Bride:’ A Feminist Critique of a Dangerous Metaphor”, no livro organizado por Daniel Minch e Christopher Cimorelli, intitulado “One Bread, One Body, One Church: The Ecclesia of Christ Today in Honor of Bernard P. Prusak” (Leuven: Peeters Press, 2021, pp. 261-279).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesta conferência, tentarei oferecer uma resposta ao uso frequente da metáfora feminina da “Noiva de Cristo” no ensino e na literatura da Igreja, argumentando que a Igreja como um todo (isto é, tanto o clero quanto o laicato) precisa lidar com os modos pelos quais a própria Igreja foi feminilizada, com o que isso significa e com o que seria preciso para avançar como uma Igreja de igualdade genuína para mulheres e homens.
Escrevo isso no rastro de várias revelações de abuso sexual na Igreja: as revelações de 2018 sobre os ataques do cardeal Theodore McCarrick a seminaristas, o relatório do Grande Júri da Pensilvânia e os nomes de padres que foram convincentemente acusados de abuso sexual de menores, divulgados por várias dioceses e províncias de ordens religiosas.
Também ressalto que, no Sínodo sobre a Família, de outubro de 2018, as mulheres foram excluídas de toda possibilidade de voto nas deliberações, enquanto homens religiosos não ordenados receberam um status de voto [1]. Mais recentemente, o Sínodo sobre a Sinodalidade respondeu ao apelo do Papa Francisco por transparência. No entanto, o trabalho das duas comissões sobre a possibilidade das diáconas foi notavelmente pouco transparente. O escândalo dos abusos sexuais do clero, devastadores para as vítimas e suas famílias, é também um escândalo de clericalismo, que eleva o clero acima dos leigos, especialmente das leigas. O estado elevado dos clérigos e a feminilização do laicato é a preocupação desta reflexão.
Muitas mulheres, incluindo esta escritora, encontraram-se fazendo a mesma pergunta que Bernard Prusak fez em 2006: “Existe algum futuro para as mulheres na Igreja?”. Mas a pergunta pode ser ampliada: “Existe algum futuro para um papel maior do laicato na Igreja?”. A fim de haver um futuro diferente do presente, um passo essencial a ser dado é desafiar a natureza feminina atribuída à Igreja e tudo o que está associado a isso. Existem conexões significativas entre os modos pelos quais as mulheres e o laicato foram descritos e compreendidos. Ambos são vistos como femininos e necessitados de liderança masculina. Essas caracterizações tornam ainda mais difícil imaginar maneiras de incorporar mais plenamente suas vozes na estrutura e na governança da Igreja.
Este ensaio seguirá as seguintes etapas: primeiro, revisarei as maneiras pelas quais a linguagem conjugal nas escrituras hebraicas e no Novo Testamento foi interpretada por estudiosas feministas. Mostrarei como a linguagem de Israel e, mais tarde, da Igreja, ao ter um caráter “nupcial” em relação a Deus, embora com raízes antigas, é profundamente problemática.
Segundo, examinarei a linguagem usada na e pela Igreja, em textos como o Catecismo da Igreja Católica e na teologia recente, para mostrar como a feminilidade é reforçada não apenas intelectualmente, mas também afetivamente. Também farei uma breve análise dos comentários do Papa Francisco sobre as mulheres. O que esses exemplos revelam é que a feminilização do povo resulta não apenas em estruturas de poder desiguais, mas também em atitudes e ações que são potencial e verdadeiramente prejudiciais às mulheres, assim como ao laicato.
Sugerirei, então, uma linguagem alternativa, que não apenas evita essas armadilhas, mas também sugere um sentido mais robusto de empoderamento para as mulheres e o laicato.
A linguagem esponsal para a relação humano-divina tem uma longa história na religião. No antigo Oriente Médio, os deuses e as deusas eram modelos de relacionamentos conjugais para os seres humanos, e a união deles era pensada para assegurar a fertilidade das colheitas. Embora as Escrituras hebraicas repetidamente atacam a adoração das divindades dos vizinhos cananeus israelitas, as práticas religiosas do antigo Israel revelam a persistência da devoção contínua do povo a uma variedade de deuses e deusas.
Até que ponto a religião israelita pode ser considerada verdadeiramente monoteísta é uma questão à qual não estou preparada para responder. Mas o lugar da linguagem conjugal e o uso da metáfora do casamento para transmitir uma mensagem sobre a relação das pessoas com o divino é um tema que recebeu uma maior atenção crítica nos últimos anos. Existem alguns estudiosos que veem a metáfora do casamento como positiva, alguns dos quais serão discutidos na próxima seção. Há uma longa tradição para essa linguagem, com raízes profundas em religiões antigas.
Mas as estudiosas feministas desconfiam das formas pelas quais essa metáfora tem sido usada para retratar Israel como a esposa infiel ou mesmo como a prostituta e para justificar sua punição como algo devido a uma esposa que trai seu marido fiel.
O livro “Battered Love: Marriage, Sex and Violence in the Hebrew Prophets” [Amor maltratado: casamento, sexo e violência nos profetas hebreus], de Renita Weems, apresenta uma abordagem atenciosa, porém mordaz, do uso da metáfora do casamento em Oseias, Ezequiel e Jeremias, e seu efeito não apenas no passado, mas também no presente [2]. Weems enfatiza o poder da metáfora no uso profético de imagens conjugais:
“O benefício duradouro de convencer as audiências a verem a relação entre Israel e Deus como um casamento era que os profetas podiam explorar o que certamente seria uma gama de atitudes amplamente mantidas e profundamente sentidas sobre o casamento, a fim de moldar o pensamento da audiência sobre a reivindicação de Deus sobre Israel. Que melhor maneira de personificar essa reivindicação do que usar como analogia um relacionamento humano, em que questões de poder, decoro, propriedade e pureza estavam profundamente em jogo?” [3].
A relação entre Oseias e sua esposa Gomer, como o profeta conta, reflete o relacionamento entre Deus e Israel. Do modo como a história é contada, Israel tem sido infiel a Deus devido à sua prática de adoração aos ídolos; o papel dos profetas é trazer o povo de volta à adoração ao Deus único. Para tornar esse relacionamento vivo, Oseias é instruído a se casar com Gomer, uma “prostituta”, e eles têm três filhos, todos nomeados simbolicamente (Punição, Não-amada, Não-meu-povo [Os 1,4-9]). Gomer é descrita como uma adúltera, e Oséias expressa sua fúria pelas ações dela, humilhando-a ao despi-la e revelando “a vergonha dela” diante de seus amantes. Embora ela seja infiel, Oseias não a abandonará, mas sua fidelidade a ela também cobra um alto preço dela. A história pretende exemplificar a fidelidade de Deus a Israel, apesar de sua infidelidade a Deus.
O estudo de Weems sobre a metáfora do casamento em Oseias, Ezequiel e Jeremias se concentra nas maneiras pelas quais o casamento é um relacionamento familiar, que evoca sentimentos poderosos. Como ela observa, “as pessoas devem se importar com a imagem social que a metáfora está capturando” [4]. Mais do que as imagens de, digamos, uma videira ou de um rebanho de ovelhas, a metáfora do casamento explora sentimentos e atitudes profundos sobre os relacionamentos entre homens e mulheres. Nesse relacionamento, os homens são os feridos no poder, e as mulheres simbolizam a esposa infiel e pecadora, Israel. Então, a metáfora se torna mais do que “apenas uma metáfora”: ela se baseia na dinâmica real dos relacionamentos conjugais, em um mundo no qual, como Weems observa, uma mulher pode ser forçada a se casar com seu estuprador, a atividade de uma mulher tem o potencial de envergonhar seu marido e sua família, e no qual o corpo de uma mulher precisa, acima de tudo, ser controlado [5].
Weems observa ainda que “a imagem da esposa subjugada e do marido conquistador é uma cena familiar na literatura ocidental”, e, acrescentaria eu, também em expressões culturais populares como os filmes [6]. Pensemos na cena do clássico “E o Vento Levou” (1939), quando Rhett Butler carrega à força sua esposa Scarlett para a cama após uma briga e no qual, na cena seguinte, ela é retratada com um sorriso cúmplice no rosto. Outros exemplos mais recentes poderiam incluir as telenovelas latino-americanas, as histórias de vampiros, os filmes da Disney e “Game of Thrones” [7]. Como Weems observa, “as metáforas importam, enfim, porque nos ensinam como imaginar o que antes permanecia inimaginável” [8].
Certamente, nem toda representação do casamento nas escrituras hebraicas é violenta ou humilhante para as mulheres. Há os relacionamentos complicados de casais como Abraão e Sara (em que Abraão mente para os egípcios sobre Sara ser sua esposa), Jacó e Rebeca (em que Jacó foi forçado a se casar com a irmã de Rebeca, Lia, primeiro), ou Davi e Betsabeia (cujo relacionamento se baseou no assassinato do primeiro marido de Betsabeia, Urias, e no qual até mesmo o profeta Natã retrata Betsabeia como propriedade do pobre Urias). Há também o relacionamento de Rute e Boaz, em que Rute inicia sua relação sexual. Também podemos olhar para o relacionamento do casal (não casado) no Cântico dos Cânticos, em que a mulher tem uma voz, e o relacionamento sugere uma alegre mutualidade.
No entanto, o antigo Israel era inegavelmente uma sociedade patriarcal, na qual o valor de uma mulher frequentemente dependia de sua capacidade de gerar filhos (de preferência filhos homens) e na qual sua potencial infidelidade representava uma ameaça à estabilidade da sociedade israelita. A metáfora do casamento era uma maneira poderosa de retratar o relacionamento entre Israel e Deus, mas também jogava com os relacionamentos humanos reais, nos quais o controle masculino e a submissão feminina eram inquestionáveis. Há, é claro, outras mulheres que assumem o papel de juízas ou guerreiras (Judite, Débora, Ester), mas elas são exceções.
Embora seu tema fosse a literatura apócrifa e pseudoepigráfica do antigo Israel e do cristianismo primitivo, Bernard Prusak chegou a uma conclusão semelhante sobre as consequências das formas pelas quais as mulheres eram retratadas em variações das histórias da origem do mal. Ele observa que os autores antigos “explicaram a existência de facto do mal ao indiciar a mulher como sua fonte e, portanto, também tinham tanto uma explicação teológica quanto a justificativa para manter os fatos culturais da dominância masculina e da subserviência feminina” [9].
Aqui, novamente, as mulheres são os meios pelos quais as dimensões mais negativas do comportamento humano são retratadas. Aqui, a conexão entre metáforas e práticas reais é reforçada ainda mais por meio de imagens familiares de mulheres não confiáveis e irresponsáveis.
A metáfora do casamento encontrou vida renovada no cristianismo primitivo. Embora sua autoria paulina seja debatida, a Carta aos Efésios tem status canônico e se baseia na linguagem do casamento para modelar as relações dentro da comunidade cristã primitiva. Aqui, a linguagem conjugal é usada para descrever um relacionamento diferente: o da noiva imaculada e de seu noivo Cristo.
Em seu artigo “The Bride of Christ (Ephesians 5:22-23): A Problematic Wedding?” [A Noiva de Cristo (Efésios 5:22-23): um casamento problemático?”], Carolyn Osiek argumenta que essa passagem estabelece a Igreja como sucessora de Israel e como amante de Deus, e conclui que, “enquanto a metáfora do casamento estiver em jogo, o simbolismo de gênero está fixado” [10].
Assim como na metáfora do casamento nos profetas hebreus, a mulher se torna o símbolo do povo, mas, neste caso, ela não é a prostituta, mas a “noiva imaculada”. A linguagem nupcial de Efésios também tem um contexto diferente do de Oseias. Em vez do relacionamento problemático entre o marido fiel e a esposa infiel, o texto de Efésios se preocupa com as relações domésticas na comunidade cristã primitiva [11].
Osiek argumenta que esse texto serve como uma forma de entender a “formação de relações adequadas dentro do lar como microcosmo da Igreja” [12]. Além disso, surge no texto uma preocupação com a pureza, e Osiek observa que a associação disso com o Batismo teria sido óbvia para as primeiras comunidades cristãs. Assim como com a esposa adúltera nos textos proféticos do Primeiro Testamento, o significado da castidade e da pureza femininas não é relevante apenas para a estrutura familiar, mas também para o simbolismo civil. Aqui Osiek cita Margaret MacDonald: “Assim como nas cartas de Paulo (...) há a ideia, em Efésios 5,21-33, de que a união com um corpo feminino puro tem uma importância simbólica ao expressar a natureza da separação em relação a um modo de vida passado. Como um reflexo da Igreja santa e imaculada, a noiva pura contrasta com o mundo maligno lá fora” [13]. A castidade feminina é identificada com a ortodoxia, e o relacionamento análogo do marido com a esposa e de Cristo com a Igreja é firmemente estabelecido.
Duas questões estão em jogo aqui: uma é a relação de dominação/submissão do marido com a esposa. A segunda é a importância da pureza por parte da esposa. A relação hierárquica de submissão nessa passagem é frequentemente explicada – e até mesmo desculpada – no sentido de que o propósito é a submissão mútua, como em Ef 5,21: “Sejam submissos uns aos outros no temor a Cristo”. Mas Osiek observa que, “apesar da exortação à submissão mútua em 5,21, aqui, no entanto, a submissão é uma ‘coisa de mulher’. As esposas devem obedecer, assim como os filhos e os escravos; a terminologia é diferente” [14]. O marido é a “cabeça” da esposa, assim como Cristo é a “cabeça” da Igreja. E, como Osiek observa ainda, “o termo usado para submissão carrega conotações de submissão respeitosa em vez de servil, mas, de uma forma muito definitiva, de um sujeito inferior a um superior de autoridade” [15]. A questão é que a Igreja tem uma relação de sujeição a Cristo, assim como a noiva tem com seu esposo. Aqui, novamente, ressalta-se o caráter feminino da Igreja.
A crítica de Osiek a esse uso da linguagem é complexa, aprofundando-se no modo como são evocados os ecos do tradicional banho ritual judaico antes do casamento, como a noiva virgem “tímida e pura” é apresentada ao seu marido presumivelmente mais experiente, e como a “liderança” é usada para descrever a relação de Cristo com sua Igreja. Sua questão central é que esse simbolismo ainda é mantido como justificativa para o sacerdócio exclusivamente masculino e para as relações de gênero eclesiais no presente [16]. Vale a pena citar sua conclusão na íntegra:
“Eu argumentaria que apresentar a Igreja como feminina e, acima de tudo, como noiva de Cristo, longe de elevar a dignidade das mulheres, de fato prejudicou a percepção da capacidade das mulheres de representar o divino e, portanto, a dignidade humana e cristã fundamental das mulheres. De nada adianta afirmar a plena dignidade e igualdade das mulheres com os homens se a nossa linguagem, o nosso imaginário e as nossas metáforas continuam perpetuando a desigualdade” [17].
Eu destacaria aqui o poder da linguagem e da metáfora para moldar tanto o pensamento quanto o sentimento e a difusão dessa metáfora em grande parte da linguagem da Igreja. Neste caso, as palavras têm um poder real.
Será que a linguagem contemporânea da Igreja “continua perpetuando a desigualdade”? Um lugar lógico para explorar a linguagem usada pela Igreja é o Catecismo da Igreja Católica. O Catecismo é considerado um dos textos, senão o texto mais imperativo para o ensino da Igreja. Dentro do Catecismo, a própria Igreja é considerada na discussão sobre a seção do Credo Niceno: “Creio na Santa Igreja Católica” [18].
A seção sobre a Igreja começa considerando “Os nomes e as imagens da Igreja” (§ 751). Começando pela raiz grega do termo latino eclesia, o Catecismo primeiro descreve a Igreja como a assembleia do povo. A seção então continua listando outros termos que são usados para descrever a Igreja: Povo de Deus, redil, campo cultivado, construção de Deus, Jerusalém (a cidade santa). Essa lista de termos está muito de acordo com a forma como a Igreja é descrita na Lumen gentium, a constituição dogmática do Vaticano II sobre a Igreja [19]. A lista de termos, no entanto, culmina com esta linguagem familiar:
“A Igreja é também chamada ‘Jerusalém do Alto’ e ‘nossa mãe’ (Gl 4,26); é também descrita como a Esposa imaculada do Cordeiro sem mancha, a qual Cristo ‘amou, pela qual Se entregou para a santificar’ (Ef 5,25-26), que uniu a Si por um vínculo indissolúvel, e à qual, sem cessar, ‘alimenta e presta cuidados’ (Ef 5, 29)” (§ 757).
Ao longo de toda a seção sobre a Igreja, o pronome usado para a Igreja é sempre feminino. É interessante notar que a expressão para a humanidade é “homem”, como se encontra na expressão que se refere ao fato de que “Deus chama todos os homens” (§ 759). É importante lembrar aqui que, no processo de tradução do texto do Catecismo do latim para o inglês, a primeira versão usou uma linguagem “inclusiva”, evitando referências a toda a humanidade como “homens” e incluindo “irmãs” quando os “irmãos” eram mencionados, e ao se referir a “humanidade” e “povo” em vez de “homem”. Essa inclusividade, no entanto, acabou sendo questionável e inaceitável para muitos, e depois que protestos foram feitos ao Vaticano, todo o Catecismo foi retraduzido, usando o tradicional “homem genérico” para humanidade e uma linguagem exclusivamente masculina para Deus [20].
A descrição da Igreja no Catecismo continua com mais referências femininas à Igreja:
- “Assim como Eva foi formada do lado costado de Adão adormecido, assim a Igreja nasceu do coração trespassado de Cristo, morto na cruz” (§ 766).
- “Porque é ‘convocação’ de todos os homens à salvação, a Igreja é, por sua própria natureza, missionária, enviada por Cristo a todas as nações, para de todas fazer discípulos” (§ 767).
- “Para que a Igreja possa realizar a sua missão, o Espírito Santo ‘enriquece-a...” (§ 768).
- “Vivendo na terra, ela tem consciência de viver no exílio, longe do Senhor...” (§769).
O Catecismo, então, passa a dar corpo a algumas das metáforas tradicionais para a Igreja: Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo (§§ 781-795). Depois, no § 796, a expressão “Noiva de Cristo” é reintroduzida dentro da seção sobre o “Corpo de Cristo”. Aqui, Cristo é descrito como o “Esposo”, e “[a] Igreja é a Esposa imaculada do Cordeiro imaculado”.
À luz da crítica de Osiek à conjunção das expressões de liderança e a noiva, é interessante notar as notas de rodapé em referência a Efésios 5. Mais adiante, na seção que explica “A Igreja é Santa”, há mais referências a Efésios 5 e à Igreja como noiva: “Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é proclamado ‘o único Santo’, com o Pai e o Espírito, amou a Igreja como sua esposa” (§ 823). E, na seção sobre “Os fiéis de Cristo: hierarquia, leigos, vida consagrada”, a “virgem” é descrita como “imagem escatológica da Esposa celeste e da vida futura” (§ 923).
O momento histórico do Catecismo e as controvérsias em torno de sua tradução são significativos. O Catecismo foi oficialmente promulgado pelo Papa João Paulo II, em 1992. Apenas quatro anos antes, em 1988, o papa emitira sua encíclica Mulieris dignitatem, “sobre a dignidade e a vocação da mulher” [21]. Este documento foi, de muitas formas, uma resposta ao movimento global das mulheres que surgiu nos anos 1960 a 1980, à ordenação de mulheres em muitas denominações protestantes a partir dos anos 1950, assim como aos esforços malsucedidos dos bispos católicos dos Estados Unidos para escrever uma carta pastoral sobre as preocupações das mulheres [22].
Em Mulieris dignitatem, João Paulo II dá uma atenção especial à dinâmica esponsal entre homens e mulheres, e ao modo como ela se aplica à Igreja. Em sua interpretação da maneira como Jesus se relacionava com as mulheres, João Paulo II observa: “No comportamento de Cristo em relação à mulher realiza-se de maneira exemplar aquilo que o texto da Carta aos Efésios exprime com o conceito de ‘esposo’. Precisamente porque o amor divino de Cristo é amor de Esposo, esse amor é o paradigma e o exemplar de todo amor humano, particularmente do amor dos homens-varões” [23].
Os defensores desse posicionamento enfatizam a conexão entre a metáfora do casamento e a Igreja. Donald Keefe, por exemplo, em resposta a questionamentos sobre a ordenação de mulheres, escreve:
“Se é verdade que a masculinidade e a feminilidade são sacramentais, e que toda a existência humana está envolvida nessa assinatura, deve-se concluir que os únicos paradigmas pelos quais o mistério e o significado da masculinidade e da feminilidade podem ser abordados são aqueles fornecidos pelo relacionamento conjugal entre Cristo e sua Igreja, entre a Cabeça e o Corpo, uma polaridade intrínseca à Nova Aliança, à Nova Criação, à imagem de Deus” [24].
Um dos principais defensores teológicos modernos do entendimento da Igreja como noiva é o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988). Em sua obra de vários volumes “The Glory of the Lord” [A Glória do Senhor], assim como em seus outros escritos, Balthasar repetidamente se volta para Maria e para o “princípio mariano” como central para a natureza da Igreja [25]. Balthasar também baseia seu entendimento em Efésios 5, argumentando – ao contrário do consenso acadêmico – que Paulo foi o verdadeiro autor da carta [26].
Como afirma seu intérprete W. T. Dickens, “em Maria, e somente nela, a Igreja é, ao mesmo tempo, a mãe imaculada de Cristo, bem como sua noiva imaculada” [27]. Maria exemplifica melhor a dimensão receptiva da Igreja. Da mesma forma, na declaração do Vaticano de 1976 sobre a questão da ordenação de mulheres, Inter Insigniores, Cristo é descrito como “Esposo e Chefe da Igreja”. Como noivo, observa o documento, Jesus é necessariamente um homem [28].
Esses exemplos deixam claro que a linguagem “nupcial” está bem viva na Igreja nos séculos XX e XXI, e a forte resistência à linguagem inclusiva no Catecismo, assim como outros esforços para ser mais inclusiva na linguagem litúrgica, deixam claro que a linguagem de gênero para a Igreja e para a humanidade não são “meras palavras”.
Alguns anos atrás, Richard John Neuhaus, um convertido do luteranismo ao catolicismo, declarou que a linguagem inclusiva era “herética” e que qualquer esforço para tornar a linguagem litúrgica mais inclusiva deveria ser descartado como obra de “zelotes” [29].
Vale a pena ressaltar os debates que surgiram com a publicação do “The Inclusive Language Lectionary” [Lecionário da linguagem inclusiva], com argumentos para mudar a linguagem litúrgica em relação a imagens principalmente paternas orientadas para Deus, como no “Pai-Nosso”, e o modo como a humanidade deveria ser referida, e se deveria ou não incluir a expressão “Mãe” assim como “Pai” ao mencionar o divino [30].
A questão que estou levantando neste ensaio está relacionada, embora não seja idêntica, a esse debate mais amplo. Contestar a linguagem, que é antiga e também familiar aos ouvidos dos fiéis, é muito arriscado. No entanto, a perpetuação da expressão da “noiva imaculada” para a Igreja evoca a jovem inocente e virgem em relação ao homem que possui tanto a experiência quanto a responsabilidade de ser seu superior e zelador. Ser sem pecado, inocente e receptivo é muito mais característico de uma criança do que de uma mulher adulta se preparando para assumir um compromisso vitalício com outra pessoa. E, como um modelo para a Igreja, essa metáfora é problemática não apenas pela sua concepção das mulheres, mas também pela maneira como leigos e leigas são caracterizados. Também pode sugerir a forte relutância em admitir a pecaminosidade da própria Igreja [31].
Alguns exemplos mais recentes vêm do Papa Francisco. Em seu voo de volta da Jornada Mundial da Juventude em 2013, o Papa Francisco foi questionado sobre o papel das mulheres na Igreja. Esta foi, em parte, sua resposta:
“Uma Igreja sem as mulheres é como o Colégio Apostólico sem Maria. O papel das mulheres na Igreja não é só a maternidade, a mãe de família, mas é mais forte: é precisamente o ícone da Virgem Maria, de Nossa Senhora; aquela que ajuda a Igreja a crescer. Mas pensem que Nossa Senhora é mais importante que os Apóstolos! É mais importante! A Igreja é feminina: é Igreja, é esposa, é mãe. Mas, na Igreja, a mulher não deve apenas... - não sei como dizer em italiano – o papel da mulher na Igreja não deve circunscrever-se a ser mãe, trabalhadora... Limitá-la não! É outra coisa!”
E, em resposta a uma pergunta de um jornalista naquele voo, o Papa Francisco respondeu: “Eu queria explicar um pouco mais o que eu disse sobre a participação das mulheres na Igreja: não pode ser limitada ao fato de ser coroinha ou a presidente da Caritas, catequista... Não! Deve ser mais, mas profundamente mais!” [32].
Nos seis anos após a eleição do Papa Francisco, ele pediu uma presença “mais incisiva” para as mulheres na Igreja [33], nomeou mulheres teólogas para a Comissão Teológica Internacional (ITC) e estabeleceu uma comissão para estudar (novamente) a questão da ordenação de mulheres como diáconas [34]. No entanto, em suas observações de 2014 sobre a nomeação de mulheres teólogas para a ITC, o Papa Francisco comentou que “elas [as teólogas] são a cereja do bolo” [35].
Para muitas mulheres, incluindo esta escritora, o Papa Francisco tem sido, de muitas maneiras, uma lufada de ar fresco na Igreja, com sua preocupação com os pobres, sua comparação da Igreja a um “hospital de campanha”, seus gestos profundos de solidariedade com migrantes e refugiados, e sua preocupação com a crise ecológica. Sua saudação desarmada às multidões na Praça de São Pedro após sua eleição e sua insistência em viver na hospedaria em vez dos apartamentos papais o tornaram querido para muitos, embora também tenha afastado alguns de seus críticos conservadores.
Mas sua surdez às preocupações das mulheres por uma voz com poder real na Igreja também tem sido frustrante: sua insistência de que a questão da ordenação está “fechada”, de que o poder de um pároco pertence às governantas, sua comparação da Europa com uma “avó que não é mais fértil e vibrante”. É claro que a agenda de Francisco está focada nas pessoas mais marginalizadas econômica e socialmente no mundo – os refugiados, a Terra devastada, os pobres – e que a prioridade da Igreja deve estar focada em ministrar a quem têm menos. Certamente, mulheres e crianças constituem a maioria dos marginalizados, mas a questão da marginalização devido ao gênero não é abordada. Embora seja decepcionante, há também algo de revelador nos comentários de Francisco. Ou seja, eles se baseiam em ideias e imagens comumente assumidas das qualidades maternas, mas também virginais das mulheres: uma combinação paradoxal que vê as mulheres não como seres humanos reais que levam vidas complexas, mas como ícones idealizados.
Nos anos seguintes às revelações de abuso sexual clerical que vieram à tona para o grande público, houve repetidos apelos por uma maior participação leiga na governança da Igreja [36]. Muitas pessoas argumentaram que, se as pessoas casadas tivessem um papel mais significativo na governança de paróquias e dioceses, haveria uma preocupação muito maior com as vítimas, principalmente crianças e adolescentes, em vez da reputação (e das finanças) do padre ou da Igreja.
Joseph Imesch, o falecido bispo de Joliet, Illinois, Estados Unidos, foi questionado por um advogado, em 1995, em um depoimento sobre um padre que havia sido acusado de molestar uma criança em outra diocese, mas que, no entanto, foi levado para sua diocese.
“Se tivesse um filho”, perguntou o advogado ao bispo durante o depoimento para uma ação civil, “o senhor não ficaria preocupado que o padre com quem eles estavam celebrando a missa tivesse sido condenado por abuso sexual de crianças?” Imesch respondeu: “Eu não tenho nenhum filho” [37].
A falta de empatia e de imaginação de Imesch fala por si só.
Em março de 2003, um congresso sobre as questões eclesiológicas levantadas pela crise do abuso sexual clerical foi realizado na Universidade de Yale [38]. O livro de ensaios do congresso se concentra no passado, no presente e no possível futuro das estruturas da Igreja. Os ensaios são reveladores em sua revisão das tradições passadas e das formas pelas quais as estruturas hierárquicas da Igreja atual foram normalizadas e aceitas como “dadas”.
Por exemplo, os comentários introdutórios do bispo Donald W. Wuerl descrevem a Igreja Católica como uma “realidade divinamente estabelecida” e afirmam que “a hierarquia e a tradição apostólica são intrínsecas à Igreja” [39]. Seus pronomes para a Igreja também são femininos. Para ser justo, Wuerl aponta para a necessidade de incluir o laicato nos conselhos paroquiais e diocesanos, de compartilhar relatórios financeiros com o laicato e, em geral, de uma maior abertura por parte do clero. No entanto, vale a pena questionar algumas de suas suposições. A renúncia de Wuerl, em janeiro de 2019, devido à sua aparente cumplicidade no acobertamento de abusos sexuais clericais, não acrescenta muito à sua reputação.
Em sua resposta a Wuerl, o jornalista Peter Steinfels expressou seu desconforto com alguns dos comentários de Wuerl:
“Há algo mais do que um pouco de desconcerto na rápida mudança da ‘constituição’ da Igreja de Jesus para sua manifestação contemporânea, repleta de referências a uma única frase ao Evangelho, a ensinamentos magisteriais sobre fé e moral, e ao direito canônico, seguidos na frase seguinte por uma referência à ‘estrutura da fé e da ordem que é essencial para a Igreja’” [40].
Os ensaios subsequentes no volume oferecem um quadro rico do desenvolvimento histórico das estruturas de governo eclesiais. Francine Cardman, uma historiadora do cristianismo primitivo, observa a necessidade de “reconhecer a narrativa ‘mítica’ das origens eclesiais”, a fim de permitir “um quadro mais preciso da complexidade e da diversidade da Igreja Católica” [41].
Francis Oakley, historiador, observa que o “cansado refrão litúrgico” de que “a Igreja não é uma democracia (...) é usado quase sempre em uma tentativa de reivindicar estruturas eclesiais altamente autoritárias” [42].
Os comentários do advogado canônico John Beal são particularmente apropriados para este ensaio: “Em uma Igreja estruturada como uma sociedade de desiguais, ninguém é mais desigual do que as pessoas leigas” [43]. Ele elabora sobre esse ponto:
“As pessoas leigas são principalmente receptoras passivas de admoestações clericais (...) a Igreja (...) ainda não atingiu o ponto em que as pessoas leigas podem ser respeitadas e tratadas como adultos inteligentes e talentosos com algo a contribuir para a edificação da própria Igreja” [44].
E em seu ensaio o historiador John T. McGreevey “destaca a incapacidade da última geração de líderes católicos de separar a autoridade dentro da Igreja do gênero, e as consequências devastadoras para a credibilidade católica” [45]. Devo observar que McGreevey não está discutindo o ponto específico que eu estou tentando fazer, ou seja, que a feminilização histórica da Igreja resultou em um laicato feminilizado, passivo e impotente. Mas a implicação, entretanto, está lá. Ele observa que, nos últimos 50 anos, os papéis das mulheres mudaram, de modo que agora se espera que as mulheres obtenham diplomas avançados e trabalhem fora de casa; seu ponto é que a falha por parte da hierarquia em reconhecer as mudanças nos papéis das mulheres resultou em uma “alienação cada vez mais profunda das mulheres católicas em relação a uma hierarquia da Igreja vista como distante e antipática” [46].
Meu ponto ao me referir à crise do abuso sexual clerical em relação ao papel do laicato não é argumentar que o laicato é menos propenso a abusar de crianças; de fato, a maioria dos casos de abuso ocorre nas famílias [47]. Pelo contrário, o papel subordinado e submisso do laicato, tal como estabelecido na política oficial da Igreja, torna mais difícil às pessoas leigas terem voz nas questões da Igreja e torna menos provável que elas confrontem o clero – ou, quando o fazem, que suas vozes não sejam levadas a sério, como mostra o recente exemplo de reclamações sobre o bispo Michael Bransfield, da Virgínia Ocidental [48].
Não há dúvida de que há muitos outros exemplos da história “complexa e diversa” da Igreja e das possibilidades para que as estruturas e a governança da Igreja sejam inclusivas da sabedoria do laicato [49]. Como Bernard Prusak escreve em “The Church Unfinished” [A Igreja inacabada], o decreto do Vaticano II sobre a atividade missionária da Igreja “afirma que a Igreja não está verdadeiramente estabelecida, nem plenamente viva, nem é um sinal perfeito de Cristo entre os humanos, a menos que haja um laicato maduro e ativo trabalhando com a hierarquia (...) o Evangelho não pode ser inculturado nas vidas das pessoas por uma hierarquia que age sozinha” [50].
Está além do escopo deste ensaio determinar a natureza do papel do laicato em uma Igreja que pode ter aprendido algo valioso com os fracassos da crise dos abusos sexuais. É preocupante, no entanto, ler os ensaios de um congresso de 2003 sobre a crise e perceber que quase nada mudou desde então.
Em conclusão, permitam-me focar em duas questões que surgem a partir dessas considerações: a necessidade de examinar criticamente as metáforas e de reconhecer a competência do laicato.
É desnecessário dizer que não podemos viver sem usar metáforas [51]. Como os biblistas, os linguistas e os teóricos literários argumentariam, a linguagem sem metáforas careceria de vivacidade, nuance, humor ou o poder da emoção. De fato, é quase impossível descrever o lugar das metáforas sem metáforas!
Mas as metáforas não são “apenas palavras”, mas sim maneiras de construir a realidade que têm o poder de moldar o nosso pensamento e a nossa ação. Lembremos da conclusão de Osiek para seu ensaio sobre Efésios 5: “De nada adianta afirmar a plena dignidade e igualdade das mulheres com os homens se a nossa linguagem, o nosso imaginário e as nossas metáforas continuam perpetuando a desigualdade” [52].
Minha questão é que essa desigualdade não é apenas a desigualdade das mulheres em relação aos homens, mas também a desigualdade do laicato em relação à hierarquia. Enquanto a Igreja for vista como a “Noiva imaculada” do “Cordeiro imaculado”, o laicato será identificado com a noiva feminina e, como já vimos, o clero com Cristo, o “Cordeiro imaculado”. Lembremo-nos também de como essa linguagem é usada na Inter Insigniores como mais uma razão para descartar a ordenação de mulheres [53].
Portanto, há uma necessidade de metáforas apropriadas para a Igreja, a hierarquia e o laicato que possam fazer justiça tanto à tradição quanto à situação contemporânea. Poderíamos voltar a Lumen gentium, que se refere ao uso de metáforas na comunicação do significado da comunidade [54]. A linguagem do “povo de Deus” e do “corpo de Cristo” oferece imagens que transmitem tanto a comunidade quanto a unidade. Ao considerar a linguagem usada pela Igreja, quem tem o poder de moldar as palavras precisa estar atento às associações e imagens que são transmitidas.
Uma questão relacionada é o reconhecimento da competência do laicato, particularmente dos teólogos e teólogas leigos. É importante notar que o imenso crescimento no número de teólogos e teólogas leigos é um fenômeno relativamente novo. Antes de meados da década de 1960, os teólogos católicos eram quase todos clérigos, treinados para ensinar em seminários. Havia alguns teólogos católicos leigos que, por terem sido excluídos da então totalmente clerical Catholic Theological Society of America até o fim dos anos 1960, formaram a Association of Catholic College Teachers em 1955, mais tarde renomeada como College Theology Society.
Mas, nos últimos 60 anos, o rosto do teólogo católico mudou. Há mulheres e homens, pais, homens e mulheres religiosos, além do clero. Além disso, muitas pessoas leigas católicas que não são teólogas profissionais são bem formadas, informadas e cientes do modo como as organizações funcionam. A imagem do laicato como “imaculado, inocente e receptivo” não é mais adequada, se é que alguma vez foi. A identificação muito fácil do clero com Cristo e do laicato com uma mulher silenciosa e receptiva – de fato, uma imagem inadequada de Maria [55] – levou à crise que a Igreja enfrenta atualmente.
O difícil relacionamento entre bispos católicos e teólogos é um exemplo de como o laicato é excluído de ter uma voz genuína na Igreja. Particularmente durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, os teólogos foram silenciados e/ou mandados embora para reeducação (Ivone Gebara), convocados para serem interrogados (Edward Schillebeeckx), removidos das faculdades pontifícias (Charles Curran e Roger Haight), contestados pelos bispos dos Estados Unidos (Elizabeth Johnson) ou postos sob investigação pelo Vaticano (Margaret Farley). Vale a pena salientar que todos esses teólogos e teólogas eram ou clérigos ou membros de comunidades religiosas cujos superiores eram, em última análise, responsáveis perante o Vaticano.
Mais recentemente, alguns teólogos e teólogas leigos foram fortemente criticados (Michael Lawler e Todd Salzman), mas a capacidade da hierarquia de afetar o emprego deles é prejudicada pela honra tradicional concedida à liberdade acadêmica nas universidades dos Estados Unidos.
Minha própria experiência de quatro anos de reuniões com a Comissão de Doutrina da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos enquanto eu estava na presidência da Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos (CTSA, na sigla em inglês) deixou claro o desconforto, senão às vezes até mesmo o desprezo, que alguns membros daquela comissão tinham em relação aos teólogos e teólogas católicos. Em 2018 e 2019, os pedidos feitos pelos presidentes da CTSA para se reunirem com a Comissão de Doutrina não foram respondidos.
O fato de muitos teólogos e teólogas hoje serem mais bem formados em teologia do que muitos bispos fala muito sobre os medos e as preocupações por parte da hierarquia sobre o potencial poder dos teólogos e das teólogas.
No pontificado de Francisco, as relações melhoraram um pouco, pois as investigações diminuíram ou pararam, e alguns bispos – alguns deles nomeados por Francisco – acolhem as contribuições dos teólogos e das teólogas. Mas ainda há muito a ser feito para atender ao trabalho dos teólogos e das teólogas católicos leigos como contribuições genuínas para a Igreja. Esforços crescentes para ouvir o laicato em algumas dioceses prometem uma maior colaboração entre o clero e o laicato, como o sínodo sobre a Amoris laetitia, em San Diego [56]. E, claro, o Sínodo sobre a Sinodalidade, que agora completa seu segundo ano de reuniões em Roma, mostra o desejo do Papa Francisco de ouvir as vozes de todos os fiéis.
Minha questão aqui é a necessidade de reconhecer os leigos e as leigas como adultos competentes e maduros, que têm conhecimento e habilidades que podem fazer contribuições significativas para a Igreja. Mas, enfatizando, a linguagem da “noiva imaculada” é decididamente inapropriada.
Embora meu objetivo neste ensaio tenha sido criticar o uso da metáfora nupcial/conjugal para a Igreja, devo observar que seria um erro eliminar todas as metáforas de gênero para a Igreja ou para Deus [57].
Como observei acima, confiamos nas metáforas para nos comunicarmos efetivamente. Há uma série de teólogas feministas que sugeriram um conjunto diferente de metáforas para Deus, como “Mãe, Amante, Amiga”, de Sallie McFague, e “Sophia-Deus”, de Elizabeth Johnson. Também poderíamos notar que a forma como as mães são, às vezes, retratadas nas escrituras é no sentido do cuidado ativo (a galinha mãe, a mulher que procura por uma moeda perdida), de mães que lutam ferozmente por seus filhos.
Da mesma forma, as virgens, embora muitas vezes entendidas apenas como “puras” e “castas”, são, na verdade, mulheres que não dependem dos homens para sua identidade. A escolha da vida religiosa para as mulheres, ao longo de dois mil anos de cristianismo, é frequentemente uma escolha de agência, educação, tempo para oração, ministério ativo para as pessoas em necessidade, e não uma simples receptividade a um homem mais poderoso.
Outro ponto a ser destacado é o reconhecimento da dependência por parte de toda a humanidade. Embora o laicato seja, muitas vezes, visto como totalmente dependentes do clero, todos os seres humanos são dependentes de várias maneiras [58]. O clero é dependente de suas congregações, de seus irmãos clérigos no sentido de compreensão e apoio, de seus bispos não apenas por sua autoridade, mas também por sua inspiração (no melhor dos casos) para liderança. Uma dependência em relação a imagens e metáforas ultrapassadas não apenas para o laicato e o clero, mas também para Deus, Maria, Cristo e os santos, pede há muito tempo uma revisão.
Bernard Prusak encerra seu livro “A Igreja Inacabada” relembrando o Salmo 104,30, em que “reconhece em oração que o Espírito de Deus é enviado para renovar a face da terra” [59]. É hora de ouvir para onde o Espírito está se movendo no presente: nas vozes de toda a Igreja, mulheres e leigos, clérigos e bispos, e conceber essa nova Igreja em uma linguagem que seja inspiradora, poderosa e respeitosa da humanidade plena de todos os seus membros.
1. Colleen Dulle, “Why Can’t Women Vote at the Synod on Young People?”, America, 10 out. 2018. Disponível aqui.
2. Renita J. Weems, Battered Love: Marriage, Sex, and Violence in the Hebrew Prophets (Minneapolis: Fortress Press, 1995). Outros livros que levantam questões sobre a metáfora incluem Tikva Frymer -Kensky, Reading the Women of the Bible (Nova York: Schocken Books, 2002). Cf. também o clássico, embora datado, Phyllis Trible, Texts of Terror: Literary-Feminist Readings of Biblical Narratives (Minneapolis: Fortress Press, 1984).
3. Ibid., 13.
4. Ibid., 24.
5. Ibid., 8, 59-60, 87-88.
6. Ibid., 89.
7. Para um artigo perspicaz, cf. Julie Beck, “When Pop Culture Sells Dangerous Myths about Romance”, The Atlantic. Disponível aqui. Sou grata a Karen Ross e outros colegas por suas sugestões.
8. Weems, 109.
9. Prusak, “Seductive Siren”, 97.
10. Carolyn L. Osiek, “The Bride of Christ (Ephesians 5:22-23): A Problematic Wedding?”. Biblical Theology Bulletin 32/1 (primavera de 2002), 29-39; a citação está na p. 38.
11. Colossenses 3 também trata de relacionamentos familiares, mas a metáfora esponsal não é usada nesse texto.
12. Osiek, 30-31.
13. Margaret Y. MacDonald, Early Christian Women and Pagan Opinion: The Power of the Hysterical Woman (Cambridge, Reino Unido/Nova York, NY/Oakleigh, VI: Cambridge University Press: 1996), 230-31; Cf. também Stephen Francis Miletic, “One Flesh': Eph. 5.22-24, 5.31: Marriage and the New Creation,” Anchor Bible 115 (Roma: Pontifical Biblical Institute, 1988); ambos referenciados em Osiek.
14. Osiek, 31.
15. Ibid., 32.
16. Cf. especialmente ibid., 34-5.
17. Ibid., 38-9.
18. O texto completo da tradução ao português do Catecismo está disponível aqui.
19. Lumen gentium (21 nov. 1964) 5-6 (doravante citado como LG). Disponível aqui.
20. Há artigos disponíveis online que descrevem a controvérsia sobre a linguagem inclusiva/exclusiva no Catecismo. Cf., por exemplo, https://www.ewtn.com/library/CATECHSM/CCHISM.HTM que argumenta que “ocasionalmente, a preocupação quase maníaca que é evidente para evitar a linguagem genérica a todo o custo pode levar a distorções e a declarações falsas sobre revelação cristã e a doutrina católica essencial”. Cf. também https://www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?id=2623 que se refere à “teoria feminista ideológica” e argumenta que o uso da linguagem inclusiva levará a demandas contínuas por “sacerdotisas”.
21. Papa João Paulo II, Mulieris dignitatem (“Sobre a dignidade e a vocação da mulher” (15 ago. 1988) (doravante citado no texto como MD). Disponível aqui.
22. Cf., por exemplo, “Excerpts from Draft Pastoral Letter on Women by Catholic Bishops”, https://www.nytimes.com/1988/04/12/us/excerpts-from-draft-pastoral-letter-on-women-by-catholic-bishops-in-us.html. A história aqui é complexa, com vários rascunhos da carta, que foi finalmente arquivada em 1992. É interessante que, quando se consulta a página da USCCB sobre “Women's Concerns”, não há nenhuma menção a esses esforços do fim dos anos 1980 e início dos anos 1990.
23. MD, 25.
24. Donald J. Keefe, “Sacramental Sexuality and the Ordination of Women”, Communio 5 (outono de 1978), 228-51. Ênfase minha.
25. Hans Urs von Balthasar, Seeing the Form, Vol. 1 de The Glory of the Lord, ed. Joseph Fessio , SJ e John Riches (San Francisco: Ignatius Press; Nova York: Crossroad Press, 1982), especialmente “The Marian Experience of God”, 338-342.
26. Cf. W. T. Dickens, Hans Urs von Balthasar’s Theological Aesthetics: A Model for Post-Critical Biblical Interpretation (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 2003), 303, n. 16.
27. Ibid., 208.
28. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Inter Insigniores (15 out. 1976). Disponível aqui.
29. Richard John Neuhaus, “In the Beauty of Holiness”, First Things 75 (ago./set. 1997), 74.
30. Há uma série de resenhas do The Inclusive Language Lectionary disponíveis online. Sobre outro texto, A Liturgist's Guide to Inclusive Language, de Ronald D. Witherup, um revisor escreve: “Para quem continua achando que a discussão é ‘muito barulho por nada’, ele argumenta que ‘a linguagem inclusiva não é a fantasia passageira dos radicais destruidores da Igreja, mas sim um exercício necessário na libertação humana’”. Cf. resenha de Kurt Stasiak em Worship 71/3 (maio 1997) 281-282. Cf. também James L. Empereur, “The Exclusivity of Inclusive Language”, Liturgical Ministry 1 (Outono de 1992), 118-125.
31. Sou grata a William George por essa observação. O livro de Brain P. Flanagan intitulado Stumbling in Holiness: Sin and Sanctity in the Church (Collegeville, MN: Liturgical Press, 2019) é um estudo abrangente dessa questão.
32. “Pope Francis said, “Mary Was More Important than the Apostles, Bishops, Deacons and Priests”. Disponível aqui.
33. Joshua J. McElwee, “Pope Calls Again for ‘Incisive” Women’s Presence in Church”, National Catholic Reporter (7 fev. 2015). Disponível aqui.
34. Peter Feuerherd, “Members of Papal Commission on Women’s Diaconate Make First Public Comments”, National Catholic Reporter (7 jan. 2019). Disponível aqui.
35. Hanna Roberts, “Women Theologians are the ‘Strawberry on Cake,’ Says Pope”, The Tablet (11 dez. 2014). Disponível aqui.
36. Cf., por exemplo, Dennis Sadowski, “Prominent Catholics See larger Role for Laity in Church’s Abuse Response”, National Catholic Reporter (28 ago. 2018). Disponível aqui.
37. Todd Lighty e David Heinzmann, “Joliet Bishop at Center of Crisis”, Chicago Tribune (16 maio 2002). Disponível aqui.
38. Francis Oakley e Bruce Russet (orgs.), Governance, Accountability, and the Future of the Catholic Church (New York: Continuum, 2004).
39. Donald W. Wuerl, “Reflections on Governance and Accountability in the Church”, in ibid., 13.
40. Peter Steinfels, “Necessary but not Sufficient: A Response to Bishop Wuerl’s Reflections”, in ibid., 26.
41. Francine Cardman, “Myth, History, and the Beginnings of the Church”, in ibid., 47.
42. Francis Oakley, “Constitutionalism in the Church?”, in ibid., 80-81.
43. John Beal, “It Shall not be so Among You! Crisis in the Church, Crisis in Church Law”, in ibid., 92.
44. Ibid., 93.
45. John T. McGreevey, “The Sex Abuse Crisis: The View from Recent History”, in ibid., 141.
46. Idem.
47. Cf. relatório em Psychology Today, “Separating Facts about Clergy Abuse from Fiction”. Disponível aqui.
48. Cf. Robert O’Harrow, Jr. E Shawn Boburg, “Warnings about West Virginia Bishop Went Unheeded as he doled out cash gifts to Church Leaders”, Washington Post (3 jul. 2019). Disponível aqui.
49. Para alguns exemplos, cf. Richard Gaillardetz, An Unfinished Council: Vatican II, Pope Francis, and the Renewal of Catholicism (Collegeville: Liturgical Press, 2015); Richard Gaillardetz e Edward Hanhnenberg (orgs.), A Church with Open Doors: Catholic Ecclesiology for the Third Millennium (Collegeville: Liturgical Press, 2015); Bradford E. Hinze, Prophetic Obedience: Ecclesiology for a Dialogical Church (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2016); Flanagan, Stumbling in Holiness, n. 33 acima.
50. Prusak, 298.
51. Cf., por exemplo, George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors We Live By (Chicago: University of Chicago Press, 1980); Paul Ricoeur, The Rule of Metaphor: Multidisciplinary studies of the creation of meaning in language (Toronto and Buffalo: University of Toronto Press, 1975.
52. Osiek, 38-39.
53. Cf. n. 27 acima.
54. Cf. LG 6: “Assim como, no Antigo Testamento, a revelação do Reino é muitas vezes apresentada em imagens [metaphors, na tradução em inglês], também agora a natureza íntima da Igreja nos é dada a conhecer por diversas imagens tiradas quer da vida pastoril ou agrícola, quer da construção ou também da família e matrimônio, imagens que já se esboçam nos livros dos Profetas”.
55. Cf. Elizabeth Johnson, Truly Our Sister: A Theology of Mary in the Communion of Saints (New York: Continuum, 2003).
56. Cf. Disponível aqui.
57. Sou especialmente grata pelo tratamento sensível de Brian P. Flanagan sobre essa questão em Stumbling in Holiness, n. 33 acima, esp. 159-165, onde ele também discute a linguagem sobre a casta meretrix (casta meretriz).
58. Cf., por exemplo, Sandra Sullivan-Dunbar, Human Dependency and Christian Ethics, New Studies in Christian Ethics (Cambridge: Cambridge University Press, 2017).
59. Prusak, The Church Unfinished, 336.
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A Igreja como “Noiva Imaculada”: uma crítica feminista a uma metáfora prejudicial. Artigo de Susan Ross - Instituto Humanitas Unisinos - IHU