08 Mai 2024
“Demasculinizar” é um neologismo forte. Um modelo preciso de masculino que impregnou e definitivamente moldou a igreja católica: nas instituições, nos ministérios, nas relações, na pregação, nas modalidades de exercício da autoridade, na sinodalidade, na missão, narepresentação do rosto de Deus e do ser humano. Esse longo legado criou dinâmicas de prevaricação e formas de dominação, de repressão do que é outro de si. O clericalismo e os abusos não podem ser compreendidos fora desse contexto histórico e cultural, cuja superação, por mais difícil que seja, é uma meta necessária para a Igreja.
O artigo é da redação de Mosaico di Pace, publicado por Avvenire, 07-05-2024.
As palavras do Papa à Comissão Teológica Internacional no final do último mês de novembro circularam por todo o mundo:
“A Igreja é mulher. E se nós não sabemos entender o que é uma mulher, o que é a teologia de uma mulher, nunca entenderemos o que é a Igreja. Um dos grandes pecados que cometemos foi ‘masculinizar’ a Igreja. E isso não se resolve pela via ministerial, isso é outra coisa. Resolve-se pelavia mística, pela via real. O pensamento balthasariano me deu muita luz: princípio petrino e princípio mariano. Se pode discutir sobre isso, mas os dois princípios existem. O mariano é mais importante que o petrino, porque existe a Igreja esposa, a Igreja mulher, sem se masculinizar. E vocês se perguntarão: para onde esse discurso está levando? Não só para lhes dizer que tenham mais mulheres aqui dentro - esse é um -, mas para ajudar a refletir. A Igreja mulher, a Igreja esposa. E essa é uma tarefa que lhes peço, por favor. Desmasculinizar a Igreja."
Uma expressão, esta última, da qual parte o documento elaborado pelo “Mosaico di pace”, revista promovida pela Pax Christi e que publicamos aqui como ponto de partida para uma reflexão sobre a Igreja, o papel da mulher e os sinais do “masculismo” que publicaremos nesta página dedicada às Análises, uma série aberta a contribuições e intervenções sobre um dos temas mais atuais e mais importantes para o Papa. (F.O.)
“Um dos grandes pecados que cometemos foi “masculinizar” a Igreja... é uma tarefa que lhes peço, por favor. Desmasculinizar a Igreja": falando de improviso, o Papa Francisco dirigia-se assim à Comissão Teológica Internacional em 30 de novembro de 2023.
“Demasculinizar” é um neologismo forte. Um modelo preciso de masculino que impregnou e definitivamente moldou a igreja católica: nas instituições, nos ministérios, nas relações, na pregação, nas modalidades de exercício da autoridade, na sinodalidade, na missão, narepresentação do rosto de Deus e do ser humano. Esse longo legado criou dinâmicas de prevaricação e formas de dominação, de repressão do que é outro de si. O clericalismo e os abusos não podem ser compreendidos fora desse contexto histórico e cultural, cuja superação, por mais difícil que seja, é uma meta necessária para a Igreja.
Poucos dias antes da intervenção do Papa, em 25 de novembro de 2023, a teóloga Alice Bianchi escreveu no Osservatore Romano sobre vozes católicas que comentavam os últimos casos de feminicídio na época em que a Itália estava no meio de uma espécie de despertar nacional, depois o assassinato de Giulia Cecchettin: “Nestes e noutros discursos de vozes católicas, chama especialmente a atenção que a Igreja raramente seja mencionada, provavelmente porque aqui entram facilmente em jogo resistências pré-racionais, construções culturais, que tornam difícil olhar para as próprias histórias, casas, comunidades. Assim, os crentes do sexo masculino simplesmente se autorregulam para não cair nas armadilhas da sociedade "lá fora", da pornografia ao laxismo educativo. Todos nós não queremos gerar ou endossar a violência, e isso é suficiente para nos tranquilizar de que isso não aconteça. Mas é uma ingenuidade: devemos reconhecer que, mesmo contra a nossa vontade, podemos gerar violência, e o mesmo podem fazer as nossas Igrejas. O 25 de novembro serve, portanto, para assinalar onde os ambientes eclesiais contribuem para favorecer dinâmicas de prevaricação masculina. Perguntar-se como nasce a violência de gênero ajuda-nos a compreender o que podemos fazer. Mas toda discussão será em vão se não se parte de si próprio e, portanto, também dos mecanismos de dominação sobre as mulheres que, apesar de nós mesmos, se aninham nas nossas comunidades, e das formas relacionais que acreditávamos serem boas e que às vezes conservam uma ambiguidade”.
Desmasculinizar a Igreja significa, portanto, finalmente questionar o modelo hegemônico do masculino. A palavra evoca uma urgência que não pode mais ser adiada. Não só porque seria mais um passo - e um passo radical - com o qual a igreja católica se torna estranha ao seu próprio tempo como reduto religioso do patriarcado, mas porque é hora de escutar. Escutar não apenas o grito das mulheres, mas o grito dos homens dentro da igreja que se sentem apertados e sufocados por um modelo traiçoeiro de masculinidade.
Olhando para a experiência das mulheres e o que acontece em outras igrejas na Itália, é preciso aprender a começar de si mesmos. Um certo modelo masculino é tão normal que nem se percebe. E como o ar que respiramos. Como a água em que os peixes nadam. Por isso, uma reflexão que se limita apenas ao nível da crítica dos conteúdos, mas não encontra os corpos, não basta. Chegou a hora - ainda existe amanhã, fomos recentemente lembrados – para que os homens na igreja católica, não sozinhos, mas juntos, se tornem disponíveis por meio de um processo de autorreflexão para desmascarar em cada um esse veneno que fez e continua a fazer sofrer homens e mulheres na igreja. É preciso criar espaços e tempos para processos de construção de um modo diferente e plural de ser homens. Neste momento não é preciso um grande projeto, não tudo precisa estar claro. É a hora dos pequenos e concretos passos com os quais se entra numa terra desconhecida. Pode ser assustador, mas é libertador. Vamos iniciar esse indispensável processo de mudança, com coragem!
Como Mosaico di Pace, revista da Pax Christi, escrevemos no Avvenire porque nas páginas desta revista queremos levar adiante a reflexão que apenas inauguramos com o dossiê da edição de outubro de 2023, O masculino, as igrejas e nós, em perfeita linha de antecipação e coerência com o apelo papal para desmasculinizar a igreja.
Pretendemos aqui apresentar algumas propostas concretas, que poderão ser implementadas num curto espaço de tempo. Não se parte do zero.
Existe a preciosa reflexão das mulheres na igreja que há anos - com paciência e rigorosa competência - pressionam nesse terreno. Existe também a experiência fecunda que já acontece nas outras igrejas na Itália, como bem descreve o dossiê de Mosaico di Pace. Finalmente, existe a riqueza da reflexão sobre o masculino que há tempo vem sendo articulada em alguns grupos de homens (por exemplo, a associação Maschile Plurale).
Acreditamos que esses sejam os primeiros passos, urgentes, para embarcar no caminho de realidade e de emancipação que indicamos:
Como homens e mulheres da redação de Mosaico di Pace, juntamente com o grupo de colaboradores ecolaboradoras da revista, pretendemos assumir a tarefa a que se referem as palavras do Papa Francisco, convencidos como estamos de que esse processo marca o caminho de um itinerário de paz. Colocamo-nos, portanto, à disposição para iniciar e participar nesse percurso, dando uma contribuição real para a concretização do que nos propomos.
A partir do dia 15 de maio de 2024 o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove o Ciclo de Estudos O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja.
Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU
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Desmasculinizar a Igreja, o pedido do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU