09 Julho 2024
Segundo o teólogo italiano Andrea Grillo: “Entre as reivindicações mais ouvidas no debate eclesial contemporâneo, está aquela que pode ser reconhecida na expressão ‘demasculinizar’. Ela não só não é antitética, mas também corresponde profundamente a outro verbo, diferente, mas coerente: ‘desmascarar’. Para desmasculinizar, é preciso desmascarar os preconceitos que estão escondidos não só no senso comum, mas também naquela que consideramos a ‘alta teologia’.
“Esta contribuição de Selene Zorzi – continua Grillo –, a quem agradeço de coração, mostra bem, com uma ampla e preciosa documentação, o conteúdo pouco convincente da teologia que um grande mestre como H. U. von Balthasar escreveu sobre o feminino. É verdade que um dos destinos dos grandes mestres é o de serem comidos com molho picante!” [referência a uma frase dita no filme “Gaviões e passarinhos”, de Pasolini].
O artigo é de Selene Zorzi, professora do Instituto Teológico Marchigiano, publicado por Come Se Non, 15-06-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hans Urs von Balthasar é considerado um dos maiores teólogos contemporâneos e teve forte influência na teologia do século XX, especialmente no que diz respeito aos temas da diferença sexual.
Muitos teólogos apelam a Balthasar para defender a inegabilidade da “reserva masculina”, alegando, porém, que Balthasar é difícil demais de compreender e é mal compreendido. Portanto, parece ser oportuno sintetizar suas teorias teológicas sobre o assunto que tentam (desajeitadamente, em nossa opinião) medir-se com as teorias da diferença sexual. De fato, concordamos com a teóloga feminista Tina Beattie que afirma que, em Balthasar, a reflexão sobre a diferença sexual constitui sua tentativa teológica mais problemática do ponto de vista das teorias de gênero [1].
De fato, é nas reflexões seguintes que Balthasar também fundamenta seu conhecido binômio do princípio petrino/mariano. Mas, se a reserva masculina implica um significado sacramental específico da masculinidade, como veremos, não surge daí um significado correspondente para o corpo da mulher.
Beattie destaca acima de tudo que, sempre que Balthasar se refere ao sujeito humano, ele usa um Mensch genérico e, quando fala do conceito teológico de pessoa, ele usa Person. Em ambos os casos, Balthasar nunca parece se referir às pessoas sexuadas, e, portanto, tudo o que é dito sobre o sujeito diante de Deus ou sobre as pessoas em Cristo pode ser aplicado genericamente a ambos os sexos.
Contudo, quando passamos à consideração da diferença sexual do ponto de vista criatural, Balthasar parece valorizá-la fortemente:
“Duas realidades diferentes mas inseparáveis uma da outra, das quais uma é a plenitude da outra, ambas ordenadas a uma unidade definitiva inaferrável [...] simplesmente dois polos de uma única realidade, duas implementações diferentes de um único ser, duas entia em um único esse, uma existência em duas vidas [...] com tais formulações exploratórias, tenta-se circunscrever o mistério de que o homem masculino enquanto homem está desde sempre junto de sua contraimagem, a mulher, sem nunca chegar lá, assim como vice-versa é [...] o mistério de que o eu humano, desde sempre em busca, move-se rumo ao tu e também o encontra... sem nunca poder ter verdadeira posse dessa sua alteridade. Isso ocorre, portanto, não apenas porque a liberdade do tu nunca pode ser controlada a partir do eu por nenhum superconceito transcendental, já que toda liberdade humana se abre do seu lugar apenas para a liberdade absoluta e infinita, mas também porque essa insuficiência se ‘encarna’ na constituição diferente e complementar dos sexos” (TD II, p. 345).
Nesse texto, parece haver uma verdadeira reciprocidade entre os sexos: o que vale para um vale também para o outro, há sujeitos que permanecem livres em relação, cada um incapaz de possuir totalmente o outro ou de conhecê-lo, pelo contrário:
“… ambos, homem e mulher, estão não apenas juntos, mas cada um por si, imagem de Deus; e, portanto, fica garantida desse modo a imediação em relação a Deus” (TD III, 266).
De fato, “nenhum dos dois pode ser em si mesmo o homem inteiro” (TD II, 348).
Balthasar admite que o imaginário que relega o céu à masculinidade e a terra à feminilidade desvaloriza o segundo elemento (TD II, 346). Ele condena as visões misóginas patrísticas e escolásticas que mostram o perigo de uma teologia que identifica a imago apenas na alma. O teólogo suíço também exclui a visão de Gregório de Nissa segundo a qual a história de Gênesis 1 se referiria à humanidade criada como um todo sexualmente indiferenciado (ou andrógino), enquanto o relato de Gn 2 se referiria à humanidade sexualmente diferenciada. De fato, ele afirma que a distinção entre os sexos faz parte da imago Dei [2].
Contudo, quando ele mesmo se prepara para abordar a exegese de Gn 1, essas declarações de intenção começam a soar de uma forma diferente. O teólogo situa a criação do casal humano no fim de um processo criativo interpretado em nome da fecundidade. Nisso, a imago se insere “em uma função divisória entre fecundidade infra-humana e humana” (TD II, p. 348) e conclui que a procriação humana ilumina um aspecto do poder criativo de Deus (p. 350). Mais adiante, se descobrirá que Deus claramente tem funções masculinas com respeito à criação (cf. TD II, pp. 351-360).
“A Palavra de Deus aparece no mundo como homem masculino [...] ele deve ser masculino, se é verdade que sua missão é de representar no mundo a origem, o Pai” (TD III, p. 264).
Embora ele afirme que a polaridade homem-mulher permeia toda a criação (cf. TD II, pp. 344-345 e III, p. 263) [3], em última análise, para ele, “o homem diante de Deus” parece ser apenas o Adão masculino (TD II, 351). De fato, quando ele passa a comentar Gn 2, ele afirma a primazia do homem masculino e sua solidão diante de Deus (que antes devia ser característica de cada pessoa como tal).
“Três coisas são assim declaradas: primeiro, um primado do homem masculino, que, nesse seu primado, estava sozinho diante de Deus e com Deus, mesmo que carregue consigo potencial e inconscientemente a mulher, que ele, porém, não pode dar a si mesmo por conta própria. Depois o ‘não bem’ da solidão. Desse modo, elimina-se sobretudo a ideia de um homem arquetípico andrógino, que primeiro se funde em si mesmo e que só depois da divisão em dois sexos começaria a sentir um desejo insatisfeito, mas também é eliminada a concepção de que o homem (ou o masculino) solitário poderia encontrar, conhecendo e nomeando o mundo [...], sua própria realização plena. Por fim, é declarada a derivação da mulher do homem” (TD II, p. 351).
Segundo Balthasar, a mulher derivaria desse primeiro homem masculino.
Eis, então, que começam a se manifestar os verdadeiros axiomas sobre os quais se move a teologia sexual de Balthasar: sempre que ele fala da mulher, ele a mostra como secundária e funcional.
A mulher é descrita por Balthasar com uma passividade natural, criatural, enquanto, segundo ele, o homem teria uma função ativa como a divina [4]. A mulher acolhe, responde, retribui ao homem; ela dá ao homem algo de novo apenas porque o dom dela integra o dele. A mulher representa apenas uma resposta (Antwort) para o homem ou, melhor, uma dupla resposta: “É resposta por ser reprodução” (TD III, 266).
“A mulher representa um duplo princípio em relação ao homem: resposta e fruto […] pode-se deduzir a partir disso uma afirmação análoga para a relação entre Deus e a criatura. Já mencionamos que a criatura em relação a Deus só pode ser secundária, correspondendo ao ‘feminino’” (TD III, p. 267).
Beattie observa que, em relação à criação da mulher, Balthasar se expressa com termos que indicam uma violência (de Deus) sobre o homem, que, na realidade, seria originalmente (o) “sozinho diante de Deus”: ela é “tirada”, “arrancada”, “removida” (TD II, 351). Subliminarmente, a mulher é apresentada como uma ameaça à autonomia e à completude do “homem diante de Deus”. Além disso, se a mulher está contida no Homem, ela não é seu verdadeiro “outro”.
É preciso lembrar que a exegese confirmou que ha ‘adam não é um termo que implique masculinidade, mas se refere a “todo terrestre”, segundo a mentalidade judaica (adm, de fato, indica o vermelho e adamá é a terra: portanto, seria bom traduzir como o terrestre). E, enquanto em Gn 1 a sexuação é originalmente teomórfica, em Gn 2 ish aparece apenas com a criação da mulher, ishah.
Balthasar, em vez disso, pensa em Adão sempre como homem masculino concreto, na trajetória da problemática tipologia Adão-Eva e Cristo-Maria de origem patrística, e, portanto, não é por acaso que ele é levado a interpretar a sexualidade humana em referência ao “grande arquétipo Cristo-Igreja” (TD II, p. 352).
“Cristo, como pessoa divina, é ao mesmo tempo verdadeiro homem e, de fato, homem masculino, e nesse sentido tem uma certa analogia como segundo e último Adão em relação ao primeiro” (TD III, p. 268).
Cristo não carece de nada e é análogo ao primeiro homem.
“… da ferida daquele que agora dorme na cruz é tirado e formado o rosto da mulher da qual o homem não pode prescindir. O mistério do homem e da mulher da primeira criação demonstra isso, mas esse mistério só recebe sua riqueza maximamente misteriosa no mistério do Cristo-Igreja (Ef 5, 27)” (TD III, pp. 268-269).
Essa Mulher concreta (a Imaculada) torna-se, portanto, o cálice eclesial no qual se derrama a substância do Filho: em suma, ela é um dom para que ele possa se realizar (cf. também TD III, p. 324). A impressão de que Balthasar identifica a mulher apenas e exclusivamente com Maria e “que se passa sem reflexão de uma a outra” também foi levantada por alguns teólogos [5].
Baseando-se na concepção católica tradicional que identifica Maria com a Nova Eva, esposa e mãe de Cristo Novo Adão, a relação entre Cristo e Maria eleva-se a protótipo da relação entre os sexos. Isso implica que a relação original homem/mulher culminaria em uma relação meta ou suprassexual entre os sexos (TD II, p. 388; V, p. 428).
A missão de Maria é sempre descrita em termos de uma sexuação cujas características seriam de passividade em relação à “missão viril-divina do Filho” (TD III, p. 325). No texto “Gloria”, a experiência de Maria parece ser uma progressiva “despossessão” de si mesma: a mãe deve renunciar progressivamente a si mesma para que Cristo se realize (cf. TD III, p. 325) [6]. Contudo, Maria é uma identidade coletiva, é o corpo da Igreja, é a própria maternidade da Igreja. Como tal, seu corpo de mulher significa o corpo da Igreja e, em última análise, de Cristo.
Assim como a Igreja, Maria é relativa, não autônoma: serve à plenitude de Cristo. Assim como ela, a Igreja deve elevar o olhar de si mesma e dirigi-lo ao Senhor, interessando-se apenas em tornar-se supérflua (“Gloria” VII, p. 453) [7]. Ela deve tender para o homem perfeito (Ef 4,13) até não ser mais ela mesma. A Igreja deve ser reflexo, não glória em si mesma; resposta glorificante, porque está incluída na gloriosa Palavra da qual é resposta (“Gloria” VII, p. 485).
Maria coopera com Cristo: sua ação está integrada e “incluída” (TD III, p. 324) na d’Ele. Tendo sido tirada da costela, Eva mantém uma diferença pessoal de Adão; a Igreja, por sua vez, não tem tal distinção de pessoa em relação a Cristo, porque ela é seu corpo. Assim, marido e mulher, sendo distintos, não podem representar adequadamente Cristo e a Igreja, enquanto a Igreja deriva sua própria natureza e pessoa apenas e exclusivamente de Cristo. Em Cristo, de fato, Cristo e a Igreja não são duas pessoas, e a Igreja é também um “nós”.
Ora, é preciso ter em mente, porém, que isso não ocorre para a mulher concreta e nem mesmo para Maria: porque cada mulher concreta é uma pessoa distinta [8].
Por outro lado, para Balthasar, Cristo torna presente no mundo a autoridade do Pai e, por isso, é um homem-masculino (Mann) [9]. Balthasar pretende fundar na Trindade o sentido da sexuação humana, mas ele reconhece nela o princípio ativo do Pai, o princípio receptivo/ativo do Filho e o receptivo/passivo do Espírito. A diferenciação sexual se expressaria em analogia a essas “funções” trinitárias, em que a atividade e a generatividade são atribuídas ao masculino, enquanto uma atividade receptiva é atribuída ao feminino.
Ao fazer isso, o teólogo parece não refletir sobre o condicionamento linguístico dos modelos epistemológicos humanos, sem reconhecer que, de alguma forma, ele diviniza os modelos culturais de relação entre os sexos.
Quando Balthasar descreve a relação Pai-Filho na analogia de Gn 2, ele se expressa a respeito da “ajuda” com uma terminologia que leva a compreender o significado subordinante que ele dá ao termo “ajuda” de Gn 2 e implicitamente ao papel da mulher: as imagens com as quais Balthasar trabalha são as de um Pai que não precisa de um “cálice” para liberar a própria fecundidade, que não seria levado a comunicar nada fora de si, mas que se doa por livre amor.
Deve-se notar que a imagem de um Deus autossuficiente destoa com a ideia de uma pessoa divina estruturalmente relacional. Pareceria quase que entrar em relação faria o Pai perder alguma coisa, pareceria quase que aquele “cálice” (com uma alusão sexual nem tão oculta) não é necessário, assim como não seria necessário comunicar. O Filho, diz Balthasar, não se acrescenta como uma “ajuda” ao Pai (TD III, p. 267).
Embora ao dizer isso ele provavelmente queira excluir o subordinacionismo em Deus, por outro lado, quando aplica uma espécie de “feminilidade” ao Filho em TD III, p. 264, a terminologia da “ajuda” (termo usado para a mulher em Gn 2) é claramente defeituosa, até mesmo no tom com que as afirmações são feitas.
Segundo Balthasar, Deus (Pai) se doa com amor “primário”, de modo que, em relação à criatura, ele parece masculino, e a criação, por sua vez, feminina (TD III, p. 267). Nas relações intratrinitárias, o Filho é feminino em relação ao Pai, do qual recebe, e masculino em relação ao Espírito, ao qual entrega. Dentro desse quadro, Balthasar diz claramente, retomando a metáfora patrística do logos spermatikos, que “a missão natural de cada espírito criado é estar pronto para acolher a semente da divina Palavra, para carregar e fazer crescer essa semente dentro de si e proporcionar-lhe uma forma de amadurecimento” (TD II, p. 268).
Declara-se a evidente “feminilidade” de cada pessoa criada em relação a Deus. Segue-se daí que Jesus será necessariamente masculino em sua encarnação, e a Igreja será a Esposa de Cristo Esposo. Maria, que é a pessoa que encarna a perfeita resposta receptiva à oferta “masculina” do Pai, será, portanto, o princípio do caráter feminino da Igreja.
“A Igreja é, em primeira instância, feminina, porque seu elemento primeiro e abrangente é o seu dever de dizer-graças-de-si-receptivo e comunicativo…” (“O rosto mariano da Igreja”, p. 322) [10].
O princípio masculino e complementar seria encarnado pelo ofício eclesiástico, que representa o Senhor que concede dons e que foi instituído apenas para que ela não se esquecesse dessa sua feminilidade primária, apenas para que ela fosse sempre aquela que recebe e nunca aquela que possui e dispõe de si mesma (“O rosto mariano da Igreja”, p. 322).
Se a metáfora pode funcionar para a Igreja, contudo, ao se extrair o que implica sobre o sujeito feminino, aparece a anomalia do discurso. Além da natureza problemática da natureza secundária do feminino e da negação nele de alguma característica que possa ser primária, permanece a natureza problemática do descolamento que é identificado em Balthasar entre sexo e gênero feminino.
De fato, não existe uma relação necessária entre sexo e gênero feminino, porque o gênero feminino pode se aplicar ao sexo masculino: todo homem diante de Deus é mulher, por ser criado. A feminilidade, portanto, é para Balthasar uma característica espiritual da criatura humana que pode pertencer tanto ao corpo masculino quanto ao feminino [11]. Essa aplicação do significado simbólico da diferença sexual parece derivar de modelos estereotipados do feminino (Aristóteles docet) e do masculino (a sombra de Boaventura).
Balthasar tem consciência da analogicidade da relação entre o binômio Cristo-Igreja e homem-mulher, mas Chantal Amiot [12] detectou quatro erros nesse paralelismo:
a) a negação da igualdade entre os seres humanos, uma vez que Cristo assume apenas a humanidade masculina;
b) a confusão entre Igreja-mistério e a Igreja institucional, por meio da qual se usa para a Igreja-mistério a simbologia matrimonial em sentido patriarcal, a qual, porém, dá origem a resultados institucionais subordinantes para a mulher: ela se vê não podendo governar, ensinar ou santificar, porque seria menos mulher;
c) a identificação ontológica por meio do sexo, que faz do padre um esposo, com impactos problemáticos em uma comunidade de homens apenas;
d) a ideia de que só os homens como tais parecem poder participar plenamente na missão de Cristo e, portanto, ser propriamente pessoas (porque só nele a pessoa e a missão coincidem perfeitamente).
A estudiosa também critica Balthasar por não ter cotejado um método histórico-crítico na leitura da Bíblia, tornando um fato cultural – como o da submissão da mulher – uma necessidade teológica [13].
Nessa teologia esponsal que leva em grande consideração a diferença sexual, a mulher é tão sexuada a ponto de ser considerada apenas “sexualmente” e, portanto, limitada aos papéis de virgem, mãe e esposa. Além disso, o critério unicamente sexual de identificação com Cristo, como sublinhou Piola, e que leva a ver Cristo em todos os homens, implica que todas as mulheres são o “não Cristo” [14]. Todo o sistema balthasariano torna-se, portanto, uma reificação ontológica do contexto patriarcal do dado bíblico.
Se olharmos atentamente para o lugar do corpo concreto da mulher, será possível notar que, em TD III, pp. 324ss., ele parece contingente, não essencial, secundário, porque, de fato, serve aos propósitos do homem, não tendo outro fim senão o de completar a existência dele.
Mesmo no que diz respeito ao discurso que Balthasar faz sobre a pessoa “materna” e “feminina”, parece que ele não se refere a um corpo de sexo feminino, mas principalmente a um corpo coletivo e derivado, o da Igreja: de fato, mesmo o corpo dos homens masculinos é “feminino” em relação a Cristo.
Segundo Beattie, essa forma de tratar a identidade sexual contradiz a intenção última do próprio Balthasar e do novo feminismo de João Paulo II. Na realidade, uma teologia da encarnação exigiria uma grande atenção ao significado revelador do corpo. Balthasar, porém, não atribui nenhuma qualidade à mulher que não derive do (ou seja responsorial ao) masculino. Ela passa a existir apenas para servir aos propósitos dele, para que ele possa ter uma existência plena.
“… a mulher não é apenas uma outra palavra e um outro rosto de um feliz encontro, mas é também a ajuda necessária, a guardiã, a casa do homem, o cálice apropriado para ele em vista de sua plena realização… no entanto, não de uma fecundidade primária, mas de resposta, constituída de modo a poder acolher para si a vã fecundidade do homem e levá-la a cumprimento de modo a ser a glória do homem (1Cor 11,7)... em tal perspectiva pode-se definir a missio da mulher em relação a Adão como continuação e consequência de sua processio a partir de Adão” (TD III, pp. 265-266).
Esse primado natural do homem masculino para o qual a mulher é apenas resposta “significa que ela só pode ser resposta pessoal (esposa) e resposta de reprodução (mãe); em nível cristológico, o primado natural do homem torna-se um primado absoluto” [15].
Enquanto o masculino parece ser monádico, singular, estático, a mulher tem as características da dualidade, da fluidez, da relacionalidade e da dinamicidade, da dependência (TD III, p. 272; “Os estados de vida”, p. 324) [16]. Assim, para Balthasar, a feminilidade estaria essencialmente orientada ao outro e de dois modos: sexualmente ao homem e maternalmente ao filho (cf. TD III, p. 287).
Para Balthasar, o masculino simboliza “a transmissão de uma força vital que vem de longe e que tende para mais longe do que ela mesma” (“Sacerdócio às mulheres?”, p. 110)17. De onde Balthasar deriva essa simbolização da masculinidade?
Nesse sentido, deve-se abrir uma janela para o conceito de complementaridade que Balthasar utiliza. Tal modelo tem sido muito contestado pelas feministas, pois não é efetivamente recíproco. Ele deriva da física, na qual envolve fenômenos diversos que não se sobrepõem e, portanto, não podem ser vistos ao mesmo tempo, porque se excluem mutuamente.
Passando do âmbito mecânico ao da relação social entre os sexos, esse modelo justifica uma distinção clara entre os papéis sociais, de modo que a mulher não poderia assumir espaços habitualmente ocupados pelos homens masculinos, porque “somos diferentes”. A mulher, portanto, deveria preencher aqueles espaços deixados vazios pelos homens, aceitando ser, para o homem, a complementação dele.
Tal modelo dá origem a uma antropologia “em partes” que se complementariam reciprocamente em uma síntese perfeita. Mas nenhuma mulher, assim como nenhum homem, pode encontrar sua total completude em um outro, seja ele homem ou mulher, porque ela se dá apenas em Deus.
Em vez disso, é precisamente nessa “idolatria”, nesse mal-entendido, que deve ser identificada a ilusão que leva ao fracasso de tantos projetos matrimoniais hoje. Afinal, qualquer relação humana entre pessoas – homens ou mulheres – envolve sempre trocas mútuas e dialética [18]. É claro que seria mais simples para os homens se as mulheres não invadissem seus espaços, mas isso não significaria uma convivência necessariamente harmoniosa, porque, não havendo equidade social, não há verdadeira paz.
Precisamente porque homem e mulher são diferentes, desempenhar os mesmos papéis pode enriquecer a sociedade. O modelo da subordinação, tal como o da complementaridade, é, portanto, problemático.
Outros caminhos foram tentados: o feminismo da diferença tentou propor o modelo da “assimetria”, que, no entanto, é um termo que desagrada as gerações mais jovens. Preferiu-se falar de “troca”, de reciprocidade, de mutualidade, de dialética. O perigo da contraposição e da oposição binária frontal permanece sempre à espreita, enquanto não se chegar a encontrar um modelo que diga o fato de estar junto ou “em duas vozes”, para indicar que somente quando os homens e as mulheres puderem ser sujeitos plenos e em relação é que o humano também poderá se revelar de um modo completo, precisamente à imagem de Deus.
A abordagem de Balthasar que atribui o princípio ativo à masculinidade e, desse modo, a todos os homens, e a feminilidade, isto é, o princípio receptivo, a todos os seres humanos, homens e mulheres, sustenta-se sobre uma concepção que é ao mesmo tempo androcêntrica, mas também distorcida das relações humanas. Além disso, ela constitui uma grande falha no próprio sistema que quer dar à identidade sexuada um simbolismo (gênero [2]) fortemente ligado aos corpos históricos (sexo) dos homens e das mulheres.
Essa visão simbólica da sexualidade que hipersexualiza a história da salvação parece perigosa, porque, em última análise, não reconhece o valor totalmente humano da sexualidade, como sugere o texto bíblico de Gn 1. De fato, se por um lado ele fala de uma “dimensão planetária” da relação homem-mulher, por outro, o matrimônio, em sua opinião, está ligado ao “velho éon” [19].
O “feminino” balthasariano não parece ter nenhuma relação com o corpo concreto das mulheres. Beattie diz: “Na medida em que homens e mulheres são fêmeas em relação a Deus, não há nenhum lugar significativo para a diferença sexual” [20].
A mulher concreta em Balthasar não existe, exceto como uma projeção, como uma fantasia dos desejos de completude do homem, uma idealização que provavelmente – como Beattie demonstra extensivamente (pp. 163-183) – é afetada pela relação ambígua que Balthasar teve com Adrienne von Speyr (+1967), a médica e mística suíça que, junto com o marido, hospedou o teólogo em sua casa durante 15 anos e sobre o qual ela teve uma forte influência.
Segundo Beattie, a relação do teólogo com Speyr explicaria a violenta energia sexual presente em sua retórica teológica (p. 116). Segundo Rist, as próprias declarações de Speyr, segundo a qual o ato sexual seria algo humilhante para a mulher, teriam contribuído para formar em Balthasar aquela ideia um tanto “talibã” da humilhação do homem diante de Deus e da mulher diante do homem [21].
A mulher, diz Balthasar, retomando E. Przywara, é criada como seu “sonho”, plenitude, casa por meio da qual ele pode se incorporar (TD II, p. 352). Beattie observa, em relação a essa passagem, que um indivíduo que existisse apenas para completar outro, como seu “sonho” ou sua glória, não seria propriamente um sujeito com plenos direitos (diante de Deus) [22]. A mulher, em Balthasar, não é, portanto, um “eu”, mas apenas um “tu” e não tem um significado efetivo para si mesma, pois existe apenas como o outro do homem, uma projeção, uma completude necessária do ser (dele), o espaço em que sua existência encontra sentido sem permitir a ela um espaço análogo de existência [23].
Assim, enquanto o corpo feminino é efetivamente aniquilado na simbologia da vida eclesial, por ser superenfatizado no “Feminino”, a mulher concreta continua sendo um problema para o homem, uma pergunta que, na realidade, não encontra resposta, porque é apenas uma projeção dele, uma extensão dele e, não sendo um verdadeiro “tu”, não pode dar uma autêntica resposta [24].
Beattie, em conclusão, sustenta que, com Balthasar, encontramo-nos diante de um modelo anacrônico das relações sexuais, em que se tenta reafirmar o primado do homem sobre a mulher: essa teologia, para além de seus princípios declarados e de sua linguagem fortemente inclusiva da identidade sexual, elimina o corpo da mulher, porque mostra que somente por meio de uma erradicação do sexo feminino é que o homem masculino pode eliminar da teologia o efetivo desafio que a mulher, em seu corpo concreto que requer um espaço, levanta a seu sistema.
Na realidade, portanto, o sistema de Balthasar propõe uma teologia católica ainda pré-moderna, em que a diferença sexual não diz respeito a um essencialismo biológico, mas se move dentro de esquemas de gênero. Jesus é homem porque representa Deus, como origem, enquanto a mulher é secundária e, de fato, representa a criatura.
Em TD III, p. 325, o teólogo suíço relaciona a sexualidade com a morte e a temporalidade, de modo que se pode deduzir que, para ele, a situação paradisíaca original do homem tinha uma forma de assexualidade. Ele diz explicitamente várias vezes que não sabe responder teologicamente se havia união sexual no paraíso (cf. TD III, p. 266). O papel de Maria também só se torna significativo quando ela é necessária para a vinda do homem, pois sua missão é absoluta, enquanto ela é um processo móvel e oscilante (TD III, pp. 272 e 276), não tendo univocidade.
Balthasar tem dificuldade em reconhecer a realidade material da sexualidade feminina e, embora torne a feminilidade onipresente, elimina de fato o corpo da mulher da cena da salvação. Com efeito, se em Maria a Igreja se torna sujeito, também é verdade que a mulher concreta se diafaniza em uma comunidade.
Balthasar nunca apresenta a sexualidade em termos positivos: na “Teodrammatica”, ela é sempre figura de outra coisa, do desejo escatológico de Cristo e da Igreja ou do terror da carnalidade, da mortalidade ou da morte [25]. A virgindade (no paradigma da virgindade de Maria) seria a “exclusão de toda a vitalidade e fecundidade, física e espiritual, do homem, para receber maternalmente em si a única forma da Palavra de Deus encarnada, guardá-la, dar-lhe à luz, acompanhar seu crescimento e seu caminho” (“Gloria” I, p. 560).
Além disso, em Balthasar existe uma íntima ligação entre sexualidade e morte. Ou seja, a sexualidade para ele nunca é o encontro efetivo entre corpos que se desejam mutuamente, mas sim o misterioso processo com o qual o homem masculino se apropria de sua existência. Para Balthasar, a sexualidade seria mais origem da morte do que da fecundidade e da alegria de viver, tanto que ele ainda mostra os sinais de uma inaceitável divisão entre eros e ágape (TD V, pp. 405ss; 428) como entre amor egoísta e desinteressado, embora certamente conheça a indiferença de sua essência (“Gloria” III, 318, comentando Soloviov) [26].
Balthasar afirma que, para ele, Adrienne foi “subtraída desde sempre do eros” [27], como se, para um ser humano decaído, fosse possível um “ágape” puro, que coincidisse com o estado de virgindade. Também em TD IV, p. 101, ele identifica o eros com o instinto da conservação da espécie. De fato, é preciso reconhecer que, apesar da crítica a Nygren, a teologia católica ainda custa a admitir que o desejo de dar prazer ao outro, também sexual, nos seres humanos pode ser uma atividade espiritual que se funde com a autodoação [28].
Em Balthasar, não há um significado teológico para a reprodução humana. Nisso, ele parece depender demais de Gregório de Nissa, que considera a sexualidade/genitalidade fora da imago. Diante de um certo romantismo da sexualidade matrimonial que pode ser reencontrado nos textos de João Paulo II e no novo feminismo católico, Balthasar custa a atribuir um significado sacramental à sexualidade humana e à procriação [29].
O matrimônio, para Balthasar, não é um bem em si mesmo, mas existe porque significa outra coisa, é um meio para outra coisa. O sexo deve ser transcendido e, portanto, é desencarnado e idealizado, assumindo um sentido unicamente vertical, e não horizontal.
Segundo Beattie, Balthasar congela a sexualidade e a divindade de modo a reafirmar uma representação patriarcal de Deus, um Deus que parece estar além, senão até mesmo contra, a vulnerabilidade da encarnação [30], e, por isso, segundo Beattie, a teologia balthasariana mostra uma certa dificuldade em reconciliar o sofrimento corporificado da humanidade de Cristo com sua divindade.
Para Balthasar, de fato, a encarnação seria exclusivamente um rebaixamento feminilizante de sua masculinidade divina.
A teologia balthasariana parece incapaz de dar um significado sacramental ao corpo das mulheres. De acordo com Beattie, “enquanto a sexualidade feminina continuar sendo o outro não redimido da fé católica, não haverá verdadeira paz e reconciliação na Igreja, até que o homem da Igreja faça as pazes com a própria sexualidade e com a capacidade encarnada da mulher de ser parte sacramental da revelação de Deus” [31´].
Beattie sugere que uma das maneiras para superar a abordagem de Balthasar seria a de incluir o corpo feminino na linguagem, na representação e no significado sacramental (p. 187). Com efeito, a morte de Cristo sugere que Deus é vulnerável ao nosso amor, e sua ressurreição expressa a fecundidade que tem origem a partir da morte de Deus, fonte de nova vida para o corpo.
Apesar de algumas afirmações “feministas” de Balthasar, em última análise, essa teologia parece ser fundamentalmente definida de acordo com um esquema androcêntrico e subordinante acerca da relação entre os sexos.
Cf. Beattie, T. The New Catholic Feminism, pp. 93-94.
Cf. Gli stati di vita del cristiano, Milão, 1985, pp. 92; Scola, A. L’Imago Dei e la sessualità umana. Anthropotes 1(1992) pp. 61-73, (aqui, pp. 72-73).
Teodrammatica. II. Le persone del dramma: l’Uomo in Dio. Milão: Jaka Book, 1978; III. Le persone del dramma: l’Uomo in Cristo. Milão: Jaka Book, 1983.
Beattie, The New Catholic Feminism, p. 106.
Piola, Donna e sacerdozio, p. 493.
Beattie, The New Catholic Feminism, p. 107.
Gloria. Una estetica teologica. VII. Nuovo Patto. Milão: Jaka Book, 1977 (original: Theologie: Neuer Bund. Einsiedeln: Johannes Verlag, 1969).
Beattie, The New Catholic Feminism, p. 154.
Cfr. Balthasar, Pensieri sul Sacerdozio femminile. Rivista internazionale di Teologia e Cultura Communio, 150 (1996), pp. 17-24 (aqui, p. 24).
Beinert, W. (ed.). Il culto di Maria oggi. Sussidio teologico pastorale. Roma: Paoline, 1978, pp. 309-325.
Cf. Beattie, The New Catholic Feminism, p. 109.
Le ‘non’ balthasarian à l’accès des chrétiennes au ministère presbytéral. Étude critique. Lumière et Vie, 44 (1995) 224, pp. 51-69.
Ibid., p. 65.
Cfr. Piola, Donna, p. 493.
Piola, Donna, p. 493.
li stati di vita del cristiano. Milão: Jaka Book, 1985, pp. 315-335; cf. Beattie, The New Catholic Feminism, p. 108.
Nuovi punti fermi. Milão: Rusconi, 1980, pp. 107-112.
Cf. M. Chiodi, La relazione uomo/donna come forma fondamentale della differenza. Teologia, 32 (2007) pp. 11-35, que considera defeituoso o modelo complementar, porque o outro seria dedutível de mim e não seria verdadeiramente o outro, pois seria apenas o “meu (recíproco) simétrico”. Tal ideia pressupõe um conceito individualista de “eu” que “anula a alteridade ao mesmo tempo que a invoca”, p. 24.
Cf. Nuovi punti fermi, pp. 32-33 e 105.
The New Catholic Feminism, p. 110, tradução da autora.
La razza 2/2, notas 80-81.
Às vezes, volta a temática da mulher-anjo: a mulher instruída pelo anjo que, sacrificando-se, transforma-se na estrela que conduz o homem a uma “feliz humilhação”, cf. Nuovi punti fermi, p. 33.
Ibid., p. 110.
Ibid., p. 111.
Ibid., p. 157.
Cf. TD IV, pp. 106-107.
Il nostro compito, p. 32.
Cf. Balthasar, H. U. von. Nuovi punti fermi. Milão: Jaka Book, 1983, p. 105; Beattie, The New Catholic Feminism, p. 160.
Ibid., p. 162.
Ibid., p. 183, tradução da autora.
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Balthasar: uma teologia da diferença sexual sem corpo de mulher. Artigo de Selene Zorzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU