30 Junho 2022
"Suspende-se a proteção a vítimas da violência, mas, em nenhum momento, há reparos para a liberação do porte de armas, inclusive, em público. Que política pró-vida é essa? O que motiva uma decisão assim a não ser a submissão da mulher e o controle ferrenho de seu corpo?", questiona o Pe. Dr. Matheus da Silva Bernardes, presbítero da Arquidiocese de Campinas e professor da Faculdade de Teologia da PUC-Campinas.
É-nos conhecido o primeiro capítulo do livro do Gênesis, no qual o autor relata a criação de Deus em seis dias e, no sétimo, seu descanso. Uma técnica usada pelos autores do Antigo Testamento – ou Primeiro Testamento, como os biblistas o chamam – para a transmissão e memorização de um texto é a repetição; não podemos nos esquecer que a leitura e a escrita eram restritas a pequeníssimos grupos. Como tornar um texto conhecido? Lançando mão da repetição de um refrão ou de uma sílaba tônica, por exemplo.
Esse é o caso do relato da criação, um poema que se estende até a primeira parte do versículo quatro do capítulo segundo de Gênesis. Além de poema, o autor insistiu na repetição da estrofe “Deus viu que era bom”: no terceiro dia, ao unir as águas abaixo do céu para que surgisse a terra seca que produziria frutos e sementes, “Deus viu que era bom”; no quarto dia, ao criar luzeiros para separar o dia da noite, “Deus viu que era bom”; no quinto dia, ao criar os animais do céu, da terra e das águas, “Deus viu que era bom”. Contudo, no sexto dia, ao criar o ser humano à sua imagem e semelhança, “Deus viu que tudo era muito bom”.
Ao inserir a palavra “muito”, o autor não estava expressando ideias antropocêntricas, isto é, o ser humano como o centro de toda a criação, mas justamente por ser imagem e semelhança de Deus, o ser humano está no centro da criação para amá-la e servi-la, assim como seu Criador. O relato de Gn 1, 1-2,4a é um poema, um canto à sua beleza e à bondade e à generosidade do Deus-Criador.
Não obstante, alguns versículos mais adiante nos encontramos com a ruína daquele que deveria estar no centro da criação: encontramo-nos com o pecado do ser humano. As consequências do pecado – que deveriam ser levadas muito mais a sério – são as piores possíveis: as dores no surgimento de nova vida, a submissão da mulher ao homem, a secura e a dureza do solo que só oferecem seu fruto com o suor da fronte daquele que o trabalha e, a pior de todas, a morte (Gn 3,16-19). É preciso remarcar, porém, que todas as consequências são sinais de morte, sinais do pecado que entrou no mundo e perverteu a beleza da obra das mãos do Deus-Criador.
Tendo já explicitado que a desordem introduzida no mundo é resultado do pecado do ser humano, olhemos para uma realidade que, infelizmente, nos últimos meses só aumenta: o ódio contra as mulheres. Lendo os três primeiros capítulos de Gênesis é claro que o machismo é pecaminoso; submeter a mulher à força bruta do homem é negar a vontade criadora de Deus que os criou – ambos! – à sua imagem e semelhança. Brutalizar a relação entre homem e mulher não é outra coisa que se afastar daquilo que o próprio Criador estabeleceu no início dos tempos.
Todos sabemos que os números de abusos a vulneráveis no Brasil são assustadoramente altos – é preciso um mea culpa porque ministros da Igreja Católica, tristemente, não escapam das estatísticas de abusadores. A dor se torna ainda maior quando o resultado de um ato de violência tão brutal e covarde, como abusar sexualmente de uma menor de idade, tem como resultado a gravidez. A dor no corpo de uma menina, que passa por uma situação assim, é exponenciada.
Em 2020, acompanhamos os trágicos acontecimentos em torno a uma menina de apenas dez anos de idade que estava grávida depois estar sendo sistematicamente estrupada, desde os seis anos, por seu padrasto. Os protestos em torno dela e da decisão judicial que a permitia interromper a gravidez não eram por uma atitude pró-vida, isto é, contrária ao aborto, mas pelo ódio contra as mulheres, principalmente se elas são pobres.
Fato semelhante aconteceu há poucos dias com outra menina grávida, agora de onze anos, que teve a interrupção da gravidez suspensa por uma juíza. Nas discussões inflamadas, como aquelas que circundam temas controversos como o aborto, é comum que as pessoas – não poucas vezes, mal-informadas – misturem todo tipo de argumentos e não se atentem para o que, de fato, está acontecendo: de trás de um discurso pró-vida, não estaria a conservação da submissão das mulheres, de seu corpo, de sua feminilidade?
Muitos estamos de acordo que é preciso defender, em toda e qualquer circunstância, a vida que está por nascer, mas o mesmo empenho deve acontecer para defender a vida, a dignidade, a inocência das meninas que passam por situações tão complexas como as duas meninas acima citadas. É preciso defendê-las e não as expor ainda mais, como uma Ministra de Estado o fez, em 2020, e uma juíza, neste ano.
O que dizer da jovem atriz que teve que ir a redes sociais abrir uma grande ferida por medo de ter sua história vazada para sites de fofoca? A jovem em questão engravidou depois de um estupro – como ela mesma relata, não bastasse a dor da agressão sexual, ela se perpetuava em seu corpo. Consciente de sua incapacidade de ser mãe – não só progenitora – daquela criança gerada por um ato de violência, a jovem tomou a firme decisão, amparada pela lei, de entregá-la para a adoção. Todavia, a violência contra ela não acabaria; sua história teria sido vazada e, antes que o fosse, ela mesma se expôs.
Exposição também é violência; por que mulheres, que na verdade são vítimas, devem se expor? Onde estaria aquele que perpetrou o ato do estupro? Por que a sociedade ainda insiste em expor a mulher e não o homem? Novamente, aquela que é condenada é a mulher; não fosse suficiente ser vítima de abuso, agora culpada por não querer ser mãe.
Não se trata de apoiar ou não o aborto, em primeiro lugar, trata-se de olhar o que temos feito com nossas mulheres. Nossa sociedade as vitimiza duas, três, quatro vezes e, o pior, as criminaliza. E qual seu grande crime, sua grande culpa? Simplesmente serem mulheres... Tristemente, vivemos dias de ódio contra as mulheres, sobretudo as mulheres pobres, negras, latinas, migrantes as quais, na realidade, são as maiores vítimas de decisões como a da Suprema Corte norte-americana que suspendeu da possibilidade de aborto legal.
Suspende-se a proteção a vítimas da violência, mas, em nenhum momento, há reparos para a liberação do porte de armas, inclusive, em público. Que política pró-vida é essa? O que motiva uma decisão assim a não ser a submissão da mulher e o controle ferrenho de seu corpo? É importante destacar que a decisão da Suprema Corte norte-americana se baseou no parecer de muitos juristas ao redor do mundo, incluindo doze brasileiros. Logo, a defesa das mulheres não é uma questão localizada, mas globalizada.
Se somente insistimos em um discurso pró-vida sem olhar com todo carinho e cuidado, que exigem as mulheres vítimas da violência, as consequências do pecado e os sinais de morte abundarão entre nós. Na carta aos Romanos, Paulo insiste que onde abundou o pecado, agora sobreabunda a graça (Rm 5,20) pela justiça de nosso Senhor, Jesus Cristo. Não seria essa mesma justiça um exemplo para nossa sociedade: “Mulher, onde estão os outros? Ninguém te condenou? [...] Eu também não te condeno. Podes ir e não peques mais” (Jo 8,10-11)?
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“E Deus criou o ser humano à sua imagem: à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher”. (Gn 1,27). O ódio contra as mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU