27 Março 2020
“Novamente, o neoliberalismo pode ter ficado sem argumentos teóricos para reverter a situação crítica que se aproxima. Assim como a inflação descontrolada e o déficit público dos anos 1970 golpeou o keynesianismo, a COVID-19 pode golpear as teorias econômicas zumbis, especialmente no que se refere a reconhecer que, para garantir o bem-estar das maiorias, é essencial a intervenção do setor público”, escreve Daniel Castillo Hidalgo, professor de História e Instituições Econômicas da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria, em artigo publicado por The Conversation, 23-03-2020. A tradução é do Cepat.
Até que não se descubra que a altas rendas individuais não bastam para imunizar todo o conjunto da humanidade da cólera (...) a sociedade não começa (...) a tomar medidas coletivas para suprir aquelas necessidades que nenhum indivíduo comum, ainda que trabalhasse extraordinariamente durante toda a sua vida, poderia satisfazer-se por si só. (R. H. Tawney, Equality, 1952)
O historiador britânico Richard Henry Tawney lançou essa ideia no mundo em pleno auge da discussão política em torno da constituição das bases do Estado de bem-estar nas economias capitalistas. Agora, a crise sanitária em escala global e suas consequências econômicas trouxeram de volta à mesa algumas das questões que pareciam adormecidas após a aparente recuperação econômica iniciada em 2014.
Os parâmetros essenciais que sustentam o modelo econômico neoliberal sobreviveram à Grande Recessão de 2008, apesar de que a maior parte de suas receitas econômicas tinham sido desacreditadas pelas evidências empíricas e pela própria experiência histórica, em que ficou refletido como as políticas econômicas neoliberais, aliadas à globalização, aceleraram a desigualdade econômica e o mal-estar social.
Em seu último livro (Contra los Zombis, Crítica, 2020), o Prêmio Nobel de Economia de 2008, Paul Krugman, argumenta contra as políticas econômicas neoliberais. Sustenta que, superada a crise, as principais economias mundiais retornaram ao dogma da sacralização do “infalível deus mercado”, rejeitando a intervenção pública e a pertinente ação do governo nos desequilíbrios estruturais aos quais tende o mercado de forma natural. E, embora as evidências históricas demonstrem que a intervenção estatal foi uma alavanca da estabilidade e do crescimento econômico, após a Segunda Guerra Mundial, ainda hoje sofre o ataque dos economistas ortodoxos que detestam o keynesianismo “e seus contos de fadas”.
Em seu libro, Krugman chama de “ideias zumbis” uma série de pensamentos e teorias econômicas mortas, que já estavam presentes nos anos 1930, quando a Grande Depressão estava prestes a destruir a economia e a sociedade capitalista ocidental, e as principais nações industrializados se envolveram em uma guerra devastadora em todos os sentidos. As ideias liberais sobre a bondade e eficiência infalível dos mercados que impulsionaram o cataclismo dos anos trinta, continuam arrastando-se, como zumbis, graças à generosa contribuição de doadores poderosos para laboratórios de ideias, publicações de prestígio e meios de comunicação de massa, que modulam a opinião pública.
Lembremos agora as palavras do presidente Roosevelt, durante seu segundo discurso de posse, em 1937: “O interesse próprio, egoísta, que supúnhamos ser somente uma má moral, agora sabemos que também era um mal econômico”.
O keynesianismo orientou o desenvolvimento institucional da maioria dos países capitalistas após a Segunda Guerra Mundial. Como compensação pelo esforço durante a guerra, assim como prevenção e vacina política frente ao comunismo presente no coração da Europa e Extremo Oriente, multiplicaram-se as estratégias fiscais redistributivas, engordando as fileiras de uma crescente classe média patrimonial e, além disso, reforçando todos os tipos de políticas públicas que consolidaram o que talvez seja um dos maiores êxitos sociais do século XX: a criação e desenvolvimento do Estado de bem-estar social.
O Estado de bem-estar social se elevou sobre as bases de uma forte tributação progressiva, com limites marginais para as rendas mais altas, os 10% da população, próximas de 90% em países como o Reino Unido e os Estados Unidos, durante quatro décadas. A eles se acrescentavam impostos elevados sobre grandes heranças, doações e outras transferências patrimoniais.
A tributação progressiva, o controle sobre os mercados de capitais, as maiores transferências de renda sociais e um maior equilíbrio nas relações de trabalho não geram nenhum tipo de impacto negativo na geração de taxas de crescimento econômico sustentado. Com o Estado de bem-estar, também crescia a produtividade do trabalho, enquanto as desigualdades sociais se reduziam (os casos da Suécia e da Alemanha são especialmente interessantes). Esse modelo de sociedade foi baseado em políticas keynesianas, conhecido como o “contrato social do pós-guerra”.
Vale lembrar: John Maynard Keynes não era nenhum socialista. Ao contrário. No entanto, era consciente dos excessos causados pela ausência de regulamentação e, de forma mais específica, pela inconsistência de políticas públicas para contrastar com as crises econômicas e recessões.
Tampouco eram bolcheviques das elites econômicas da época, que preferiam uma alta tributação à expropriação absoluta que poderia chegar pelas mãos de uma revolução comunista, como havia acontecido nos anos 1920. Além disso, a receita ortodoxa não impediu conjunturas críticas extraordinárias, como demonstrado durante a Grande Depressão.
A teoria econômica apresentada por Keynes, após a Grande Depressão dos anos trinta, tornava necessária a intervenção do Estado na economia. A chave estava nas políticas de estímulo do lado da demanda, injetando toda a liquidez que fosse necessária para reverter os ciclos depressivos. Isso podia ser feito através do uso da política fiscal ou mediante o recurso da emissão estratégica de dívida pública. O objetivo era a reativação econômica e a diminuição do galopante desemprego.
Keynes faleceu em 1946 e não pôde ver a implementação de sua teoria, mas graças a ela, por quase quatro décadas, ocorreram apenas recessões de relevância na economia ocidental. Seria a inflação o que enterraria o keynesianismo (e muitos acreditavam nisso até algumas semanas atrás).
O crescimento descontrolado da inflação, após os choques do petróleo nos anos 1970, foi usado por alguns intelectuais e economistas para teorizar sobre a incapacidade do modelo keynesiano de reverter a situação.
À estagnação econômica e à inflação (estagflação), adicionou-se o crescimento exponencial do desemprego, formando um coquetel explosivo que, além disso, colocou contra as cordas os Estados do ponto de vista do déficit público.
Alguns observadores pensavam que, se o Estado continuasse injetando dinheiro na economia, a inflação provocaria uma catástrofe semelhante à da Alemanha nos anos 1920. Aludiu-se também ao fato de que a inflação descontrolada destruiu o valor da riqueza monetária, especialmente a de quem tinha muita riqueza acumulada! O déficit público foi outra besta negra a ser vencida, dada a sua presumível influência na elevação do custo da dívida privada, gerando consequentemente maiores dificuldades para o financiamento das empresas.
A solução que alguns monetaristas como Milton Friedman encontraram foi centrada no abandono progressivo da teoria keynesiana. Para conter a inflação, nada melhor do que uma boa dose de disciplina fiscal por parte dos Estados e, é claro, um aumento radical nas taxas de juros, reduzindo a oferta monetária disponível e o desperdício irresponsável por parte dos bancos e governos. A isto se acrescentou uma redução generalizada dos impostos sobre as rendas mais altas, para que esses recursos pudessem ser “investidos” na economia real, com a eficiência que o Estado não conseguia exercer. Nas palavras do presidente Ronald Reagan, era necessário “libertar o touro”.
Efetivamente, nos Estados Unidos, o processo inflacionário no início dos anos 1980 foi detido, gerando assim uma recessão intensa que mais tarde se transformou em crescimento econômico. Mas o milagre anti-inflacionário havia levado pela frente boa parte da indústria estadunidense, de seus trabalhadores e, é claro, dos sindicatos. A competitividade tornou-se o novo dogma da ortodoxia, impulsionando a deslocalização industrial e a destruição do setor secundário, amparado pela progressiva liberalização do mercado de capitais.
Assim começou um processo que levaria a uma mudança nas estruturas econômicas em nível internacional. O keynesianismo foi enterrado como “incapaz” e foram retomadas as políticas para redução da intervenção do Estado no ciclo econômico. O “Consenso de Washington” insistia na necessidade de liberalizar a economia e avançar na desregulamentação em todos os campos, sempre que fosse possível, para otimizar os recursos disponíveis. Naquela época, a economia socialista estava desmoronando e acabou por colapsar no início dos anos 1990. Alguns intelectuais anunciaram o fim da história, em irônica referência à filosofia marxista.
Com a Grande Recessão de 2008, e após vários avisos prévios no início dos anos 2000, o modelo econômico liberal voltou a colapsar. Aquela “má economia” mencionada pelo presidente Roosevelt, em 1937, havia retornado mais uma vez. Os mercados financeiros globalizados causaram uma crise de dimensões extraordinárias, com efeitos de arrastão dramáticos em termos de destruição de postos de trabalho e disseminação da desigualdade e da pobreza.
Durante essa conjuntura, pareceu por um momento que o capitalismo liberal passaria por um processo de transformação, graças às injeções bilionárias de dólares dos Estados para proteger as instituições financeiras e evitar o colapso total. Mas, apesar de tudo o que se viveu há apenas uma década, a disciplina da ortodoxia econômica dominante continuou orientando as políticas públicas, especialmente no que diz respeito à tributação e redistribuição de renda.
Quando Barack Obama e Nicolas Sarkozy se reuniram para refundar o capitalismo, para muitos, tudo aquilo nos pareceu uma boa ideia. Pelo menos foram reconhecidos os erros cometidos nas últimas décadas e se pretendia retomar ao caminho da consistência racional. Nada a ver com a realidade. Após a recuperação, quando voltou a subir a maré do crescimento econômico, os barcos não subiram com a mesma, como defendiam os liberais mais recalcitrantes. As teorias do vazamento econômico se mostraram equivocadas em relação à distribuição progressiva do crescimento econômico sem a intervenção estatal.
Autores especializados no estudo da desigualdade, como Thomas Piketty e Emmanuel Sáez, demonstraram empiricamente como a distribuição do crescimento acumulado desde 1980 beneficiou especialmente as elites econômicas, ou seja, 1% (e até 0,1%) das maiores rendas a nível mundial. Elites que financiam campanhas políticas e promovem a geração de estados de opinião - mesmo acadêmicos - favoráveis a esse tipo de política econômica, geradoras de desigualdade.
As evidências científicas e as análises de instituições internacionais (por exemplo, OCDE) assinalam que a desigualdade econômica após a Grande Recessão aumentou substancialmente em nível internacional, enquanto continuam pondo barreiras aos acréscimos na pressão tributária sobre as rendas mais altas (incluindo os sempre controversos impostos sobre doações e transferências patrimoniais que, em geral, afetam especialmente os maiores patrimônios).
Também é evidente que a ausência de coordenação internacional e a concorrência fiscal entre Estados - e mesmo entre comunidades autônomas e regiões - dificulta qualquer iniciativa em particular em escala estatal.
E então, no início deste ano, começaram a chegar da China, o país mais populoso do mundo, notícias preocupantes sobre a propagação de um vírus até então desconhecido.
Desde então, o contágio vem se espalhando de maneira rápida e constante, na medida em que a globalização não apenas integra os mercados financeiros, mas também nos coloca em questão de horas do outro lado do mundo.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde estabeleceu que o surto de COVID-19 havia adquirido a condição de pandemia. Os números de falecidos em países como Itália e Espanha alcançam níveis tragicamente altos, e os contágios se multiplicam por todos os países do mundo, ameaçando chegar ao colapso dos serviços públicos de saúde. O impacto social da crise nos países com piores redes de saúde pública pode ser catastrófico. O choque econômico e social nos próximos meses parece dantesco.
Diante dessa situação extraordinária, a intervenção dos governos e a injeção massiva de liquidez na economia emergem como a única receita possível.
Nesse caso, o consenso é amplo entre todos os economistas e representantes institucionais, por mais liberais ortodoxos que sejam. Reconhece-se de forma indiscriminada que as políticas do tipo keynesiana serão necessárias para reverter a situação econômica, mas não se atrevem a dar um passo adiante, assumindo que as teorias econômicas zumbis aplicadas desde dos anos oitenta geraram instabilidade, desigualdade e uma tendência cada vez mais frequente para o surgimento de ciclos econômicos contracionistas, mesmo que a crise atual não corresponda aos elementos tradicionais ligados ao ciclo econômico.
Essa conjuntura é crítica e merece a aplicação de medidas extraordinárias, adquirindo inclusive a categoria de “economia de guerra”. São propostas medidas como a reestatização de indústrias estratégicas e a intervenção em centros de saúde privados, para os quais, por outro lado, nos últimos anos foram feitas transferências em detrimento do sistema público de saúde. Muitos critérios que sustentam ideologicamente o funcionamento infalível dos mercados e da sociedade proprietária, voltam a ser colocados em dúvida no momento de enfrentar uma crise estrutural de envergadura.
Novamente, o neoliberalismo pode ter ficado sem argumentos teóricos para reverter a situação crítica que se aproxima. Assim como a inflação descontrolada e o déficit público dos anos 1970 golpeou o keynesianismo, a COVID-19 pode golpear as teorias econômicas zumbis, especialmente no que se refere a reconhecer que, para garantir o bem-estar das maiorias, é essencial a intervenção do setor público.
Se o keynesianismo foi suprimido intelectualmente pela inflação, o movimento neoliberal poderá sofrer o mesmo destino por causa desse vírus. Ou não.
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Keynes contra o coronavírus. Artigo de Daniel Castillo Hidalgo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU