17 Janeiro 2025
"Estamos, portanto, diante de uma obra com uma temática atual, relevante e desafiadora no sentido de redescobrir novas formas de participação do feminino na Igreja. Em tempos de Papa Francisco esta questão é novamente recolocada" escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR),em resenha do livro “Desmasculinizar a Igreja”? : confronto crítico sobre os “princípios” de H. U. von Balthasar (Paulinas, 2024, 96 p.)
Cada vez mais as mulheres vão tomando consciência de seu valor e de sua dignidade e sem um verdadeiro compromisso com o feminino a Igreja não merecerá credibilidade na época atual. Nesse contexto, vai se tornando cada vez mais difícil justificar práticas eclesiásticas que deixam de fora as mulheres e dão a sensação de que elas não são tratadas com o mesmo respeito e com a mesma dignidade votados aos homens. Cada vez mais, na Igreja católica, as mulheres reivindicam seus direitos, inclusive o direito de receber os ministérios ordenados. Diante de tais reivindicações as altas esferas eclesiásticas fazem pronunciamentos defendendo sempre o princípio de que, por vontade divina, as mulheres não podem ter acesso ao ministério ordenado. Todavia, isto não nos dispensa de levantar questionamentos e de nos contentar em apenas repetir alguns ensinamentos feitos pelo Magistério da Igreja. É basilar avançar na reflexão e compreensão desta questão no desejo de suscitar o diálogo e estimular o confronto.
Esse é o escopo da obra: “Desmasculinizar a Igreja”? : confronto crítico sobre os “princípios” de H. U. von Balthasar (Paulinas, 2024, 96 p.), escrito por duas teólogas e um teólogo: Lucia Vantini, Linda Pocher e Luca Castiglioni. A obra em questão é resultado do convite do papa Francisco feito aos referidos autores e entregue ao Papa e seu Conselho de Cardeais em dezembro de 2023. Os textos que compõe este livro apresentam uma reflexão acerca da presença e do papel das mulheres na Igreja, tendo como ponto de partida a reflexão do teólogo H. U. von Balthasar (1905-1988) sobre os princípios mariano e petrino da Igreja, assumidos pelo magistério no último quarto do século XX e nestas primeiras décadas do século XXI.
Livro “Desmasculinizar a Igreja”? : confronto crítico sobre os “princípios” de H. U. von Balthasar
A contribuição de Lucia Vantini intitulada Além do princípio, uma constelação de diferenças (p. 15-36) parte do sofrimento e da insatisfação de muitas mulheres, teólogas ou não, diante de uma interpretação ideológica do pensamento de Balthasar e das suas consequências na vida pastoral e eclesial, para depois propor algumas qualidades espirituais a fim de ir “além” da hierarquização das diferenças que caracterizaram por séculos a forma da Igreja, rumo a uma reciprocidade mais madura e capaz de enriquecer tanto mulheres quanto homens. A reflexão proposta por Vantini identifica, portanto, as qualidades humanas que o presente pede: sair da ideologização mística do feminino e redescobrir mulheres reais, interrogar a consciência masculina nos seus aspectos subjetivos mais afetivos e vulneráveis, dar vida a uma cultura do nós, da complexidade, da interconexão, da liberdade da e na diferença. Para a autora as forças necessárias para tudo isso já existem, mas para interceptá-las e dar-lhes vida, é preciso correr o risco da escuta das mulheres mais radicais.
A colaboração do presbítero da Diocese de Milão e doutor em Teologia Luca Castiglioni traz como título Outros princípios, outros padres: por uma masculinidade evangélica (p. 37-68). O referido autor considera a articulação entre o princípio mariano e o princípio petrino, à luz do princípio joaneu, com uma atenção específica ao ponto de vista dos homens e, mais ainda, dos presbíteros. Concentra-se no papel que os ministros ordenados podem ter para favorecer caminhos de sinodalidade, em particular mediante o estilo do exercício da autoridade (escutando e valorizando os carismas alheios) e o estilo da relação com as mulheres (sublinhando a potencialidade de uma amizade autêntica e paritária).
Castiglioni, portanto, reflete, em particular sobre as formas de exercício da autoridade que o estilo de Jesus Cristo sugere, hoje mais necessárias, como a capacidade de escutar e de ativar os recursos alheios; sobre os recursos aos quais os padres podem recorrer, especialmente nas relações com as mulheres (amigas), nesta época de reconfiguração da sua relação e até da identidade masculina; sobre a oportunidade de tornar-se disponível a um ato penitencial, exatamente em concomitância com a conclusão do Sínodo.
A última contribuição Maria e as outras mulheres: discípulas e mistagogas (p. 69-88), assinada pela doutora em Teologia Dogmática Linda Pocher, é um convite à contemplação de duas cenas bíblicas que têm Maria como protagonista, em busca de indícios sobre o modo como, nas primeiras comunidades cristãs, realizou-se o anúncio paulino segundo o qual “não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Pocher têm a convicção de que a referência a Maria pode ser, como afirma também o documento final da primeira sessão do Sínodo: “Maria de Nazaré, mulher de fé e Mãe de Deus, permanece para todos uma extraordinária fonte de significado do ponto de vista teológico, eclesial e espiritual”, fonte de inspiração e apelo à convergência no respeito às diferenças para todos os crentes. Contanto, porém, que a sua figura não seja apresentada de modo estereotipado, nem reduzida a um símbolo ou a um princípio, mas restituída à complexidade da experiência histórica e teológica.
Eis a proposta desta obra oferecida em primeira mão ao Conselho de Cardeais e agora a disposição de todos os que desejarem participar no diálogo sinodal e aprofundar o tema das relações eclesiais entre homens e mulheres. O papa Francisco ao prefaciar este escrito (p. 5-7) pontua que “a presença e a contribuição das mulheres à vida e ao crescimento das comunidades eclesiais pela oração, pela reflexão e pela ação são realidades que desde sempre enriquecem a Igreja; antes, constituem a sua identidade. No entanto, somos conscientes, especialmente durante a preparação e a celebração do Sínodo, de que não escutamos suficientemente a voz das mulheres na Igreja, e esta ainda tem muito a aprender com elas. É necessário escutar-se reciprocamente para “desvirilizar” a Igreja, a qual é comunhão de homens e mulheres que compartilham a mesma fé e a mesma dignidade batismal” (p. 5).
Estamos, portanto, diante de uma obra com uma temática atual, relevante e desafiadora no sentido de redescobrir novas formas de participação do feminino na Igreja. Em tempos de Papa Francisco esta questão é novamente recolocada. As reflexões aí contidas provocam e nos deixam desafiante dever de casa. “Trata-se de reflexões que tendem mais a abrir do que a fechar, que desafiam a pensar, convidam a buscar, ajudam a orar” (p. 6).