05 Junho 2024
“Neste texto, Luca Castiglioni responde, de forma calma e intensa, à leitura teórica oferecida por Mario Imperatori sobre a relação (possível ou necessária) entre 'presidência eucarística' e 'reserva masculina'. Parece-me um avanço objetivo do debate, pelo qual agradeço sinceramente ao autor”, escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado no seu blog Come se non, 31-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O diálogo que ocorreu nas redes digitais sobre a ordenação diaconal das mulheres católicas é notável, entre outras coisas, porque instrui, de forma sucinta – mas não superficial –, as questões sobre as quais urge um discernimento eclesial. Entre estas, emergiu também a presidência masculina da Eucaristia e seu valor como representação sacramental do Filho feito homem.
A escolha de qualificar a masculinidade de Jesus como kenótica se mostra eficaz: descreve o elemento-chave do modo como o Filho de Deus assumiu sua parcialidade humana masculina, ressignificando-a. Recorda que a exaltação de Cristo Jesus obteve, para aqueles que dobram os joelhos em seu nome (cf. Fl 2,9-10), a libertação dos fardos do pecado, até mesmo daquele que se enraizou na relação entre homens e mulheres (cf. Gn 3,16). Convida todos os discípulos (homens) a viverem suas relações sexuadas de acordo com tal lógica, que extingue radicalmente toda forma de dominação (masculina).
Portanto, pode-se dizer que a masculinidade de Jesus Cristo é estruturalmente kenótica. Essa sua kenosis é estruturalmente masculina? Estruturalmente, é divina, sendo o esvaziamento do Filho uma expressão das relações intratrinitárias. Historicamente, ela ocorreu em um corpo masculino, segundo a condescendência divina: era necessário, na plenitude dos tempos, um Messias masculino, de outra forma irreconhecível e inadmissível. Tal assimetria convida-nos a não exagerar o valor da masculinidade, já que o valor da kenosis é decisivo para a salvação, ou seja, o fato de Jesus Cristo ter assumido a “condição de servo” e ter se tornado “semelhante aos homens” (anthropoi), como recorda também o Credo: et homo (non vir) factus est.
No entanto, pode ser instrutivo se interrogar sobre o sentido teológico da masculinidade de Jesus Cristo, uma disposição divina que só recentemente começou a ser explorada. Ela é um fato contingente, mas não irrelevante – porque é o modo concreto e irreversível como a humanidade encontrou Deus no Filho Jesus – e não insignificante, no sentido de mudo ou indiferente, mas é bom reconhecer que a tradição não a carrega de um particular valor salvífico [1].
Certamente esse sentido teológico da masculinidade de Jesus terá de ser investigado levando em conta a secular hipoteca dos estereótipos de papéis sexuais e dos condicionamentos que têm caracterizado a relação entre homens e mulheres em detrimento destas últimas: só nos demos conta dos pressupostos patriarcais que permeiam as nossas sociedades quando as mulheres levantaram suas legítimas queixas, e muitos (homens e mulheres) ainda hoje não se deram conta delas.
Acima de tudo, não podemos pretender determinar o sentido teológico da masculinidade singular de Jesus em termos evidentes e incontroversos, porque ela pertence ao mistério inesgotável da vontade divina e da identidade divina. O que podemos efetivamente conhecer sobre a relação entre o corpo sexuado de Jesus Cristo e seu corpo ressuscitado?
Sabemos, porém, que no corpo glorioso de Cristo há lugar para toda a humanidade, homem e mulher (com todas as “complicações” do caso), e que Deus está além do masculino/feminino. Em suma, não é prudente considerar a masculinidade singular de Jesus Cristo desprovida de significado e não é prudente sobrecarregá-la de valor simbólico, talvez fazendo escolhas (exclusivas, definitivas) com base em elementos de sentido que, no fundo, são inatingíveis.
A associação entre essa escolha divina (assumir um corpo humano masculino) e sua representação por obra de um ministro ordenado do sexo masculino não deveria (e não pode mais) ser considerada uma evidência autoexplicável: ela levanta um problema.
A inconsistência do argumento da conveniência da “semelhança natural” – que significativamente a Ordinatio sacerdotalis não retoma – já foi suficientemente examinada, razão pela qual nos limitamos a indicar que a verdadeira questão problemática é outra: o ministro ordenado é chamado a representar Cristo ou, antes, a estar a serviço da Sua presença [2]?
O ministério ordenado é um serviço prestado ao sacerdócio batismal (ou comum), que, aliás, é o único sacerdócio que Deus quis para o seu povo, sendo Jesus Cristo o último e único Sacerdote [3]. Qualquer pessoa – uma vez reconhecido e examinado o seu carisma – está em condições de servir todo o povo sacerdotal em nome de Cristo. Isto é, de fato, in persona Christi: esta fórmula – que no segundo milênio foi reservada a algumas funções dos ministros ordenados durante a celebração eucarística – deveria ser explicada melhor, relativizada para não ser empregada em sentido exclusivo, e sempre entendida na interação estrutural entre a ação do ministro in persona Ecclesiae – que é fundacional – e a ação in persona Christi, que é uma consequência.
“Só agindo in persona ecclesiae que o sacerdote age in persona Christi. Segundo a tradição, os sacerdotes presidem a eucaristia porque presidem a Igreja. A ordem inversa não se verifica [4].” Isso convida a uma última reflexão.
Para compreender o sentido da presidência – nesta época inédita da Igreja, profeticamente centrada na sinodalidade – convém revisitar a relação entre vida cristã, sacerdócio e celebração eucarística.
Ghislain Lafont [5] faz isso a partir da unidade na diferença entre a Páscoa de Jesus, seu sacrifício eterno sempre oferecido ao Pai no amor, o sacrifício espiritual da Igreja no tempo e o sacrifício sacramental da Eucaristia, que manifesta e torna presente um ao outro o sacrifício da Cabeça e o dos membros.
Ora, o “sacrifício espiritual” dos cristãos (cf. Rm 12,1) é o exercício da caridade nos vários âmbitos da vida e o “sacerdócio” cristão é o da comunidade dos fiéis que vive essa caridade, disponibilizando seus carismas. Portanto, a realidade sinodal está intrinsecamente ligada ao sacrifício de Jesus, ou melhor: é a forma peculiar de sacrifício espiritual que o Senhor pede hoje à sua Igreja.
Sobre tais bases, o valor da presidência torna-se mais inteligível. Toda liderança eclesial nada mais é do que uma certa encarnação da autoridade de Jesus Cristo, porque toda forma de autoridade exercida no Corpo torna presente, à sua maneira, a autoridade da Cabeça. Dado que toda liderança deve interagir com as outras, é necessário alguém que tenha a autoridade global sobre a comunidade: um “moderador” que presida a comunidade reconhecendo, ativando e coordenando os carismas, as autoridades e os polos de atividade nela presentes.
A pessoa que preside esse sacrifício espiritual da comunidade – a busca sinodal da harmonia dos carismas em vista da missão evangelizadora – deveria presidir também a Eucaristia, ápice e fonte da vida cristã, onde os fiéis alcançam o sentido desse seu sacrifício, unindo-se misticamente ao de Cristo, com suas vidas livremente oferecidas.
Com efeito, qualquer pessoa que detenha esse carisma de presidência comunitária é ordenado, em princípio, a presidir também a celebração eucarística, precisamente porque ela confere à construção sinodal sua realidade definitiva. Hoje em dia, porém, para presidir uma celebração eucarística é necessário (é suficiente) ser ministro ordenado (homem), e, no limite, mesmo que não se tenha nada a ver com a vida da comunidade em que se celebra.
Faz pleno sentido? Em que condições outra pessoa – que efetivamente preside a sinodalidade de uma comunidade – poderia realizar esse ato final de presidência?
1. Cf. A. Röper, Ist Gott ein Mann? Ein Gesprächt mit Karl Rahner. Patmos Verlag, 1979, pp. 66-78.
2. S. Noceti discute isso em A. Grillo (org.), Senza impedimenti. Queriniana, 2024, pp. 111-118, assinalando também o instrutivo debate a esse respeito – a partir do sentido de in persona Chisti – entre Sara Butler e Dennis M. Ferrara.
3. Cf. a recente intervenção de F. Rossi De Gasperis, “L’umorismo della Lettera agli Ebrei”, Il Regno – Attualità 8 (2024), pp. 257-269.
4. Cf. H. Legrand, “Traditio perpetua servita? La non-ordenation des femmes. Tradition ou simple fait historique?”, in P. De Clerk – É. Palácio (orgs.), Rituels. Mélanges offerts à Pierre-Marie Gy. Paris: Cerf, 1990, p. 410.
5. Retomo aqui algumas de suas reflexões realizadas ao longo das décadas de sua reflexão e retomadas sinteticamente no fim de sua vida em Petit essai sur le temps du pape François (Cerf, 2017) e em Le catholicisme autrement? (Cerf, 2020), que representam um sábio testamento espiritual.
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Masculinidade e presidência. Artigo de Luca Castiglioni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU