"Para além das controvérsias sobre as teses de Butler e Wittig, nos parecem interessantes as considerações de Redaelli sobre o papel do trabalho linguístico-filosófico na construção do mundo. A gênese arcaica da palavra mágica indicava um poder transformador do sinal, que não fornecia meras informações (memorizáveis em fórmulas da escrita), mas selava o encontro entre falantes e induzia sua transformação no rito sagrado", escreve Paolo Marino Cattorini, ex-professor univesitário italiano, conselheiro filosófico e bioeticista clínico, em artigo publicada por Settimana News, 09-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Acerca do debate teológico sobre o gênero pesam antigas proibições. Uma exegese literal e aistórica de "E Deus criou o homem [..] homem e mulher os criou" (Gn 1,27, em suas referências a Mt 19,4, 1Cor 11,7, Col 3,10, Ef 4, 24) esquece que a passagem citada é "mais evocativa do que descritiva", e que a pesada visão androcêntrica do narrador dos capítulos seguintes (ver P. Rota Scalabrini na p. 127, 143 e 147 em Aa.Vv., Maschio e femmina li creò, Milão, Glossa, 2008) justificadamente desconcerta o leitor contemporâneo.
Também o biblista Paolo De Benedetti, em Maschio e femmina li creò, Modena, Fondazione Collegio S. Carlo, 2004, lembra que o estilo bíblico dominante, patriarcal e masculinista (nunca totalmente eliminado do catolicismo e da ortodoxia), explica-se pelo fato de suceder a culturas idólatras e matriarcais. O que significa que estamos autorizados a imaginar (e obviamente narrar ou representar) narrativas "de gênese" de tipo mais feminino, sororal e materno.
Premissa. Nada de novo…
Livro "Maschio e femmina li creò". (Foto: Divulgação)
Em vez disso, acontece a certos exegetas do Primeiro Testamento que, apegando-se a textos complexos e plurívocos, tentam apressadamente assegurar aos crentes de hoje que as coisas continuam todas no seu lugar originário e que tudo deve ficar assim. De modo que surgiriam por si só, quase dedutivamente, as consequências de ética aplicada (erroneamente denominada "moral especial"), todas com viés de conservadorismo.
Na realidade, nem a premissa descritiva convence (em termos de gênero, o debate e as iniciativas de movimentos internacionais documentam que bem pouco está em seu suposto lugar) nem a consequência ética (como demonstram os Departamentos de estudos de gênero de todo o mundo) é tão logicamente unívoca. Mas, de fato, as academias limitam-se a reiterar o "não" do passado e, vendo agora vedado o caminho do naturalismo neoescolástico, utilizam – domesticando-o - o personalismo ricoeuriano, chegando às conclusões anteriores, como se a evolução cultural dos termos sexo e gênero não tivesse nada para ensinar.
No entanto, o documento que serve de Instrumentun laboris (fruto das várias assembleias continentais) para a fase final do Sínodo, convocado pela primeira vez "a partir de baixo", espera que sejam dados passos concretos para ir ao encontro de pessoas LGBTQ+, que se sentem excluídas da Igreja (20 de junho de 2023, Michela Nicolais, chiesadimilano.it).
Não surpreende que o apoio a decisões legislativas proibicionistas também se alavanque sobre essa vulgata teológica para achatar a reflexão pluralista e aumentar a penalização jurídica. A maternidade de substituição é declarada crime sem que o fundamento ético tenha pensado suficientemente os termos envolvidos: matherhood, surrogacy, temporary mother (maternidade, substituição, mãe temporária) e as muitas outras maneiras de definir um ato, cujo significado é diferente conforme o tempo. Alguns a traduzem como “gestação para outros”.
Foi preciso uma feliz iniciativa, uma contribuição de cima da Eclésia (a exortação Amoris laetitia) para reabilitar o discernimento e resgatá-lo da violência que uma específica ética religiosa estava lhe infligindo (the abuse of casuistry, ou seja, a violência contra a casuística, não é afinal um caso historicamente novo). Conhecemos o caso de dois parceiros do sexo masculino, ligados nos EUA por uma relação homossexual de longa data, que sentem uma necessidade genitoral e entram com um pedido de adoção, descobrindo nesse ínterim que uma conhecida deles gostaria de interromper uma gravidez indesejada.
Eles a convencem a não fazer isso e a permitir o reconhecimento de paternidade de um deles. Eles prometem arcar com os custos (entre outras coisas) do trabalho perdido e dar a ela uma contribuição como forma de agradecimento. Como julgar o caso? Crime universal? Assemelha-se ao pedido expresso há alguns anos por casais católicos heterossexuais, casados e com filhos, que se dispunham à adoção pré-natal (ou seja, a transferência para o útero) de alguns embriões criopreservados excedentes, que seriam sistematicamente destruídos (milhares!) nos laboratórios britânicos porque já não eram mais reclamados pelos pais biológicos. Parecia-nos uma generosa disponibilidade.
O embrião não é justamente "um de nós"? De modo algum, replicaram alguns docentes "puristas": se os pais sociais não são aqueles biológicos, então a gestação se configura como "substituta" (o termo é deliberadamente retirado da economia de troca), o que é cristãmente inaceitável.
Causa uma impressão positiva ler hoje o que o ginecologista e teólogo Salvino Leone escreveu em Bioetica, fede e cultura, Roma, Armando, 1995, p. 85, que justamente distinguia a maternidade de substituição mercenária de situações de ajuda intrafamiliares (nas quais, eventualmente, poderia aparecer uma chantagem psicológica e uma perturbadora sobreposição entre as mães, caso a avó "emprestasse" o útero à mãe) e de condições absolutamente oblativas em que uma "barriga de aluguel" socorreria uma mulher que adoecesse repentinamente (e cujos óvulos fecundados já estivessem prontos para a implantação), "oferecendo" o útero e entregando o recém-nascido, após o parto, à mãe legítima. Isso também é um crime universal?
No debate sobre o gênero, a ética contemporânea distinguiu as posições do feminismo igualitário (o "segundo sexo" segundo Simone de Beauvoir), do pensamento da "diferença" (segundo a qual existiria uma especificidade "ontológica" intrínseca dos dois gêneros dominantes, que o domínio androcêntrico não compreendeu e sujeitou) e pelas teses “construtivistas” que, em nome de Deleuze e Derrida, atribuíram a diversidade identitária a fatores de ordem sociocultural e à liberdade das opções individuais.
Judith Butler é geralmente incluída nesta última escola, o que apoia a seguinte tese. Gênero seria um efeito de linguagem, que, repetido, cria, entre seus efeitos, o de estabilizar e “normalizar” (ou seja, considerar “natural”, “certo”, “normal” em sentido prescritivo) o único par de gêneros homem/mulher e a forma heterossexual de sua união procriadora.
À apologia dessa família tradicional (também defendida por algumas correntes psicanalíticas) Butler opõe a verdade relacional de condutas bizarras, nômades, "estranhas" (queer), que através da paródia, da imitação e do travestismo (drag), contestam o androcentrismo homofóbico hegemônico.
A filósofa estadunidense Judith Butler, uma das principais teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer. (Foto: Reprodução | Wikimedia Commons)
Quem quisesse aprofundar o tema, poderia ler o verbete "Butler" editado por A. Cavarero, Enc. Filos., Milão, Bompiani, 2006, p. 1552; R. Braidotti, In metamorfosi, Milão, Feltrinelli, 2003 e V. Tripodi, Filosofie di genere, Roma, Carocci, 2015. Vera Tripodi dedica um capítulo inteiro às questões religiosas do gênero, passando em resenha também textos de teologia. Seria desejável que fosse oferecida uma recíproca hospitalidade (crítica, obviamente) às teologias feministas pelos manuais ético-religiosos atuais.
De qualquer forma, a inclusão de Butler no "terceiro" feminismo, tratando-se de uma filósofa exigente, crítica e há tempo produtiva, como Judith Butler, simplifica, de certa forma, sua linha de pesquisa. Enrico Redaelli, professor da Universidade de Verona e aluno de Carlo Sini, faz uma exposição dos perfis teóricos de uma conhecida ativista LGBT+ e militante feminista, autora de livros muito citados: Sujeitos de desejo, Problemas de gênero, Corpos que importam, Desfazendo gênero, Corpos em Aliança, o livro de Redaelli, Judith Butler. Il sesso e la legge é publicado pela Feltrinelli, 2023 (pp. 190, euro 16, série “Eredi”).
O livro de Enrico Redaelli, "Judith Butler: Il sesso e la legge". (Foto: Divulgação)
Butler, na realidade, contesta uma visão grosseiramente "culturalista" (segundo a qual "tudo deriva da cultura") e critica uma interpretação incorpórea do gênero homo se fosse totalmente separável do "sexo". O sexo, ao contrário, seria desde sempre “já” gênero (p. 8 e p. 15), assim como o gênero é “já” sexo (p. 39). Na construção do gênero de fato, a base biológico-sexual, com suas características materiais e "naturais", conta bastante (p. 26).
A questão é que a natureza não é separável da cultura, dado que no homem, animal cultural, há: 1) uma natural tendência a pensar por categorias, a propor exceções, a induzir metamorfoses, a atribuir-se novos papéis; 2) e há um constante trabalho cultural de domesticação do ambiente interno e externo do corpo, a fim de defender e governar as exigências físico-biológicas de uma criatura tão frágil a ponto de necessitar de um longo desmame e de uma proteção parental assídua em comparação com outras espécies.
Além disso, a biologia organicista não tem o direito de reivindicar um conhecimento unívoco e definitivo sobre o corpo sexuado. Não só porque, pelo menos depois da fenomenologia, a distinção entre Leib (o corpo vivido, o corpo próprio) e Körper (o corpo anatômico, o corpo morto) não pode mais ser contornada. Mas também porque os paradigmas científicos, e em particular biomédicos, são afetados pelos ideais socioculturais dominantes de homem, mulher, família, pudor, genitoralidade, ritos de namoro, casamento e vida familiar. Além disso, escolhas ético-políticas estruturam a definição e o "uso" dos corpos sexuados.
Não é por acaso que os mitos de origem, mesmo os religiosos, falam de personagens sexuados que, movidos pelo desejo, exploram seus privilégios e pagam por suas culpas orgulhosas. Os mitos narram as regras sociais que não se conseguem explicar logicamente e que são atribuídas à responsabilidade de nossos antepassados. Estes empreenderam investigações que não eram apenas legítimas, mas obrigatórias. O destino de Adão não era permanecer uma criança tola desprovida de discernimento e conhecimento, mas (assim sentencia o mito) ele não podia dar-se sozinho limites e poderes indiscriminados. Uma convocação não escrita, um mandamento, um convite acolhedor o precediam e o nutriam, orientando-o para uma vida de relação no cosmos.
Butler aponta justamente que pulsões selvagens ainda habitam a linguagem e que, inversamente, escolhas linguísticas modulam o desejo que nos move. Duas derivas devem, portanto, ser evitadas. Por um lado, o naturalismo ingênuo degenera em materialismo evolucionista, como se as leis darwinianas pudessem marcar o decálogo das ações corretas. Por outro lado, o libertarismo abstrato desconsidera a importância do exercício coletivo na ascese corporal (ascese deriva do grego àskēsis, "exercício").
O comportamento sexual (a performance dos homens e das mulheres que entram em contato entre si em carne e ossos e que realizam uma repetição estilizada de determinados gestos) é como uma dança primordial que molda a identidade dos atores e, portanto, também o seu gênero. O marido que hoje cada vez mais “atua” como mãe, poderíamos exemplificar, introjeta habilidades “rítmicas” tradicionalmente cultivadas no mundo feminino e “renasce” no plano social com novas competências, que redefinem a sua própria identidade de parceiro sexual. Felizmente, ele não é mais o ser masculinista de antigamente.
Em nosso livro Mangiare solo pensieri. Etica dell’anoressia (EDB, 2016) havíamos justamente lamentado a quase total remoção das pesquisas linguísticas das pesquisas filosóficas e teológicas relacionadas à ética sexual. O terceiro gênero, de fato, aquele gramaticalmente neutro, não desapareceu de forma alguma; reinventou para si um espaço pouco visível para abrigar o que não encontra morada na vida das palavras.
O livro de Cattorini, "Mangiare solo pensieri. Etica dell’anoressia". (Foto: Divulgação)
Diante da fluidez dos gêneros, não há apenas um evidente embaraço em impor socialmente regras binárias de acesso (como a entrada em banheiros públicos ou a seleção em escolas ou papéis profissionais), há também uma série contínua de lapsus, de atos perdidos e neuroses cotidianas na adoção desta ou daquela expressão lexical (pessoal ou impessoal, fixa ou flexionada). No medo de crescer engordando, típico das jovens anoréxicas, está a angustiante dúvida de se transformar involuntariamente numa "mulher" de traços arcaicos e mortíferos.
Por outro lado, se a língua se empobrece em nome do pragmatismo e do retorno ao analfabetismo, algumas diferenças (internas a um mesmo gênero) não são mais percebidas, não se veem mais, apesar dos esforços dos gurus da psicologia para guardá-las, já que o problema não é da psique, mas da filosofia. Nesse sentido, a nosso ver, deveria ser desenvolvida uma crítica mais severa dos pressupostos epistemológicos de Lacan e seus alunos (M. Fornaro, Scuole di psicoanalisi, Milão, Vita e Pensiero, 1988, seria um excelente ponto de partida).
Butler critica justamente o pressuposto de inventar arbitrariamente ou perceber intelectual e diretamente a essência "masculina" ou "feminina", de modo a não merecer assim a acusação de subjetivismo. Butler, em vez disso, investiga as dimensões de avaliação daquela que pareceria uma descrição objetiva. Quando se distingue uma anatomia humana normal de uma patológica, inspiramo-nos num modelo de cidadão saudável, eficiente e produtivo segundo cânones históricos mutáveis.
Quando se diferencia um sistema (por exemplo o geniturinário) de outro (por exemplo o gastrointestinal), partimos de uma prévia compreensão daquilo que qualifica principalmente o ato de comer, de procriar, de gozar sexualmente, de ingerir líquidos. Nos corpos, diria Butler, estão inscritos significados e os significados não podem ser ignorados ao demarcar o corpo feminino em "partes" genitais como vagina, clitóris ou vulva.
O uso, o hábito, os costumes, os papéis sociais, as modalidades de ajuda sanitária, a aplicação de próteses, a adoção de determinado vestuário ou local de moradia fazem a diferença. A representação meramente externa de atos cruciais e íntimos da existência, como fazer amor, dar vida, morrer – além de não fornecer definições vinculantes dos sujeitos envolvidos – degenera em uma narrativa pornográfica ou numa prosa sentimental romantizada, pois pode ser "visto” apenas o que é guardado, velado e interpretado em sua imprevisível, fulgurante e irrepetível verdade dramática interior.
O filósofo francês Jean-Luc Marion no Il fenomeno erótico (um texto que merece consideração atenta tanto quanto Dal sesso de J.-L. Nancy) falava de "fenômenos saturados" imponderáveis e ofuscantes, abertos a uma hermenêutica perene. “Quem” nós somos (o ipse, para além do idem, do "o que" diz sobre nós a carteira de identidade) não é captado pelo olhar no espelho ou pela leitura de um laudo médico, mas por meio de encontros, mediações, leituras, fantasias oníricas (de sono ou de vigília), experiências sentimentais – gratificantes ou decepcionantes – em que nos contamos aos outros e nos deixamos por eles denominar. Desse ponto de vista, segundo Butler, todo sujeito é "nômade", pois conserva uma reserva de potencialidade, exatamente como o organismo vivo tem uma normatividade perene e em condições (se for saudável) de dar novas normas ao meio ambiente.
O livro de Jean-Luc Marion, "Il fenomeno erótico". (Foto: Divulgação)
Com a nossa linguagem [P.M. Cattorini. Frasi di famiglia. Il linguaggio della vita domestica, Bolonha, EDB, 2015]: estamos em uma peregrinação constante rumo a uma terra almejada em virtude de uma promessa que a vida elevou e na qual acreditamos, apesar da precariedade de nossos esforços. Somos seres inacabados e não cabe a nós garantir, projetar em detalhes ou concretizar tal conclusão: a interdição operada pela lei retira de nosso poder o que de outra forma se tornaria um ídolo vazio, mudo, surdo, obsceno.
Alguns expoentes da própria teologia católica (pensamos nos estudos de Aristide Fumagalli, La questione gender. Una sfida antropologica, Brescia, Queriniana, 2015) distinguiram apropriadamente pertinentes "perspectivas de gênero" de falsas ideologias de gênero (pág. 71).
As primeiras lembram ao personalismo ético que a identidade sexual é o resultado de fatores biológicos, psico-evolutivos, comportamentais, sociais e de escolhas originais inspiradas por uma determinada fé na vida. Pelo contrário, a redução a apenas um desses componentes desliza para uma instável dissociação identitária. No crescimento pessoal está em jogo uma remodelação continua, feita de alianças renovadas, como se as fronteiras entre sexo e gênero fossem permanentemente redesenhadas para preencher um vazio originário (defende Butler), no qual os símbolos da relação amorosa aludem sem conseguir enrijecer a barra que separa os dois âmbitos.
Por amor pode-se optar por não ter filhos, apesar de ter condições físicas adequadas; por um desejo inconsciente de não ter filhos, alguns casais não conseguem procriar; pelo pânico de perder a condição "livre" de solteiro, alguns perdem a liberdade de se casar, de se declarar "para sempre"; há "eunucos" por opção, que não sofrem de nenhuma patologia hormonal e há sujeitos que tomam substâncias químicas perseguindo o sonho de um poder genital semidivino e saboreando narcisicamente um amor fusional pânico.
O devir dos gêneros não é uma peregrinação pacífica e lúdica. Envolve (defende Butler, de quem devem ser lembrados episódios biográficos específicos de militância) conflitos, exclusões, lutas, mutilações, divisões comprometidas de poder. As mesmas categorias sociológicas ou psicopatológicas (Redaelli explica isso brilhantemente) são afetadas por teorizações tendenciosas: o sujeito "falante" é geralmente europeu, branco, homem, cisgênero, burguês. Basta pensar no destino da homossexualidade gradualmente expulsa do catálogo dos transtornos psiquiátricos.
As lutas culturais contra a visão exclusivamente binária e falocêntrica da sexualidade têm justamente evidenciado, para além de algumas hipérboles eufóricas e arbitrárias autoabsoluções (recitadas atrevidamente em algumas marchas públicas), a multiplicidade das vivências de gênero, o vínculo destas últimas com as diferentes performances unitivo-procriativas e a dificuldade de encontrar um marcador unitário (genético ou anatômico? endocrinológico, comportamental ou fenotípico?) para atribuir o sujeito a um dos sexos (que seriam cinco, segundo Anne Fausto-Sterling) ou para codificar o status das condições da intersexualidade, evitando normalizar cirurgicamente o que a ontogênese desenhou de forma mista.
Retomando a lição de Hegel, Heidegger, Foucault, Lacan e John L. Austin (sobre a categoria linguística do "performativo" - uma retomada que Nussbaum teve oportunidade de criticar), Judith Butler aprofunda essas intuições, segundo Redaelli. O corpo não é uma simples presença, fixada de uma vez por todas a partir da concepção, mas é a consciência encarnada na qual experimentamos um mit-sein com outras subjetividades. Somos surpreendidos e fascinados por uma atração, formulamos ou desconfirmamos promessas, lutamos por um reconhecimento social, confirmamos ou refutamos um determinado significado das pulsões. Em termos teológicos diríamos que o desejo busca uma norma para não ser degradado a necessidade e que toda norma vice-versa só pode ser compreendida e aplicada interpretando o desejo que nos conquista e nos revela a nós mesmos.
Butler (na síntese feita por Redaelli, mais atenta ao viés especulativo da autora do que a determinadas teorias de ética de gênero) busca o polo indiferenciado de onde surgiram as dualidades (natureza/cultura, cérebro/mente, sexo/gênero, homo/heterossexual): as qualidades primorosamente pessoais não podem ser expurgadas das reconstruções fisiológicas; e vice-versa, os efeitos dos dados genéticos, metabólicos, alimentares e clínicos pulsam na vivência de gênero. Ambas as esferas são influenciadas por pressões sociopolíticas que recomendam ou sancionam determinadas condutas, recompensam ou punem determinados fenômenos, exaltam ou ocultam determinadas performances.
Por sua vez, a própria polis (e o papel que ela nos atribui) é um corpo que, como a carne individual, evolui continuamente colocando limites ao instinto e ligando as pulsões a representações (lembre-se o estudo de Ricoeur sobre Freud: Da interpretação), voltadas para um futuro imaginário e generativo de normas não meramente impositivas. A própria identidade pessoal, segundo Butler, é um itinerário em progresso, mais que o derivado atual e inviolável de um substrato orgânico. Desse ponto de vista, uma espécie de bissexualidade interna nos lembra que somos fruto de uma separação, de um corte ancestral (sexus, de secare) que nos impôs renúncias linguísticas e comportamentais, expressivas e autorrepresentativas, sem poder impedir, de uma vez por todas, conversões e remodelações, reeducações e explorações relacionais.
A advertência de Beauvoir: "não se nasce mulher, torna-se mulher" ainda permeia, embora em novas explicitações, as teorias do feminismo (e do gênero). Bastaria relembrar a trajetória intelectual de Monique Wittig (1935-2003), importante referência para o feminismo lésbico estudada e parcialmente criticada por Butler.
De Wittig, Butler deriva a noção de contrato heterossexual como paradigma epistêmico que atribui inteligibilidade aos corpos apenas a partir de um gênero estavelmente enquadrado-por e direcionado-para a prática da heterossexualidade (e por meio desta, para a procriação). Para Wittig, não se deve firmar pactos com o "regime" heterossexual caso se deseje erradicar a oposição política entre homem e mulher. A vivência lésbica desestrutura a fixidez binária da qual deriva a identidade "feminina" tradicional.
Incomodado com essas críticas desagregadoras, o mercado midiático imagético pisca e paga generosamente, a fim de reassimilar pacificamente o "corpo lésbico" aos cânones da moda (O corpo lésbico é o título de uma conhecida obra de Wittig recentemente republicada pela VandA Ed., Milão, 2023) convidando as "desviantes" aos programas televisivos mais frequentados por influenciador e youtubers (os novos educadores morais patrocinados pelo fashion business). Se a mulher (“one is not born a woman” – como Wittig traduz Beauvoir) não se torna mulher por constituição biogenética ou por revelação espiritualista, mas por práticas como aquela da escrita, em que se trabalha sobre a linguagem (entendida como máquina de guerra cultural propriamente dita), de modo que ela reconheça formas minoritárias de vivência erótica, removidas dos catálogos dos signos dominantes.
Wittig defendeu a experiência lésbica (às vezes qualificando-a como um terceiro gênero, às vezes declarando-a um não-gênero) da acusação simplista de irracionalidade ou desvio psíquico e denunciou a funcionalidade "política" da distinção homem/mulher, no que diz respeito aos interesses "econômicos" da heterossexualidade reprodutiva. As teses de Wittig retomaram a intuição de Beauvoir segundo a qual, paradoxalmente, há um só sexo, o feminino, pois o homem ocidental foi progressivamente assimilado ao eu pensante, desencarnado, universalizante, incorpóreo, não gerado e desapaixonado, relegando as mulheres à imagem de interlocutoras "particulares", relativas, perspectivas, situacionais, interessadas, afetivamente atentas às suas próprias diferenças corporais e às alheias.
Por exemplo, a definição da saúde como "vida no silêncio dos órgãos" (dada pelo cirurgião René Leriche em 1937) é tipicamente masculinista, visto que para a mulher, que menstrua mensalmente, a saúde comporta uma perda de sangue e o simbólico "choro" por não ter o próprio filho. Ao contrário do masculino, o ser feminino "é” o próprio sexo e não simplesmente o “tem" ou o "usa”.
No entanto, segundo Wittig, a oposição histórica em relação às mulheres, aos gays e às pessoas lésbicas distorceu o horizonte fenomenológico e impôs um código de significação discriminatório, para corrigir o qual se deveria aprender a redescrever os corpos e sua vida sexual, sem recorrer a categorias discursivas reificadas, como o sexo do ponto de vista anatômico ou como o gênero como "sexo fictício".
Falávamos a respeito das objeções levantadas por Butler às teses de Wittig.
(1) Wittig não levaria a fundo a desestruturação proposta por Derrida e continuaria a se mover dentro de uma metafísica da substância (um humanismo pré-social anterior ao agir sexual), exigindo apenas que sejam atribuídas a mais sujeitos (além daquele masculino) as competências e o poder de adotar uma linguagem universal (entendida como simples instrumento). Quando Wittig invoca a destruição do “sexo” (e dos códigos sexualmente “heterodirigidos” como marcadores distintivos e organizacionais dos corpos) espera erroneamente que as mulheres possam finalmente assumir um ponto de vista universal, como se a pessoa não fosse por si só conotada pelo gênero. Recordamos que, segundo Wittig, uma pessoa lésbica não seria propriamente mulher, e mais genericamente poderia, se assim o desejasse, não se tornar nem masculino, nem feminino, nem homem, nem mulher, desagregando os vários componentes do gênero.
(2) Wittig ainda estaria ligada ao pensamento da diferença (o segundo feminismo de Irigaray) simplesmente aspirando a multiplicar as figuras pessoais que se diferenciam do "masculino". A consequência fatal dessa proliferação identitária é o estilhaçamento da própria categoria “sexo” ou “gênero”, que se tornaria incapaz de reivindicar reconhecimento unitário e igual para todos os sujeitos humanos que abarca.
(3) Wittig continua a atribuir a sujeitos individuais concretos o poder de "dizer eu" e reivindicar direitos: essa ênfase na autonomia libertária ignoraria a lição psicanalítica sobre a força do desejo, que descentraliza, precede e desorienta o sujeito "racional" falante. O Ego, como Freud escrevia, de forma alguma é dono em sua própria casa.
(4) Wittig opõe de forma apriorística o conformismo tradicional à natureza radical das mudanças agora prementes, mas isso nos impede de ressignificar de forma não despótica a heterossexualidade e desconsidera a copresença de homo e heterossexualidade psíquica (ligada ao chamado bissexualismo universal) nas relações interpessoais mais afetivamente calorosas. Na realidade, a feminilidade não pertence apenas às mulheres, nem o lesbianismo pode ser imaginado como uma rejeição total da heterossexualidade.
(5) Wittig atribuiria ingenuamente à linguagem uma transformabilidade fluida e orientável livremente a uma luta política que privilegie soluções "proto-evolutivas" da sexualidade (reportando-se a perversidade polimórfica infantil de Freud) ou ações "pós-genitais", que se vangloriariam de ainda estarem imunes à sufocante normalização binária.
Obviamente os/as "discípulos/as" de Wittig tiveram a oportunidade de replicar (leia-se o Prefácio de Deborah Ardilli para O corpo lésbico, citado acima, pp. 9-57).
(a) Até e incluindo Butler, o feminismo não teria levado a sério o programa lançado por Wittig de "tornar-se heroicas na realidade e épicas nos livros". A consequência é que o velho feminismo involuntariamente joga sem perceber o papel do opressor, que conserva os mitos vigentes, em vez de jogar o papel do oprimido que tende a transformar tanto o mundo quanto o mito.
(b) O trabalho da escrita é entendido de forma naturalística pelo pensamento da diferença como uma secreção corporal fisiológica, que o organismo das mulheres produziria espontaneamente, como o leite, para fins simbolicamente nutritivos, enquanto a escrita para Wittig é uma máquina de guerra ou um bisturi, que redefine limites e demarcações corporais, desmentindo a normalidade da anatomia heterossexual. Uma boa escrita dissocia os corpos e as sociedade, e o lesbofeminismo não concede concessões ao pretender uma inédita emancipação.
(c) Enquanto Butler e a psicanálise lacaniana de referência atribuem centralidade à relação mãe-filha, Wittig propõe o mito das “Amazonas”, completamente indisponível ao olhar masculino e polemicamente hostis a qualquer celebração “pornográfica” trendy da performance lésbica; afinal, reivindicar uma "diferença" feminina significa implicitamente pensar-se a partir da identidade masculina, em relação à qual a mulher se contentaria em ser "diferente" e ganhar contratualmente pelo menos o reconhecimento de "ser como a terra", ou seja, condição fecunda generativa.
(d) À acusação de que o ideal lésbico imita de forma veleitária o modelo masculino, Wittig responde, ao contrário, que é o contrato heterossexual (do qual a procriação "natural" seria a coroação) que permite a apropriação/sujeição das mulheres pelos homens. Esse contrato não deveria ser corrigido e reformado (valorizando um papel feminino um pouco mais autônomo dentro do casal familiar tradicional, no qual a mulher é bem-vinda se "complementar" ao homem) mas deve ser pulverizado. A lésbica “dissocia-se” da assimilação à ideia-de-mulher porque desconfia de qualquer “marcador” sexual, que coloque um carimbo forçado de pertença ao que é por sua natureza nômade, peregrino, subjetivo. Para Wittig, em retrospectiva, não existem mulheres heterossexuais!
Judith Pamela Butler (nascida em Cleveland, Ohio, em 1956) mostra-se, no significativo retrato que Redaelli faz dela, uma interlocutora necessária nos estudos de gênero, agora contemplados em muitos departamentos de ética. É legítimo contestar algumas dimensões: por exemplo, o fato de ter absorvido algumas questionáveis premissas pós-modernas, de ter sucumbido ao voluntarismo "nômade" na concepção da postura do agente moral e de ter mantido um léxico "industrial" ao desejar um "controle" sobre os órgãos e a "reprodução".
No entanto, a importância atribuída à performance no desenvolvimento da identidade de gênero não pode ser descartada como uma grosseira apologia pragmática da ideologia queer. Desde sempre nós estamos ligados aos gestos rituais que nos são ensinados e que depois decidimos repropor em nome do suposto bem nosso e alheio. A ação (conforme ensinava o próprio Maurice Blondel em L'Action) não é um evento opcional para o amadurecimento de nossa identidade, como se possuíssemos a priori qualidades e faculdades "humanas" já "funcionantes" e pudéssemos apreender intelectualmente (num puro autoespelhamento) a verdade prática que deve ser obedecida. Infelizmente, o inferno está cheio de boas intenções.
Nós somos o que decidimos ser, no sentido que a promessa (pela qual jogamos a existência) e o perdão (com os quais redefinimos a injustiça sofrida) configuram de forma original – como lembrava Arendt em Vita activa– a estrutura pessoal que nos caracteriza: agir não é fazer tecnicamente algo, mas deliberadamente opor-se ao mal, rejeitando a violência dentro e fora de nós. Por ocasião do atentado às torres gêmeas, Butler (que também é uma excelente palestrante) defendeu a legitimidade do medo para a nossa vulnerabilidade como seres humanos (em vez de encobri-la com um imediato, ilusório acting out contraviolento e militaristas), cujos corpos nunca são apenas propriedade dos indivíduos, pois pretendem espontaneamente o outro e os outros, para além dos seus supostos “limites”.
Entendemos, portanto, a contestação de Butler daquele feminismo, que ela pretendia definir aistoricamente a qualidade identitária específica da mulher, mãe, gestante, companheira, ama, esposa ou solteira, sujeito de cuidado, pois assim corre-se o risco de derrubar (imitando-o) o próprio dualismo proposto pelo masculinismo, dividindo igualmente o desejo e o poder em duas realidades contíguas de sinal oposto e que se atraem uma na outra no modelo de ímãs recombinantes.
Além disso, não há provas de que todas as mulheres tenham a mesma experiência de sua corporeidade sexual e atribuam a mesma importância à gestação e, em suma, experimentem uma identidade de gênero sobreponível e reprodutível. Finalmente, a "celebração" do segundo tipo corre o risco de penalizar sujeitos transexuais ou intersexuais que buscam sua "ipseidade" por vias distintas daquelas (violentas contra elas) perseguidas historicamente.
Para além das controvérsias sobre as teses de Butler e Wittig, nos parecem interessantes as considerações de Redaelli sobre o papel do trabalho linguístico-filosófico na construção do mundo. A gênese arcaica da palavra mágica indicava um poder transformador do sinal, que não fornecia meras informações (memorizáveis em fórmulas da escrita), mas selava o encontro entre falantes e induzia sua transformação no rito sagrado.
As palavras do amor, diríamos nós, conservam o valor "sacramental" de sinais eficazes de uma força vital da qual o ser humano depende. Não se trata necessariamente, como conclui o livro de Redaelli, de uma performance anônima e impessoal que seria o próprio acontecimento da vida, mas do princípio de toda esperança, de uma transcendência que os sinais leem por meio de ícones imperfeitos, que remetem a um Cuidado generativo, inimigo da morte, do mal, do despotismo entre os gêneros e as gerações.