01 Junho 2024
"A Bula de 1264 que instituiu a festa de Corpus Christi centra-se em dois aspectos da Eucaristia que a recepção da festa foi gradualmente marginalizando: por um lado, o seu carácter “memorial” e, pelo outro, a sua natureza de “banquete”, de “refeição” e de “bebida”, escreve Andrea Grillo, em artigo publicado no seu blog Come se non, 30-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a unidade de memorial e alimento-bebida parece ser o registro fundamental em que se fala do sacramento eucarístico".
A festa que cai na quinta-feira seguinte à Oitava de Pentecostes, e que o ano litúrgico pode transferir para o domingo seguinte, foi instituída em agosto de 1264, pelo Papa Urbano IV, com a Bula Transiturus de hoc mundo. Como reconhece Ubaldo Cortoni, no texto de História dos sacramentos na Idade Média, este é um dos 8 eventos fundamentais que incidiram sobre a teologia medieval da Eucaristia. Trata-se, como documenta o historiador, da extensão para o nível universal de um fenômeno que havia surgido há algumas décadas em Liège. Mas o texto da Bula reserva muitas surpresas e, relido 760 anos depois, pode ajudar-nos a compreender a forma singular como a festa entrou no corpo e no coração da Igreja Católica ao longo dos séculos e a nossa tarefa de reler em profundidade a sua natureza.
A primeira coisa que podemos notar é que o texto de 1264 centra-se em dois aspectos da Eucaristia que a recepção da festa foi gradualmente marginalizando: por um lado, o seu carácter “memorial” e, pelo outro, a sua natureza de “banquete”, de “refeição” e de “bebida”. A festa nasceu num contexto que tinha as suas polêmicas (note-se a referência que o texto faz às posições dos hereges da época). Mas a história do catolicismo, tendo vivido outras controvérsias muito mais tarde, por assim dizer “ressignificou a festa”, traduzindo-a numa festa da “adoração da presença real” e de “solene exposição pública do sacramento”: mas esse tema está totalmente ausente do texto de instituição. Em cujo centro está o memorial da história da salvação e a celebração da ceia, com participação no único pão e no único cálice. Aqui estão alguns trechos significativos:
Cristo, nosso salvador, estando para partir deste mundo para ascender ao Pai, pouco antes da sua Paixão, na Última Ceia, instituiu, em memória de sua morte, o sumo e magnífico sacramento do Seu Corpo e do Seu Sangue, dando-nos o Corpo como alimento e o Sangue como bebida.
A unidade de memorial e alimento-bebida parece ser o registro fundamental em que se fala do sacramento eucarístico, como se depreende dos textos seguintes a essa introdução:
Deu-se, pois, o Salvador como alimento. Quis que da mesma forma que o homem foi sepultado na ruína pelo alimento proibido, voltasse a viver por um alimento bendito. Caiu o homem pelo fruto de uma árvore de morte, ressuscita por um pão de vida.
Daquela árvore pendia um alimento mortal. Neste, encontra um alimento de vida. Aquele fruto trouxe o mal. Este a cura. Um apetite malvado fez o mal, e uma fome diferente engendra o benefício. Chegou à medicina aonde havia invadido a enfermidade; de onde partiu a morte, veio a vida.
Daquele primeiro alimento se disse: “No dia em que comerdes dele, morrereis” (Gen. 2, 17). Do segundo se escreveu: “Quem comer deste pão viverá eternamente.” (Jo 6, 52).
Cabe acrescentar que o tema da “presença” não está ausente, mas quase em segundo plano. Contudo, é interessante notar que esse é provavelmente o primeiro texto em que, na história da interpretação de Mt 28,20, o texto se refere à “presença eucarística”:
Pois antes de subir ao céu disse aos apóstolos e aos seus sucessores: “Olhai: eu estou convosco todos os dias, até a consumação do mundo”, e os consolou com a benigna promessa de que permaneceria com eles também com sua presença corporal.
É igualmente interessante considerar as razões da instituição da festa. Com alguma surpresa descobrimos que a Bula não se propõe de forma alguma como função decisiva uma “exaltação do sacramento”, a não ser secundariamente. No centro está a “comunhão sacramental”. Isso nos surpreende bastante, porque a recepção foi dominada, depois da escolástica e depois da controvérsia com o protestantismo, pela lacuna entre “sacramento” e “comunhão”. Porque a recepção da festa rapidamente colocou o seu propósito primordial em segundo plano, e colocou a “consequência” em primeiro plano.
Aqui está o texto da Bula, numa passagem largamente esquecida:
Ainda que este sacramento sagrado seja celebrado todos os dias no solene rito da Missa, contudo, acreditamos útil e digno que se celebre, ao menos uma vez no ano, uma festa mais solene, em especial para confundir e refutar a hostilidade dos hereges.
Pois, na Quinta-feira Santa, dia em que Cristo a instituiu, a Igreja universal, ocupada na confissão dos fiéis, na bênção do crisma, no cumprimento do mandato de lavatório dos pés e em outras muitas sagradas cerimônias, não pode atender plenamente a celebração deste grande Sacramento... ordenamos também que exorteis aos vossos fiéis com recomendações saudáveis diretamente ou por meio de outros no domingo que precede à mencionada quinta-feira para que com uma verdadeira e pura confissão, com generosas esmolas, com atentas e assíduas orações e outras obras de devoção e de piedade, se preparem de forma que possam participar, com a ajuda de Deus, neste precioso Sacramento e possa dita quinta-feira recebe-lo com reverência e obter assim, com seu auxílio, um aumento de graça.
O texto afirma três coisas fundamentais:
– a festa nasce para “reparar” uma distração eclesial
– o descaso eucarístico da Quinta-feira Santa e o pedido de uma “recuperação”, sempre da quinta-feira, nove semanas depois;
– “comungar” todo o povo é o coração da festa, que recupera a “comunhão perdida” da Quinta-feira Santa.
Deve-se considerar também que a prática eclesial, desde 1215, conhece o “preceito pascal” (obrigação de confissão e comunhão pascal) que aqui é de alguma forma “reduplicado”. A relação entre os dois textos permanece bastante problemática.
Como é evidente, a leitura da Bula Transiturus permite-nos reler a tradição de uma forma surpreendente. Tentarei tirar algumas consequências essenciais: o texto fala-nos de um mundo que está "antes" da separação gradual, mas progressiva, entre "sacramento" e "uso": a redução da comunhão ao "uso do sacramento", que começa nos mesmos anos da Bula, criou aquela divisão que o Concílio Vaticano II e a Reforma Litúrgica tentaram reparar. Mas, novamente, na nossa maneira de celebrar o “rito de comunhão” estão as inércias dessa divisão (por exemplo, em retirar regularmente as partículas do tabernáculo). A festa foi pensada para recuperar a comunhão de todo o povo de Deus.
A relação com a Quinta-feira Santa é muito instrutiva: uma festa que nasce para "recuperar um défice de experiência" devido a uma prática distorcida da Quinta-feira Santa, como deve ser considerada quando a Quinta-feira Santa sofre uma dupla reforma (primeiro com Pio XII e depois com Paulo VI) que reabilita precisamente a sua dimensão eucarística?
A festa é instituída por uma Bula, que também esclarece a sua natureza de “processo penitencial”: que relação tem com o paralelo “preceito pascal”, que há pelo menos 50 anos deveria estar claro na consciência eclesial, já em 1264? E qual é a sua relação hoje com a dimensão penitencial readquirida do caminho quaresmal?
A recepção de um texto, que se torna tradição, insere muitas coisas belas que o texto não previa: as decorações com flores, as procissões, as formas da cultura social, familiar e pessoal não são, de forma alguma, simples acessórios. Mas a recuperação do sentido primário da festa, como redescoberta da "comunhão sacramental de todo o povo de Deus", como pode não levar em conta o fato de que nos últimos 70 anos a Igreja universal recuperou o valor iniciático do tempo quaresmal e pascal, em relação aos quais o sentido da festa do "Corpus Domini" é assumido pela grande estrutura penitencial e mistagógica dos quarenta dias quaresmais, do Tríduo Pascal e dos cinquenta dias pascoais?
Uma última curiosidade: na Bula Transiturus nunca se encontra a expressão “Corpus Domini” ou “Corpus Christi” para denominar a festa. A alegria e a solenidade referem-se à celebração e à recepção do preciosíssimo sacramento, em torno do qual a festa da Igreja recupera a alegria pascal, que as formas da época liam na pesada contraposição entre um “tríduo da paixão” e um “tríduo da ressurreição”. A unificação da experiência eclesial no único Tríduo Pascal - tornada novamente possível somente pela reforma de Pio XII e depois de Paulo VI - permite-nos uma releitura da tradição em que a festa de Corpus Domini não pode mais basear-se na necessidade de “recuperação” expressa pelo texto de 1264, que parece em grande parte superado pelo amadurecimento da consciência eclesial. O mesmo vale para as ressignificações da festa que constelaram o final da Idade Média e a idade moderna. A transcrição da festa para um novo registro pode passar, paradoxalmente, justamente pela reconsideração cuidadosa e sem preconceitos do seu texto fundador.
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A festa de Corpus Domini: um substituto já superado? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU