24 Mai 2019
No dia 17 de maio, a revista The Atlantic publicou o artigo “Abolish the Priesthood” [Abolir o sacerdócio], de James Carroll, uma crítica abertamente pessoal e extensa do clericalismo na Igreja Católica Romana. O autor, um ex-padre, escreveu sobre a sua angustiante decisão de se afastar da Igreja Católica institucional após décadas de decepção com a hierarquia, incluindo os últimos anos, que alimentaram ondas e mais ondas da crise dos abusos sexuais.
O comentário é do teólogo estadunidense Jason Steidl, professor e pós-doutorando na Fordham University e membro ativo da pastoral católica, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 23-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Perto do fim do texto, que trata muito mais do que o seu título chamativo sugere, Carroll propõe várias maneiras pelas quais os católicos podem reimaginar a sua tradição para atender melhor às necessidades espirituais suas e do mundo. Para os católicos esgotados com escândalos e mais escândalos na Igreja, Carroll oferece a esperança de que nem tudo está perdido. Ele argumenta que a comunidade, a espiritualidade e o serviço católicos enraizados na tradição antiga têm muito a oferecer para o mundo hoje.
Infelizmente, não foi assim que a maioria dos eruditos católicos receberam o pensamento de Carroll. De fato, em uma época em que a Igreja-da-internet é facilmente polarizada através das mídias sociais, o artigo recebeu condenações tanto da direita quanto da esquerda católicas. Raymond Arroyo, da EWTN, imediatamente descartou o trabalho de Carroll como “nada sério”, uma “sugestão a-histórica e antibíblica, com nenhuma representatividade no catolicismo”. Carl Olson debochou do autor como alguém especialmente inadequado para falar sobre o sacerdócio. O teólogo Charles Camosy, da Fordham University, perguntou retoricamente: “O que poderia ser menos provocativo do que esse argumento com séculos de idade?”.
Seminaristas e padres também ficaram incomodados com o artigo. O “seminarista feliz” (esse é o seu nome de usuário no Twitter) Cassidy Stinson – que será ordenado em breve pela Diocese de Richmond – disse no Twitter que o sacerdócio será abolido só por cima do seu cadáver.
O Pe. Matt Fish, em contraste, evocou a vindoura morte de Carroll, junto com o fim de todos aqueles que sintetizam “os piores traços da sua geração”. Em uma fétida demonstração de inépcia pastoral, Fish antecipou o dia em que “todos eles terão partido, enquanto reconstruímos a Igreja que eles tentaram destruir de acordo com o próprio modelo que tentaram apagar”. O padre jesuíta Sam Sawyer, que admitiu não ter lido o trabalho de Carroll, ofereceu um revirar de olhos instintivo em vez de um engajamento sério. Seu irmão jesuíta, Pe. James Martin, respondeu no dia em que o texto foi lançado com uma repreensão emocional que acusava Carroll e a Atlantic de espalharem desinformação e estereótipos.
Seja qual for a intenção de Carroll, seu trabalho tocou o nervo exposto de muitos dos meus amigos ordenados e de outros defensores do sacerdócio. Em uma época do ano em que a mídia social católica está cheia de padres celebrando seus aniversários de ordenação, Carroll calculou o tempo de seu artigo para interromper as crenças e práticas familiares. Sua ampla crítica à classe clerical, por exemplo, chegou apenas um dia antes de os Padres Paulistas, a ordem de padres com sede nos EUA que Carroll abandonou décadas antes, ordenarem um deles em Manhattan.
Muitos dos críticos de Carroll acusaram-no de má teologia e de abusar da história. Não é preciso ser um historiador da Igreja experiente, por exemplo, para ver as origens de uma classe sacerdotal no Novo Testamento. Ao contrário de Carroll, a Primeira Carta a Timóteo fornece uma longa lista de qualificações para os futuros líderes cristãos escritas centenas de anos antes da corte imperial de Constantino.
À luz das interpretações às vezes forçadas de Carroll sobre a tradição católica, seus críticos se perguntaram como uma publicação tão prestigiada como a Atlantic pôde publicar um artigo tão defeituoso. Alguns gritaram o anticatolicismo. Outros, relembrando décadas do seu próprio abuso pela mídia, disseram que o mundo adora odiar os padres. A maioria desprezou o trabalho honesto, embora às vezes acerbo, de Carroll como propaganda ilógica e anticatólica. Um padre na minha própria linha do tempo nas mídias sociais comentou que o autor deve estar ressentido depois de abandonar o sacerdócio há 45 anos.
Em suas rápidas respostas a Carroll, esses apologistas do sacerdócio revelaram mais da sua própria defensividade do que qualquer coisa sobre os escritos de Carroll. Em um ambiente midiático e eclesial que assume a culpa de todos os padres, os ordenados estão cansados de falsas acusações e de serem identificados com sistemas abusivos de poder. A maioria dos padres não tem problemas com o clericalismo, argumentam eles. Os abusadores sexuais foram removidos do ministério décadas atrás. Os críticos de Carroll foram rápidos em defender a si mesmos e às instituições das quais fazem parte. Em vez de ouvirem e de tentarem entender, eles puseram em movimento as carroças eclesiais mais uma vez.
Ao fazer isso, esses pastores eruditos não conseguiram reconhecer a dor que tantos católicos sentem exatamente agora. Muitos fiéis leigos se perguntam se é ético permanecer em uma Igreja cuja liderança fracassa tantas vezes de maneira tão espetacular. As perguntas que eles fazem não são meros exercícios teóricos. Muitos católicos estão indo embora, dilacerados por uma comunidade que tem sido fonte de muito bem e de muito mal em suas vidas. De fato, o trabalho de Carroll pode não ser a melhor eclesiologia e a melhor historiografia, mas representa os sentimentos de multidões de fiéis desanimados que veem sua Igreja desmoronando ao seu redor.
Kaya Oakes, autora e teóloga pública, empatizou-se com Carroll e se perguntou “quantos outros jornalistas católicos poderiam dizer a mesma coisa que James Carroll: ‘Eu não vou à missa há meses. Eu carrego um oceano de tristeza no meu coração’”. A âncora Elizabeth Scalia também soube se solidarizar. Embora tenha feito fortes críticas ao pensamento de Carroll, “na verdade eu não ODIEI o artigo dele. Foi a sua opinião honesta, e o seu pesar certamente ressoou em mim”. Deborah Rose-Milavec, diretora do FutureChurch, “chorou quando James Carroll revelou sua dolorosa decisão de deixar de ir à missa. Essa dor está próxima de todo católico” (sem nenhuma surpresa, os defensores católicos mais contundentes do artigo de Carroll parecem ter sido as mulheres, que têm menos a perder se a Igreja levar as proposições de Carroll a sério).
Como Oakes, Scalia e Rose-Milavec deixam claro, o texto de Carroll capta o zeigeist dos fiéis cuja fé tem sido abalada pelos contínuos fracassos da liderança católica. Padres e bispos, por outro lado, parecem confusos sobre por que os católicos leigos continuam perturbados com a crise dos abusos sexuais, o clericalismo, a exclusão das mulheres da Igreja e os ensinamentos há muito tempo equivocados da hierarquia sobre a sexualidade e a consciência humanas.
Em vez de levarem a sério as perguntas e os dons dos leigos para o discernimento espiritual, esses líderes e seus defensores ousam sugerir que são os leigos que estão confusos. Certamente, se apenas eles soubessem dos fatos sobre a crise dos abusos sexuais, sobre um sacerdócio somente para homens, a autoridade cristã, a contracepção e a pecaminosidade do amor entre pessoas do mesmo sexo, eles ficariam do lado da Igreja e da sua liderança totalmente masculina e celibatária. Certamente, afirmam esses assim designados persona-Christi, os leigos – a Esposa de Cristo – estão sendo ilógicos (a maioria das mulheres, como confirmam os estereótipos sexistas, geralmente o são).
Quaisquer que sejam os argumentos que as lideranças da Igreja usem para se defender nessa situação, eles aumentam a brecha entre o laicato ferido e a hierarquia segura de si mesma. Uma lista de fatos para refutar Carroll não será suficiente para trazer de volta aqueles que estão abandonando a Igreja. A liderança nessa situação requer uma escuta e uma empatia profundas.
O sofrimento evidente no artigo autobiográfico de Carroll apresenta um problema pastoral que requer uma abordagem pastoral. Por que Carroll quer sair da Igreja? Quem ou o que o feriu? Suas experiências não são irracionais. A sua história cheia de emoção também não é irrelevante para o que ele está escrevendo. Uma orientação pastoral nos chama a ver além das palavras de Carroll, indo ao encontro da pessoa que está profundamente ferida e clama por socorro.
Em vez de aplicar um bálsamo de cura, as lideranças da Igreja derramam sal nas feridas do corpo de Cristo quando tentam explicar a “realidade” para aqueles que a experimentam de forma diferente. Como Igreja, devemos dar testemunho das fontes mais profundas de dor que subjazem aos lamentos do corpo sofredor de Cristo. Seria melhor se cuidássemos desses sentimentos de alienação em vez de defendermos as instituições e as formas de liderança que os causaram.
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O corpo ferido de Cristo: uma resposta aos críticos de James Carroll - Instituto Humanitas Unisinos - IHU