26 Agosto 2018
O papa Francisco não evitou falar sobre o escândalo que ainda pesa sobre os ombros da Igreja irlandesa em seu primeiro discurso de sua difícil jornada na Irlanda, diante do taoiseach (primeiro-ministro da Irlanda), dos membros do governo e do corpo diplomático.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 25-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
“O fracasso das autoridades eclesiásticas - bispos, superiores religiosos, padres e outros - em lidar adequadamente com esses crimes repugnantes causou uma justa indignação e continua sendo uma fonte de dor e vergonha para a comunidade católica. Eu mesmo compartilho esses sentimentos”.
Francisco falava no Castelo de Dublin, construído na margem sul do Liffey, que era o centro do poder inglês na Irlanda e foi construído em 1204 pelo rei João da Inglaterra. A maior parte do castelo foi destruída pelo fogo em 1684, e hoje apenas a Torre dos Registros permanece das quatro torres originais. O papa chegou após visitar o presidente da República da Irlanda, Michael D. Higgins e plantar uma árvore no jardim da residência, como João Paulo II havia feito em 1979. Entre as autoridades presentes no castelo havia também uma delegação da Irlanda do Norte, a qual Francisco fez menção em suas saudações iniciais.
Em seu discurso, taoiseach Leo Varadkar se referiu aos abusos. “Às vezes, no passado, falhamos. Há 'aspectos sombrios' da história da Igreja Católica, como um dos nossos bispos disse recentemente. Pensamos nas palavras do Salmo que nos diz que 'as crianças são uma herança do Senhor' e nos lembramos da maneira como os fracassos da Igreja e do Estado e da sociedade em geral criaram uma herança amarga e quebrantada para muitos, deixando um legado de dor e sofrimento".
"É uma história de tristeza e vergonha", acrescentou o primeiro-ministro irlandês: "Em lugar da caridade cristã, do perdão e da compaixão, muitas vezes houve julgamento, severidade e crueldade, em particular, para com as mulheres e crianças e aqueles que estão à margem. As Lavanderias de Madalena, lares de mães e bebês, escolas industriais, adoções ilegais e abuso infantil clerical são manchas em nosso estado, em nossa sociedade e também na Igreja Católica. As feridas ainda estão abertas e há muito a ser feito para trazer justiça, verdade e cura para as vítimas e sobreviventes”.
"Santo Padre", concluiu o primeiro-ministro: "Peço que use seu cargo e influência para garantir que isso seja feito aqui na Irlanda e em todo o mundo".
Então Francisco tomou a palavra e abordou a questão do abuso com referências à história e aos escândalos irlandeses, “Estou muito consciente das circunstâncias de nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis", disse o papa, "penso especialmente naquelas mulheres que no passado suportaram situações particularmente difíceis. No que diz respeito aos mais vulneráveis, não posso deixar de reconhecer o grave escândalo causado na Irlanda pelo abuso de jovens por parte de membros da Igreja responsáveis pela sua proteção e educação. O fracasso das autoridades eclesiásticas - bispos, superiores religiosos, padres e outros - em lidar adequadamente com esses crimes repugnantes causou uma justa indignação e continua sendo uma fonte de dor e vergonha para a comunidade católica. Eu mesmo compartilho esses sentimentos”.
“Meu predecessor, o papa Bento XVI", continua Francisco, "não poupou palavras ao reconhecer a gravidade da situação e ao exigir que medidas 'verdadeiramente evangélicas, justas e eficazes' fossem tomadas em resposta a essa traição de confiança. Sua intervenção franca e decisiva continua a servir de incentivo para os esforços da liderança da Igreja, tanto para remediar os erros do passado como para adotar normas rigorosas destinadas a garantir que elas não voltem a acontecer. Mais recentemente, em uma carta ao povo de Deus, reafirmei meu compromisso, na verdade um compromisso maior, de erradicar esse flagelo na Igreja; a todo custo: moral e de dor".
“Cada criança", continua Bergoglio, "é de fato um precioso presente de Deus, para ser valorizado, encorajado a desenvolver seus dons e guiado à maturidade espiritual e ao florescimento humano. A Igreja na Irlanda, passada e presente, desempenhou um papel na promoção do bem-estar de crianças que não pode ser obscurecido. É minha esperança que a gravidade dos escândalos de abuso, que lançaram luz sobre as falhas de muitos, sirvam para enfatizar a importância da proteção de menores e adultos vulneráveis por parte da sociedade como um todo. A este respeito, todos nós estamos cientes do quão urgente é proporcionar aos nossos jovens orientação sábia e valores sólidos em sua jornada até a maturidade”.
Na primeira parte do seu discurso, o papa falou do Encontro das Famílias, uma ocasião também “para testemunhar o papel único desempenhado pela família na educação de seus membros e no desenvolvimento de um tecido social sólido e próspero”. “Não é preciso ser um profeta para perceber as dificuldades enfrentadas por nossas famílias na sociedade atual em rápida evolução ou para nos incomodar com os efeitos que a ruptura no casamento e na vida familiar necessariamente acarretará para o futuro de nossas comunidades em todos os níveis. Famílias são a cola da sociedade; o seu bem-estar não pode ser tido como garantido, mas deve ser promovido e protegido por todos os meios apropriados”.
“Foi na família que cada um de nós deu seus primeiros passos na vida. Lá aprendemos a viver juntos em harmonia, a dominar nossos instintos egoístas e a reconciliar nossas diferenças e, acima de tudo, a discernir e a buscar os valores que dão sentido e realização autênticos às nossas vidas. Se falamos de todo o nosso mundo como uma única família, é porque acertadamente reconhecemos os laços de nossa humanidade comum e sentimos nosso chamado à unidade e à solidariedade, especialmente com os mais fracos de nossos irmãos e irmãs”.
No entanto, “muitas vezes", observa o pontífice, "nos sentimos impotentes perante os persistentes males do ódio racial e étnico, conflitos e violência intratáveis, desprezo pela dignidade humana e pelos direitos humanos fundamentais, e a crescente divisão entre ricos e pobres. Quanto precisamos recuperar, em todos os momentos da vida política e social, o sentimento de ser uma verdadeira família de povos! E nunca perder a esperança ou a coragem de perseverar no imperativo moral de ser pacificadores, reconciliadores e guardiões uns dos outros”.
Aqui na Irlanda, o desafio à reconciliação “tem uma ressonância especial, à luz do longo conflito que separou irmãos e irmãs de uma única família. Vinte anos atrás, a comunidade internacional seguiu atentamente os eventos na Irlanda do Norte que levaram à assinatura do Acordo da Sexta-feira Santa”.
Francisco, portanto, recorda que “a verdadeira paz é, fundamentalmente, um dom de Deus”, e observa que “sem esse fundamento espiritual, nosso ideal de uma família global de nações corre o risco de não ser mais do que outra banalidade vazia”. E sobre o tema da situação atual do país, ele se pergunta: “Podemos dizer que o objetivo de criar prosperidade econômica leva, por si só, a uma ordem social mais justa e igualitária? Ou será que o crescimento de uma “cultura descartável” materialista nos tornou, de fato, cada vez mais indiferentes aos pobres e aos membros mais indefesos de nossa família humana, inclusive os não-nascidos, privados do próprio direito à vida? Talvez os desafios mais preocupantes para as nossas consciências nestes dias sejam a massiva crise de refugiados, que não desaparecerá do nada, e cuja solução exige sabedoria, amplitude de visão e uma preocupação humanitária que vai muito além das decisões políticas de curto prazo”.
Depois de relembrar as relações históricas amistosas entre a Santa Sé e a Irlanda, com “apenas uma nuvem ocasional no horizonte” (referência ao choque de anos passados precisamente por causa do escândalo do abuso), o papa concluiu mencionando os evangelizadores da Irlanda, Palladius e Patrick, juntamente com muitos santos e estudiosos que se tornaram missionários em outras terras, como Columba, Columbanus, Brigid, Gall, Killian, Brendan. “É minha prece que a Irlanda”, concluiu Francisco, “ao ouvir a polifonia da discussão política e social contemporânea, não se esqueça da vibrante melodia da mensagem cristã que a sustentou no passado, e que isso possa continuar assim no futuro”.
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Papa: O fracasso em lidar com os abusos me deixa envergonhado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU