26 Julho 2024
"Boccato de Almeida demonstra que de Freire surge uma contribuição pedagógica da fé que consiste numa interpretação metodológica indutiva, admitindo que a realidade emerge como um valor a ser reconhecida e aprofundada; a criticidade, no horizonte da fé cristã, conduz necessariamente a um empenho na transformação do mundo, e, o aspecto formativo, enquanto a afirmação de que a pessoa deseja aprender e emancipar-se, dentro de uma gradualidade, ou seja, a partir de uma experiência de um lento dinamismo de superação de opressões internas e externas", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em resenha do livro A teologia da consciência: um diálogo pela educação, formação e humanização a partir de uma reflexão freireana, de André Luiz Boccato de Almeida, 24-07-2024.
O livro A teologia da consciência: um diálogo pela educação, formação e humanização a partir de uma reflexão freireana (Pluralidades, 2024, 262 p.), fruto da tese doutoral de André Luiz Boccato de Almeida, busca analisar teologicamente a consciência em diálogo com o pensamento de um autor brasileiro – Paulo Freire (1921-1997) – educador, leigo, e dele destacar a sua contribuição para a reflexão ético teológica no contexto brasileiro. O autor em questão, tratando sobre a consciência enquanto referencial pedagógico pode propiciar alguns indicativos antropológicos e éticos que contribuem para uma teologia cristã da consciência.
A teologia da consciência: um diálogo pela educação, formação e humanização a partir de uma reflexão freireana de André Luiz Boccato de Almeida.
No primeiro capítulo A consciência e os desafios atuais (p. 15-67), apresenta de forma sintética alguns desafios e problemas que se colocam à consciência e à sua formação no contexto contemporâneo: a) o desafio do ethos contemporâneo (p. 16-20), b) da era tecnológica (p. 20-25), c) das neurociências (p. 25-28), d) da especialização nas ciências humanas (p. 28-33), e) da fragmentação do ser humano (p. 33-36), f) do fenômeno do pluralismo antropológico (p. 36-41), g) do fenômeno do pluralismo religioso (p. 41-45). Na sequência, são apresentados alguns fundamentos teológicos necessários para um diálogo sério diante dos desafios, solidificados no Concílio Vaticano II (1962-1965): a) a centralidade da pessoa humana na teologia moral (p. 45-50), b) a centralidade da cristologia na teologia moral (p. 50-54), c) a busca de uma fundamentação interdisciplinar (p. 54-60) e, por fim, alguns indicativos para um aprofundamento da teologia da consciência: a) a consciência e sua formação no contexto atual (p. 60-61), b) a consciência na era tecnológica e digital (p. 61-64), c) a consciência e o desafio da sua formação crítica (p. 65-67). Nestas páginas o autor ressalta que analisar os problemas, como os desafios do ethos contemporâneo – a era tecnológica, o mundo digital, as neurociências, a fragmentação do ser humano e as pluralidades, em geral, com todas as suas implicações – enquanto realidades a se reconhecer como fundamentais à consciência. Longe de serem realidades que se opõem ao ser humano, possibilitam desenvolver reflexões ulteriores sobre o dinamismo crítico do próprio ser humano. Os desafios apresentados, embora abrangentes e complexos, apresentam à consciência como uma realidade ainda em construção e busca de aceitação.
Em continuidade, com o anterior, o segundo capítulo A consciência na tradição bíblica e teológica (p. 69-111), busca destacar as principais perspectivas teológicas acerca da consciência. O autor, tendo apresentado as principais transformações no contexto contemporâneo e os desafios provenientes do ethos pensado e vivido, entende ser fundamental revisitar a tradição cristã, a reflexão teológica e dela delimitar as perspectivas a se aprofundar. O ponto de partida é a perspectiva bíblica enfatizando os principais destaques no Antigo Testamento (p. 70-73), nos Evangelhos (p. 73-78) e na teologia de São Paulo (p. 78-82). Na sequência são apresentados as clássicas perspectivas de Santo Agostinho (p. 83-87) e as distinções da consciência em Santo Tomás (p. 87-91), passando por duas importantes na modernidade, a de Santo Afonso Maria de Ligório (p. 91-94) e a do Cardeal John Henry Newman (p. 95-99). Focaliza-se também a perspectiva apresentada pelo Concílio Vaticano II como paradigma central para onde confluem as clássicas abordagens, mas que também alarga os horizontes hermenêuticos (p. 99-111). Em meio às acentuações bíblicas, teológicas e tendo um momento decisivo no Concílio Vaticano II, o autor salienta como a consciência foi se tornando ao longo do percurso histórico uma realidade central e determinante na comunidade cristã. Pela análise dos fundamentos bíblicos é possível perceber que há uma riqueza de dados com uma variabilidade interpretativa muito atual. Dos fundamentos teológicos, refletidos na tradição e escolhidos pelas suas matizes diferenciadas, destaca-se que as controvérsias e problemas históricos apenas explicitam o enfoque de criticidade já presentes nas diversas perspectivas dos teólogos.
No terceiro capítulo A consciência na perspectiva do educador Paulo Freire: uma proposta brasileira (p. 113-166) visa apresentar de forma panorâmica e analítica o pensamento de Paulo Freire acerca da consciência crítica até a concretização em suas principais obras e ideias geradoras – apresentando seguinte percurso: a) destaques biográficos principais (p. 113-119); b) apresentação analítica das suas principais obras sobre a conscientização (p. 119-138); c) as linhas gerais do seu método pedagógico libertário (p. 138-145); d) a sua concepção de consciência crítica e conscientização (p. 145-158); e) as suas bases antropológicas essenciais (p. 158-166). Destacando como relevante e pertinente o diálogo crítico entre a concepção freireana de consciência com a reflexão teológica, o autor mostra qual a contribuição que emerge de Paulo Freire. Ele situa a pessoa, isto é, a sua consciência, dentro da perspectiva de que somos condicionados, mas não determinados. Esta percepção propicia pensar num progressivo processo de formação da consciência que vai de uma condição de intransitividade, passando por uma fase de transitividade ingênua ou mágica e até crítica, até chegar à conscientização. Da sua percepção sobre a consciência, o autor destaca que emerge da sua concepção de ser humano: ser mais, inacabado e ser esperançoso. Este tripé exprime a verdade da pessoa que é chamada a um amadurecimento progressivo dentro da sua capacidade de crítica sociopolítica. Isso porque, para Paulo Freire a pessoa é capaz de se emancipar quando ultrapassa a mentalidade “bancária” para uma “problematizadora”. A sua perspectiva de criticidade como propriedade da consciência é uma reflexão original no contexto pedagógico brasileiro em grande parte sujeito a uma estrutura de opressão política como uma ideologia justificada pela passividade. Freire surge como uma voz que conclama a lento processo de conscientização mediante o despertar da pessoa para sua humanização.
No quarto capítulo A teologia da consciência crítica abordada por teólogos brasileiros (p. 167-197), objetiva-se destacar as implicações da consciência crítica ou conscientização em Paulo Freire na reflexão teológico moral como uma contribuição no contexto brasileiro. O autor busca apresenta-lo destacando a sua inserção da sua visão sobre a consciência crítica na teologia moral brasileira a partir de cinco teólogos: 1) Pe. João Batista Libânio (p. 167-175); 2) Frei Antônio Moser e Frei Bernardino Leers (p. 175-183); 3) Frei Nilo Agostini (p. 183-187); 4) Pe. José Roque Junges; 5) Frei Carlos- Josaphat Pinto de Oliveira (p. 192-197). As cinco releituras feitas do pensamento freireano sobre a consciência podem ser consideradas como uma síntese da rica tradição teológica sobre a consciência que percorre a perspectiva bíblica e atravessa as interpretações de Agostinho, Santo Tomás, Afonso de Ligório e Newman, tem no Concílio Vaticano II o ponto de convergência. Em suma, nestas páginas o autor salientando a inserção e a aplicação do pensamento de Paulo Freire no contexto teológico e reflexivo – destacando que esses teólogos assimilaram a suas ideias e assim apresentam impostações paralelas ou complementares. Estes autores desenvolvem um prolongamento dinâmico a concepção de consciência que a tradição aos poucos foi assimilando como essencial. Longe de negar as contribuições aprofundadas pela grande tradição – da bíblica à do Concílio Vaticano II – os teólogos o utilizaram como uma via de acesso ao contexto que se direcionavam, dando as suas perspectivas.
Por fim, no quinto capítulo A teologia da consciência e seus desafios no contexto brasileiro (p. 199-231), o autor destaca em quatro momentos as originais contribuições da interpretação freireana sobre a consciência no contexto brasileiro – observando que uma reflexão da consciência tendo o seu embasamento teológico na revelação além de possuir uma implicação concreta no agir cristão que está em constante tensão diante do contexto, também o faz buscar uma formação para decidir criticamente à luz da tradição eclesial. Na primeira parte são apresentadas as contribuições freireanas à teologia moral (p. 199-202) Na segunda, a perspectiva formativa que emerge da sua interpretação sobre a consciência (p. 203-210). Na terceira, a acolhida da criticidade própria da fé (p. 210-223), e, no quarto a relação entre o enfoque freireano no discernimento da consciência crítica do papa Francisco (p. 224-231).
Neste capítulo, ao apresentar algumas ideias que emergem da perspectiva crítica freireana da consciência na relação com a reflexão ético-teológica o autor pontua que o contributo à teologia, do qual aparece a visão positiva e integral do ser humano, o que sintoniza coma visão integral do cristianismo, acompanhada do teor crítico, também uma dimensão fundamental da teologia, que remete à esperança como condição da vida social, sendo também a virtude teologal que nos move a Deus. Por isso, Boccato de Almeida demonstra que de Freire surge uma contribuição pedagógica da fé que consiste numa interpretação metodológica indutiva, admitindo que a realidade emerge como um valor a ser reconhecida e aprofundada; a criticidade, no horizonte da fé cristã, conduz necessariamente a um empenho na transformação do mundo, e, o aspecto formativo, enquanto a afirmação de que a pessoa deseja aprender e emancipar-se, dentro de uma gradualidade, ou seja, a partir de uma experiência de um lento dinamismo de superação de opressões internas e externas. Frente a isso, a pessoa crítica, diante dos desafios do ethos, é capaz de vislumbrar a passagem de sua condição de passividade para a de protagonista. Este dinamismo é gerador de uma fé adulta, pois afetivamente está envolvida na comunidade e nesta busca ser mais, além de propiciar uma mudança no social.
Um contributo reflexivo e crítico no campo da teologia moral sobre a consciência... A consciência humana é um tema complexo que suscita debates dos mais variados, tanto no senso comum quanto no ambiente acadêmico. Trata-se de uma discussão que engloba desde elementos físicos, químicos, psicológicos e teológicos. Tendo-se em conta que no campo da teologia católica, pouco espaço foi dado ao tema da consciência - a investigação reflexiva presente neste livro é a ética teológica no contexto da análise da consciência crítica em Paulo Freire e a sua contribuição para a teologia moral no contexto brasileiro.
Trata-se de uma obra referencial de cunho teórico-conceitual, bibliográfica e interdisciplinar em que se busca reconstruir, integrar e dialogar na perspectiva cristã da consciência com a criticidade de Paulo Freire, diante do desafio da conjuntura ética contemporânea. Com as palavras de Dr. Rogério Gomes ao prefaciar este escrito (p. 7-9), o leitor perceberá que emerge a tessitura dialógica coma finalidade de colher elementos que oferecem substrato à reflexão moral. Verifica-se que o autor se utiliza das bases antropológicas, cristológicas e de alguns pensadores cristãos para compreender a consciência do ponto de vista da tradição bíblico-teológica, incluindo as preciosas contribuições do Vaticano II que são enriquecidas com a conceituação freireana acerca da consciência: consciência intransitiva, transitiva ingênua ou mágica, consciência crítica e conscientização.
Com a densidade que é própria do autor o livro é de leitura agradável e um convite a quem deseja aprofundar-se nesta temática tendo-se em conta que o magistério do Papa Francisco há uma preocupação com a formação da consciência e a passagem de uma visão acomodada para um enfoque crítico: “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.”
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Teologia da consciência. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU