Teologia moral dialogante: herança renovadora de Bernardino Leers. Artigo de Eliseu Wisniewski

Frei Bernardino Leers. (Foto: Reprodução | Casebro Frei Oton)

29 Julho 2023

"Frei Bernardino pode ser descrito como um homem atento ao agir concreto do povo cristão, elaborou ao longo dos anos uma reflexão exigente, crítica, aberta aos grandes temas da moral cristã e em diálogo constante com a situação cambiante do tempo em que viveu. Isso se expressa em suas publicações, marcadas por um agudo sendo de observação, uma profunda liberdade de expressão e um exigente olhar crítico", escreve Eliseu Wisniewski em artigo sobre o livro "Teologia moral dialogante: herança renovadora de Bernardino Leers", de Oton da Silva Araújo Júnior.

Eliseu é mestre em Teologia (PUCPR, 2013), presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul e professor na Faculdade Vicentina, em Curitiba/PR.

Eis o artigo.

Após séculos da chamada “moral casuística”, com ênfase na culpa e no pecado, em um distanciamento entre a Igreja e a sociedade civil, coube ao Vaticano II (1962-1965) reconciliar essas relações e insistir na volta às fontes da vida cristã. O retorno faz redescobrir o rosto bondoso de Deus, revelado na pessoa de Jesus; os pressupostos eternos passaram a ser entendidos no tempo e no espaço. A vida cristã passava de uma dimensão meramente individual para assumir uma participação comunitária, do compromisso social, em prol da vida de todos.

Neste horizonte situa-se o empenho de Frei Bernardino Leers (1919-2011). A renovação eclesial a partir do Vaticano II despertou um interesse imediato em Frei Bernardino que tratou de colocá-la logo em prática e, por isso, deixou sua marca e constitui-se uma referência ímpar para a Teologia Moral. Frei Bernardino veio da Holanda para o Brasil em 1952. Em seu itinerário com o povo, abraçou a missão de colaborar na formação e no fortalecimento de uma consciência social: educar evangelizando. Movido pela certeza de que o grande motor da história humana é o sonho do desenvolvimento integral, entendeu que a conscientização cristã poderia significar o desenvolvimento maduro do papel do leigo e do povo em geral, uma melhor formação para sua responsabilidade no mundo e autonomia em ideias e atitudes. Leers morreu em 2011, aos 92 anos.

Fazer conhecer a contribuição de Frei Bernardino Leers é a tarefa da obra: Teologia Moral dialogante: herança renovadora de Bernardino Leers (Santuário, 2023, 184 p.), escrita pelo doutor em Teologia Moral – Oton da Silva Araújo Júnior. A base fundamental desta obra foi extraída de sua tese doutoral, defendida em Roma em 2012. Frei Oton antes de passar propriamente à contribuição do Frei Bernardino, circunda o assunto com dois temas introdutórios: uma rápida apresentação do que seja ética e moral, e sua vivência na história da Igreja (p. 6-8); e a renovação da teologia Moral, a partir do Vaticano II (p. 8-12). Com esses dois temas salienta o autor –, poderemos compreender melhor o alcance da obra do teólogo holandês.

Capa do livro de Frei Bernardino Leers. (Foto: Divulgação)

Na sequência os dois primeiros capítulos visam situar o ambiente em que se deu a contribuição de Frei Bernardino para em seguida aterrissar propriamente no itinerário de Leers. Mais especificamente em A renovação da Teologia Moral no Brasil (p. 13-29), o autor observa que no tocante à Teologia Moral, embora não lhe tenha dedicado nenhum documento específico, as renovações se deram baseados nas proposições de Gaudium et Spes, sobretudo ao resgatar o valor da consciência moral e no decreto Optatam Totius n. 16. Frisando, ainda que o método de fazer teologia mudou -, Frei Oton pontua as características da Moral renovada (p. 16-23); apresenta uma crítica à moral casuística (p. 23-24), os limites da Moral Renovada (p. 25-26) e os desafios aos teólogos da moral (p. 26-29).

No capítulo seguinte Elementos do ethos popular mineiro (p. 31-43), o autor identifica alguns elementos importantes sobre o modo de viver (ethos) do interior mineiro, em sua raiz mais tradicional-, elencando algumas características importantes para entender o chão rural em que pisou Frei Bernardino e que o levaram a rever ou confirmar suas teorias e a se engajar em favor daquela população.

Após uma rápida leitura sobre alguns aspectos históricos da moral cristã e as contribuições do Concílio Vaticano II a seu respeito e o ethos do interior de Minas Gerais, o terceiro capítulo Frei Bernardino: um teólogo entre os simples (p. 45-67) traz informações sobre a sua pessoa (p. 45-48) e sobre a sua atuação no Brasil: a pastoral rural (p. 50-52), a atuação na saúde (p. 52-54), a preocupação democrática (p. 54-55), atuação na educação (p. 55-56). Frei Oton observa que na atuação de Frei Bernardino junto à zona rural merecem destaque três veículos por ele utilizados para manter contato com as pessoas: as cartas às professoras rurais (p. 56-57); os boletins rurais publicados no jornal “A Semana” (p. 57-58) e os programas na rádio do CODAR (p. 58-61). Os tópicos seguintes tratam de sua atuação como professor de Teologia Moral (p. 61-62), sua pedagogia/metodologia (p. 62-65) e o diálogo entre as diversas ciências (p. 66).

No quarto capítulo Uma evangelização em chave dialogal (p. 69-82), o autor ressalta que todas as iniciativas de Frei Bernardino junto à zona rural devem ser consideradas à luz de uma espiritualidade encarnada (p. 69-75), sendo, por isso, possível constatar na obra do teólogo holandês quatro desafios da evangelização rural: a espiritualização da mensagem evangélica (p. 75-76), o monopólio da palavra (p. 77-79), o assistencialismo (p. 79-80) e a apatia pelo modelo popular (p. 80-82).

Quanto à produção teológico-moral de Frei Bernardino (p. 83-117), assunto abordado no quinto capítulo, Frei Oton salienta que o fato de Frei Bernardino ter tido contato com o mundo acadêmico e o povo simples do interior deu-lhe uma visão bastante peculiar em seu pensamento teológico. Os dois ambientes para o teólogo não eram contraditório, mas se complementavam e permitiam à teologia o acesso concreto aos homens e as mulheres. Estes, por sua vez, recebiam a riqueza cristã em sua doutrina de conversão, compromisso, amor e misericórdia. Assim sendo, os escritos de frei Bernardino podem ser divididos em três grandes momentos. O primeiro vai da segunda metade da década de 1950 até o final dos anos 60 – ligado à pastoral rural; o segundo, dos anos 70 aos anos 90 - escritos de diversas áreas da Moral; o terceiro, daí em diante, com temas mais específicos, como a homossexualidade (p. 85-86). Perpassando de modo transversal em várias fases, Frei Bertardino sempre se dedicou a escrever sobre a nova maneira de fazer Teologia Moral.

Nestes escritos, criticou o rigorismo moral e apresentou o desafio da ética cristã, vivido no ambiente concreto das pessoas. Podem ser lidos nesta perspectiva: Novos Rumos da Moral (1970); Francisco de Assis e a Moral Cristã (1995); Teologia Moral: Impasses e Alternativas (1987, em parceria com Antônio Moser); O Ministério da Reconciliação: uma ética profissional para confessores (1988, reeditado em 2008); A Moral do Burro (2003); Rigorismo Moral e Humor Popular (2007). E vários artigos a respeito. As obras do teólogo holandês são divididas em cinco grandes blocos: Ministérios eclesiais, no qual se analisa a reflexão acerca do Magistério eclesiástico em relação à teologia (p. 87-90), e os escritos sobre a Vida Religiosa (p. 90-92); em um segundo bloco são vistas questões relativas à família no mundo moderno e as questões a ela relacionadas, como a pílula anticoncepcional, o aborto e a integração dos homossexuais na Igreja e na sociedade (p. 92-103); em um terceiro enfoque são analisados as preocupações de Frei Bernardino sobre a Bioética (p. 103-107); em um quarto, as questões da Moral Social (p. 107-110); e, por fim, uma reflexão sobre o Sacramento da Penitência (p. 111-117).

Após uma visão no conjunto da produção teológico-moral de Frei Bernardino e ter se fixado em sua relação com o universo rural de Minas Gerais, no sexto capítulo Avaliação crítica da obra de Frei Bernardino Leers (p. 119-149), o autor observa com mais criticidade a contribuição do teólogo holandês para a teologia brasileira, sobretudo na sua primeira fase, em que seus trabalhos estiveram diretamente ligados à zona rural. Frei Oton ressalta que embora a partir dos anos 70 sua atuação junto á população rural tenha sido de menor intensidade, as relações estabelecidas durante quase duas décadas acompanharam Frei Bernardino ao longo de toda a obra, o que prova que não foi uma paixão passageira, mas que lhe deixaram marcas profundas, capazes de ressignificar uma nova maneira de entender a Teologia Moral no Brasil.

Neste capítulo são apresentadas: a) as características gerais da obra de Frei Bernardino Leers (p. 119-121); b) leituras possíveis da obra de frei Bernardino Leers (p. 132-138); c) outras características da teologia de Frei Bernardino Leers: o teólogo como mediador (p. 138-142), o anúncio da misericórdia divina (p. 142-144), o respeito pela cultura popular (p. 144-146), d) o significado de Frei Bernardino para a Teologia Moral no Brasil (p. 146-149). Neste último quesito, o autor observa que de modo geral, apesar de ter afrontado temas bastante diversos, o modo como Frei Bernardino o faz mostra bastante coerência de pensamento. Mesmo que os escritos das décadas de 50 e 60 estejam mais voltados à pastoral rural e os das décadas seguintes mais abertos a outras questões morais, não é fácil perceber que o frade tenha avançado ou mudado de opinião sobre determinado tema. Por vezes, não é possível nem mesmo predizer e que época um determinado artigo foi escrito, visto que a unidade de seu pensamento não se condiciona pelo passar dos anos. Não que tenha um pensamento fixo ou rígido, mas as linhas gerais de seus posicionamentos se mantiveram.

A contribuição de Frei Bernardino para a Teologia Moral do Brasil é de grande valor e, frente a isso, nas considerações finais (p. 151-156), o autor frisa que não simplesmente por ter iniciado sua produção teológico-moral, logo após o Concílio vaticano II, que leva a concluir que Frei Bernardino Leers tenha sido um dos grandes responsáveis pela renovação da Moral do Brasil. Toda a sua maneira de se posicionar como moralista e como pastor recebeu um colorido próprio, o que influenciou a muitos que vieram depois dele.

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Renovador da Teologia Moral no Brasil... Bernardino foi pioneiro na reflexão teológica e pastoral referente à formação de comunidades cristãs no meio do povo, com maduro engajamento dos próprios leigos. Um dos aspectos mais característicos da produção-moral do teólogo holandês foi ter entranhado na moral popular, o que o vacinou de todo o risco de abstração ou de se perder em discussões fora do contexto concreto da realidade vivida pelo povo. A brilhante inteligência de Bernardino não se perde em abstrações de gabinete, mas está a serviço da pastoral. Para Leers a moral está ligada à pastoral. É o autor que mais refletiu sobre o sentir moral do povo podendo ser apontado como o responsável pela introdução dessa perspectiva no cenário teológico-moral do Brasil.

Em linhas gerais -, Frei Bernardino pode ser descrito como um homem atento ao agir concreto do povo cristão, elaborou ao longo dos anos uma reflexão exigente, crítica, aberta aos grandes temas da moral cristã e em diálogo constante com a situação cambiante do tempo em que viveu. Isso se expressa em suas publicações, marcadas por um agudo sendo de observação, uma profunda liberdade de expressão e um exigente olhar crítico.

Diante do exposto esta obra que apresenta a herança renovadora de Bernardino Leers merece ser lida por quem não o conheceu ou não sabe de sua importância para a teologia do Brasil; por quem o conheceu e teve contato com seus escritos, como oportunidade de revisitar suas ideias e também por estudantes de teologia, uma pequena introdução à renovação da Teologia Moral no Brasil, com os novos ares trazidos pelo Concílio Vaticano II, mas que Frei Bernardino já intuía uma década antes.

Referência

ARAÚJO JÚNIOR, Oton da Silva. Teologia moral dialogante: herança renovadora de Bernardino Leers. São Paulo: Santuário, 2023. 184 páginas.

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