“Ainda Estou Aqui” e a representação da ditadura militar no cinema brasileiro. Entrevista especial com Fernando Seliprandy

Para o historiador, o novo filme de Walter Salles sobre a família Paiva se tornou um fenômeno social

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: André Cardoso | 17 Janeiro 2025

Fenômeno de público e aclamado pela crítica, o filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, retrata o drama e o luto da família Paiva – especialmente de Eunice Paiva – após o desaparecimento/assassinato de Rubens Paiva, ex-deputado federal, durante a ditadura militar iniciada em 1964. Em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o historiador Fernando Seliprandy ressalta que, em um mundo onde a extrema direita avança com força e truculência, "não é pouca coisa a realização de um filme empático com as vítimas da violência de Estado".

O pesquisador, especialista nas relações entre história, memória e cinema nas representações das ditaduras do Brasil e do Cone Sul, pontua que a escolha de Ainda Estou Aqui em focar sua narrativa no drama familiar gera uma despolitização da violência ditatorial e torna a obra mais palatável, mas que é justamente esta a proposta do filme e é por conta disto que ele virou um fenômeno social. “Essa projeção da obra como fenômeno social não ocorre ‘apesar’ da dramatização (em detrimento da politização), mas justamente por causa dela. O apelo à dramatização em um produto bem-acabado, com uma reconstituição de época impecável, com uma trilha sonora envolvente, todos esses são traços estilísticos que favorecem a transformação do filme não só em sucesso comercial, mas também em fenômeno social”, afirma.

Fernando traça um paralelo entre o filme “Pra frente, Brasil, de Roberto Farias, lançado em 1982 no processo de transição democrática, e Ainda Estou Aqui. “'Pra frente, Brasil' colocava no centro da narrativa uma vítima inocente da violência ditatorial. Essa era então uma forma de tornar a vítima mais palatável e mais inaceitável a violência cometida contra ela [...] Naquele momento de conciliação democrática, atores políticos e sociais colocavam diferenças de lado em nome de uma grande 'frente' democrática que pressionasse pelo fim do regime. [...] Essa conciliação demandou uma série de concessões, sendo a Lei da Anistia de 1979 a mais marcante delas, vigente até hoje. Ainda estou aqui também coloca no centro da narrativa uma vítima inocente da ditadura, em chave conciliatória, após um período de truculência política e mesmo de tentativa da nova extrema direita de dar um golpe para chamar de seu, em 08-01-2023”.

Para além do filme de Walter Salles, o cinema e a arte brasileira têm uma relação paradoxal com a ditadura militar. Segundo o entrevistado, mesmo após o golpe de 1964, a cultura brasileira seguiu florescendo nos anos 1960, inclusive com a consolidação de cineastas do Cinema Novo. “Nesses primeiros anos após o golpe, o florescimento do cinema e da cultura devem ser vistos também à luz dessa violência contra o setor cultural, uma violência que, mesmo desarticulada, não tinha nada de branda”, diz.

Fernando Seliprandy | Foto: Arquivo Pessoal

Fernando Seliprandy é professor do Departamento de História (Dehis) e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisa o Regime Militar Brasileiro e sua memória a partir de fontes audiovisuais. Autor dos livros A luta armada no cinema: ficção, documentário, memória (Intermeios, 2015) e Memória intergeracional: ditaduras, documentário, subjetividade (Edições A Quadro, no prelo), entre outros capítulos e artigos em publicações nacionais e internacionais. Pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), doutorado e mestrado em História Social pela USP.

Confira a entrevista.

IHU – O golpe militar de 1964 foi efetuado em um momento histórico no qual o cinema brasileiro, especialmente o Cinema Novo, estava ascendendo e criando uma identidade estética nacional. Quais foram os primeiros impactos do golpe neste movimento e quais foram as primeiras representações do regime militar?

Fernando Seliprandy – Em um primeiro olhar, os impactos do golpe de 1964 sobre o cinema e a cultura em geral parecem nos levar a um paradoxo. Afinal, mesmo após o golpe, a cultura brasileira continuou florescendo nos anos 1960, com obras até hoje consideradas marcos da cultura engajada. Um texto de época de Roberto Schwarz, escrito entre 1969 e 1970, fazia o seguinte diagnóstico: “Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país” [1]. Esse ponto deve ser revisto com cautela hoje em dia. Primeiro, porque há uma narrativa de extrema direita que poderia vir a se apropriar de má-fé dessa constatação para alimentar a fantasia paranoica da “guerra cultural”. Segundo, porque, entre setores mais liberais, esse argumento poderia ser mobilizado em função do nefasto trocadilho da “ditabranda”.

O que a historiografia vem demonstrando nos últimos anos é que a relação entre ditadura e cultura sempre foi complexa, indo além da simples proibição, incluindo fomento e censura seletiva. A própria censura levou um tempo para se estruturar de maneira mais orgânica naquele contexto, tendo havido um período inicial mais desorganizado de abertura de Inquéritos Policiais Militares – IPMs em algum grau motivados pelo voluntarismo anticomunista de agentes do regime. Já em 1965, o historiador Nelson Werneck Sodré escrevia um artigo intitulado “O terrorismo cultural”, no qual denunciava abertamente uma série de violências cometidas contra o setor da cultura [2]. Nesses primeiros anos após o golpe, o florescimento do cinema e da cultura devem ser vistos também à luz dessa violência contra o setor cultural, uma violência que, mesmo desarticulada, não tinha nada de branda.

IHU – Filmes como “O Desafio”, de Paulo César Saraceni, e “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, foram feitos antes do AI-5. Como o AI-5 mudou a forma de fazer cinema destes artistas mais “políticos” e quais foram os principais filmes censurados?

Fernando Seliprandy – Após o AI-5, a censura se sistematizou melhor, tendo superado aquela primeira fase desarticulada que acabei de mencionar. Em seu livro Coração civil, o historiador Marcos Napolitano descreve essa passagem, destacando a nova legislação e a nova estrutura burocrática da censura estatal [3]. Em poucas palavras, é possível dizer que a censura se profissionalizou no Brasil a partir de 1968. Porém, novamente, não podemos cair em uma visão simplista desse processo. A proibição não se dava em bloco, ela variava conforme a forma artística, oscilando entre critérios políticos e morais. Além disso, a censura era seletiva. Renato Ortiz tem uma formulação interessante para compreendermos essa seletividade: “São censuradas as peças teatrais, os filmes, os livros, mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato censor atinge a especificidade da obra, mas não a generalidade da sua produção” [4]. Isso explica por que, mesmo com a censura sistematizada, os anos 1970 foram um momento de estruturação do setor cultural no Brasil, incluindo o cinema.

A censura era a outra ponta da política cultural do regime, sua face restritiva que atingiu tantos artistas e mutilou tantas obras. Mas havia também a faceta do fomento, do estímulo (nem sempre exitoso) ao estabelecimento de uma indústria cultural nacional, na esteira da modernização conservadora e autoritária do período. Para o cinema, a principal medida nesse sentido foi o fortalecimento da Embrafilme. Mais uma vez, é preciso entender o período autoritário em suas complexas relações com o cinema e a cultura.

IHU – Muitos destes cineastas do Cinema Novo ou foram para o exílio filmar fora do Brasil ou ficaram aqui e se adaptaram às regras da Embrafilme e da censura, o que gerava um paradoxo, pois muitos filmes eram financiados pelo governo militar. Qual foi o papel da Embrafilme nesta época? E como foi a produção destes cineastas que acabaram se exilando?

Fernando Seliprandy – O paradoxo mencionado na pergunta tem tudo a ver com a dupla faceta da relação entre ditadura e cultura: uma faceta repressiva, outra faceta de fomento. O caso dos cineastas opositores que, nos anos 1970, começaram a produzir filmes financiados pela Embrafilme gerou muitas polêmicas. Jean-Claude Bernardet, na história do cinema brasileiro que publicou em finais da década de 1970, criticava os cineastas cinemanovistas que se abrigavam dentro do que ele chamava de “espaço legal” para produzir filmes engajados [5]. A crítica de Bernardet ia no sentido de acusar uma cooptação desses cineastas pelo Estado ou pelo mercado, o que resultaria na diluição do potencial crítico dos filmes. A historiografia da cultura do período vem se afastando dessas polêmicas de época. Note-se que o texto de Bernardet foi escrito no calor da hora, ainda nos anos 1970, quando aquelas disputas do campo cinematográfico ainda estavam ocorrendo.

Novos estudos têm tentado, mais uma vez, compreender a complexidade dessas relações, sem cair na caça às bruxas de supostos cooptados pelo sistema. O que significava, por exemplo, um cineasta de esquerda produzindo filmes sob os auspícios do Estado autoritário? Ou um dramaturgo comunista escrevendo novelas para a Rede Globo? Apenas dizer que eram “cooptados” não ajuda em nada na compreensão das estratégias culturais em jogo naquele momento.

IHU – A partir desta cisão do Cinema Novo, outros movimentos e cineastas surgem, como o Cinema Marginal e a Boca do Lixo em São Paulo, com uma proposta estética diferente. Como essa nova cena no cinema brasileiro retratava a ditadura e burlava a censura?

Fernando Seliprandy – Sobre essa pergunta, de saída sugiro a leitura do livro fundamental de Ismail Xavier intitulado Alegorias do subdesenvolvimento [6]. Nele, o autor aborda de modo muito rico esses movimentos cinematográficos, identificando os usos da alegoria como modo de abordar as questões políticas da época. Mas quero fazer um desvio aqui na minha resposta. Porque a própria pergunta já é um sintoma de certa tendência a sempre enfatizarmos a cultura de resistência quando falamos desse período histórico. No caso do cinema, o olhar se dirige para o Cinema Novo, para o Cinema Marginal e a Boca do Lixo, justamente porque as obras ligadas a esses movimentos têm propostas estéticas e políticas mais interessantes, fazendo parte da resistência cultural ao regime. Minhas pesquisas atuais têm se encaminhado para o outro espectro político da produção audiovisual: para aqueles produtores cinematográficos alinhados ao regime, que produziam documentários institucionais ou filmes de propaganda exaltando os feitos dos militares, com destaque para a economia.

Não é uma questão de gosto pessoal, obviamente. Minha impressão é que há um ponto cego nos estudos do audiovisual do período, e que é preciso compreender criticamente esse audiovisual conservador alinhado ao regime. Eu venho desenvolvendo a hipótese de que se estruturou naquele momento um circuito audiovisual implicado na sustentação simbólica do regime. Porque existia todo um audiovisual produzido por produtoras privadas que tinham o Estado autoritário como cliente. É um audiovisual no varejo, feito de documentários institucionais, filmetes de propaganda de um minuto de duração, entre outros formatos curtos. Não estou falando aqui, portanto, das grandes obras artísticas, autorais, do cinema de longa-metragem. Quando se explora os arquivos audiovisuais oficiais com atenção, sem preguiça estética ou política, descobrimos uma série de filmes “menores” que testemunham as vinculações do setor cinematográfico com o regime autoritário. Essa é uma faceta da relação entre civis e militares que venho explorando nas minhas pesquisas atuais: como a ditadura era civil-militar também no que dizia respeito à produção da propaganda oficial para o cinema e para a televisão [7].

IHU – É possível dizer que os filmes feitos a partir de 1990 e da Retomada do Cinema Brasileiro suavizam a parte política das obras que abordam a ditadura militar? Como estes filmes se diferem do cinema feito nos anos 1960, 1970?

Fernando Seliprandy – Essa “suavização” da parte política não é uma exclusividade do cinema dos anos 1990 na representação da ditadura brasileira. Pensemos no exemplo de “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias, produzido lá em 1982, ainda durante o processo de transição democrática. Ali o centro da narrativa é o drama da família de um inocente que é sequestrado e assassinado pela repressão clandestina, a história de alguém que é desaparecido só porque estava no lugar errado na hora errada, com um quê de thriller político. Já analisei esse filme em outros contextos, não é o caso de me estender aqui [8]. Mas o fato é que existe uma tendência, nas representações do cinema comercial de matriz melodramática, de amenizar o aspecto político e representar o período na chave moral de um confronto do Bem contra o Mal. Esse maniqueísmo é o oposto da tentativa de compreendermos o período em sua complexidade, como venho insistindo nesta entrevista.

Nos anos 1990, o exemplo mais eloquente nesse sentido é O que é isso, companheiro?, de 1997, adaptação cinematográfica do livro de Fernando Gabeira dirigida por Bruno Barreto. Nesse segundo filme, desaparece o drama familiar e ganha destaque o gênero thriller político, ainda dentro da grade maniqueísta da matriz melodramática. Os guerrilheiros são representados como jovens inocentes e sonhadores, o torturador tem crises de consciência, o diplomata sequestrado é a encarnação do Bem. Também já analisei este filme em outros contextos [9]. A questão não é só de busca de êxito comercial.

Lembremos que O que é isso, companheiro? foi inclusive indicado ao Oscar. Há nesse movimento de simplificação melodramática uma tendência de circunscrever as culpabilidades aos torturadores e ampliar o alcance da inocência a toda a sociedade durante aqueles anos. São filmes que reforçam uma memória conciliatória do período, que começou a ser construída já durante a redemocratização. O problema é que a conciliação democrática no Brasil está calcada na Lei de Anistia de 1979, que garantiu impunidade a perpetradores de violações dos direitos humanos.

IHU – “Ainda Estou Aqui” é um filme baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva e é dirigido por Walter Salles, duas pessoas que passaram suas vidas jovens na ditadura e trabalharam, já adultos, o tema em suas obras. Essa visão posterior sobre o tema se reflete de quais formas no filme? Há uma busca em tratar o filme por meio do olhar familiar e íntimo e não abordar a política explicitamente?

Fernando Seliprandy – “Ainda Estou Aqui” é um drama familiar. Melhor dizendo, adapta para o cinema o drama de uma família impactada pelo desaparecimento do pai causado pela violência ditatorial. Não podemos julgar um filme por aquilo que ele não se propôs a ser. Seria, no mínimo, incongruente cobrar de Walter Salles um filme panfletário contra a ditadura. É claro que a opção pelo drama familiar tem suas implicações ideológicas: um grau de despolitização da violência ditatorial; a ênfase, mais uma vez, na vítima inocente, muito mais palatável como vítima na comparação com aqueles que pegaram em armas contra o regime; a representação do sistema repressivo como uma descida ao inferno que tem como principal efeito a ruptura da harmonia da casa da família de classe alta à beira-mar. Esse são traços que podem ser apontados quando se mede o filme com uma rigorosa régua política.

Mas há outro lado que deve ser levado em conta: esse drama familiar empático com uma vítima da ditadura vem sensibilizando muitas plateias, e isso fica demonstrado pelo êxito do filme em festivais e prêmios internacionais, para não falar no sucesso de bilheteria. Ora, após toda a truculência que a extrema direita escancarou no Brasil, exaltando abertamente torturadores, não é pouca coisa a realização de um filme empático com as vítimas da violência de Estado, e ainda mais que um filme assim empático com a vítima atinja tamanha repercussão. À luz da conjuntura atual brasileira, quando a extrema direita truculenta ainda não saiu de cena, talvez seja preciso levar em conta essa dimensão política da sensibilização, da compaixão com uma vítima da ditadura.

IHU – Acredita que o filme despolitiza o tema da ditadura e a militância da Eunice Paiva como meio de deixar a obra mais palatável para o público geral?

Fernando Seliprandy – Uma questão que enxergo no filme é a transformação da militância pública de Eunice Paiva em uma elipse, uma espécie de epílogo após o encerramento do arco narrativo que vai da casa ensolarada à casa tomada e, desta, à casa esvaziada. Como já disse, a ênfase no filme está no drama familiar do pai desaparecido e da mãe resiliente. É nessa dimensão privada, no microcosmo da casa, que a adaptação da história se constrói. Mas essa é justamente a característica que faz com que o filme tenha essa projeção social toda. “Ainda Estou Aqui” não é só um drama familiar sobre o passado ditatorial. Ele vem se tornando hoje um fenômeno social. E essa projeção da obra como fenômeno social não ocorre “apesar” da dramatização (em detrimento da politização), mas justamente por causa dela. O apelo à dramatização em um produto bem-acabado, com uma reconstituição de época impecável, com uma trilha sonora envolvente, todos esses são traços estilísticos que favorecem a transformação do filme não só em sucesso comercial, mas também em fenômeno social.

IHU – O filme vem sendo sucesso de público, coisa que muitos “filmes de ditadura” têm dificuldade em realizar. Qual o grande mérito do filme em levar o público brasileiro ao cinema?

Fernando Seliprandy – Eu venho levantando uma hipótese tentando compreender toda a euforia em torno de “Ainda Estou Aqui . Apenas dizer que é um filme talhado para o mercado é pouco. É isso também, mas o sucesso de público e o êxito nos prêmios faz pensar se esta repercussão toda não seria o sintoma de uma demanda por repactuação democrática. Explico-me. Falei agora há pouco em como o filme “Pra frente, Brasil”, de 1982, colocava no centro da narrativa uma vítima inocente da violência ditatorial. Essa era então uma forma de tornar a vítima mais palatável e mais inaceitável a violência cometida contra ela. Em 1982, vivíamos o processo de redemocratização em chave conciliatória, como já ficou dito. Ou seja, ao longo dos anos 1970, no curso do processo de transição, diversos setores da sociedade reviam criticamente a ditadura, passando a considerar a democracia como um valor a ser perseguido.

Naquele momento de conciliação democrática, atores políticos e sociais colocavam diferenças de lado em nome de uma grande “frente” democrática que pressionasse pelo fim do regime. Muitos liberais apoiadores de primeira hora do golpe de 1964 se repaginaram nesse processo, passando a reivindicar uma memória resistente. Muitos guerrilheiros, após a autocrítica do engajamento revolucionário armado, passaram a considerar a democracia como valor inegociável. Essa conciliação demandou uma série de concessões, sendo a Lei da Anistia de 1979 a mais marcante delas, vigente até hoje. “Ainda Estou Aqui” aqui também coloca no centro da narrativa uma vítima inocente da ditadura, em chave conciliatória, após um período de truculência política e mesmo de tentativa da nova extrema direita de dar um golpe para chamar de seu, em 08-01-2023. A pergunta que me faço é se toda essa repercussão em torno de “Ainda Estou Aqui” não seria um sintoma de um desejo de repactuação democrática. Se for isso, a questão crucial é o Brasil não repetir agora a anistia para golpistas.

IHU – Como conciliar uma dramatização mais romântica com um tema político? Acredita que o filme é eficiente neste sentido?

Fernando Seliprandy – Voltamos aqui à questão da dramatização versus política. Reitero que acho que existe uma dimensão política implícita à dramatização nesse filme, justamente esse atendimento de uma possível demanda social por repactuação democrática. A eficiência política de “Ainda Estou Aqui”, se é que se pode falar nesses termos, seria catalisar uma demanda por conciliação difusa socialmente, isso se minha hipótese da repactuação democrática fizer algum sentido. Se for isso, esse filme sobre a ditadura tem uma dimensão política própria à época que vivemos. Um filme histórico nunca fala só do passado, mas também de seu presente, essa é uma lição que os historiadores que lidam com o cinema sabem faz tempo. O ponto crucial é que esse impulso conciliatório não resulte agora em uma nova anistia, como aconteceu em 1979.

IHU – Quais as principais diferenciações que você faz de filmes de ficção e documentários que discutem a ditadura militar brasileira?

Fernando Seliprandy – Não sou daqueles relativistas que acham que tanto faz documentário ou ficção, que, no fundo, sempre estamos diante de uma narrativa. O atual negacionismo da extrema direita nos alerta como esse relativismo é perigoso. É claro que a mediação da linguagem é incontornável, mas ficção e documentário têm modos de enunciação próprios, relações diferentes com a referencialidade, para não falar nas distintas tradições. Como historiador, tenho me dedicado ao estudo tanto da ficção quanto do documentário voltado à elaboração da memória da ditadura. Não quero cair em generalizações, mas, se for para indicar as linhas de força em um e outro campo na representação da ditadura brasileira, podemos esboçar, não sem hesitação, o seguinte: no cinema de ficção, a matriz melodramática muitas vezes dá o tom, levando a representação do período para a esfera dos maniqueísmos em chave moralizante (o torturador psicopata, o herói da resistência, a sociedade inocente etc.); no cinema documental, predomina o documentário de entrevista, isto é, aquele em que o discurso fílmico vai sendo alinhavado pela montagem de uma série de depoimentos ilustrados por imagens de arquivo, em geral narrando uma história de resistência.

Nota-se aí como, nos diferentes modos de enunciação, a pauta da resistência prevalece, e esta é uma problemática que vem sendo discutida pela historiografia pelo menos desde 2004, mais ou menos. É claro que há exceções notáveis, às vezes de filmes injustamente desconhecidos – ocorre-me aqui o caso do documentário Orestes, de 2015, dirigido por Rodrigo Siqueira, sobre o qual já escrevi e que traz uma visão muito original sobre as continuidades da violência de Estado do passado no nosso presente [10]. E é claro que alguns novos filmes vão acompanhando os debates mais atuais da historiografia, como a ênfase em outros tipos de vítimas da ditadura, levando em conta os perfis e interseccionalidades de raça, classe e gênero – para além da figura do resistente branco de origem urbana e de classe média. Mas a verdade é que essas “exceções” circulam pouco e têm pouca repercussão fora dos circuitos mais especializados.

IHU – Sua tese doutoral é sobre documentário e memória intergeracional das ditaduras do Cone Sul e nela você fala sobre o olhar das gerações posteriores sobre as ditaduras. Quais filmes você analisa no trabalho e qual a diferença no olhar e na representação do tema desta geração mais nova para a que viveu sob repressão?

Fernando Seliprandy – Na tese, que vai ser publicada em livro agora em 2025, eu analiso dois documentários brasileiros: Diário de uma busca, de 2010, dirigido por Flavia Castro; e Os dias com ele, de 2013, de Maria Clara Escobar. Da Argentina, eu analiso Los rubios, de Albertina Carri, de 2003. E, do Chile, Mi vida con Carlos, de 2009, de Germán Berger-Hertz. Todos esses realizadores/as são filhos/as de militantes que lutaram contra as ditaduras de seus países. Seus filmes reelaboram a memória do período a partir da perspectiva da segunda geração, trazendo um olhar íntimo e subjetivo que costumava ficar apagado nas versões mais grandiloquentes da memória social. Além desses quatro filmes, a tese vai comparando dezenas de outros títulos na mesma chave levantados na pesquisa, em uma abordagem historiográfica que não ignora as questões da linguagem cinematográfica.

A proposta é, desde o campo da História, compreender esse fenômeno da memória intergeracional tendo como fonte o cinema documental. O que significava ser o filho de um desaparecido político? Como era a infância na clandestinidade? Quais eram os impactos na identidade de crianças que não podiam dizer seu nome, sob risco de revelar o paradeiro dos pais militantes? Como era viver em um aparelho de organização guerrilheira, entre reuniões políticas e armas? Quais as marcas deixadas por essas experiências na vida adulta? São questões que surgem nesses filmes, trazendo uma novidade introspectiva para a memória do período, que no Brasil por muito tempo foi pautada pela ideia de resistência em chave heroica. São documentários que, estilisticamente, colocam a primeira pessoa no centro da enunciação, explicitando as hesitações e as dúvidas com relação às experiências subjetivas rememoradas.

Agora, mesmo reconhecendo essas novidades, o olhar historiográfico da tese (em breve livro) para o fenômeno identificou também certas sedimentações e reenquadramentos da memória intergeracional no cinema documentário. Sobretudo pela reiteração, nos filmes, de uma série de recursos estilísticos voltados, justamente, a indicar a abertura e a indeterminação das obras: a exposição das etapas da busca; as viagens aos lugares da memória familiar; a presença do realizador em tela; a locução em primeira pessoa; as entrevistas com parentes; o uso de arquivos privados etc. Há um problema quando a memória intergeracional encontra uma fórmula estilística no documentário, mesmo que essas fórmulas, paradoxalmente, tentem indicar o imponderável da memória subjetiva.

Também indico a filmografia de três realizadores desses países cujas trajetórias abrangem desde os anos das ditaduras até reelaborações de memória mais recentes: da Argentina, Fernando Solanas; do Chile, Patricio Guzmán; e, do Uruguai, Mario Handler. Outros nomes poderiam ser mencionados, mas esses três são um bom ponto de partida para quem quiser conhecer as relações entre o cinema e as ditaduras desses países vizinhos.

IHU – Uma última provocação: Godard falava que fazer um filme sobre política não era o suficiente; é preciso filmar de forma política, ou seja, conteúdo e forma precisam ser políticos. O que acha desta afirmação e como enxerga o cenário do cinema político contemporâneo a partir dela?

Fernando Seliprandy – A provocação é boa, mas respondo com outra provocação: Walter Salles não é Godard. Não vamos resolver aqui o velho dilema entre experimentalismo formal e comunicação com o público, entre conteúdo político e forma revolucionária. É importante compreender cada filme à luz de seus códigos internos e de seu contexto de produção. É o que tentei esboçar, arriscando-me um tanto, ao trazer para o debate o que poderia ser visto como uma dimensão política, ainda que conciliatória, ainda que não em termos radicais, de “Ainda Estou Aqui”.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Fernando Seliprandy – Eu gostaria de agradecer o convite para essa entrevista e alertar o eventual leitor de que analisar historicamente uma obra cinematográfica a quente, com tanta repercussão ao seu redor, é sempre um risco.

Notas

[1] SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969: alguns esquemas [1969-1970]. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 71.

[2] SODRÉ, Nelson Werneck. O terrorismo cultural. Revista Civilização Brasileira, ano 1, n. 1, p. 239-297, mar. 1965.

[3] NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985). São Paulo: Intermeios; PPGHS, 2017. p. 217-226.

[4] ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, [1988] 2006. p. 114.

[5] BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1979].

[6] XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

[7] Ver: SELIPRANDY, Fernando. Circuito audiovisual implicado: apoio do empresariado à ditadura brasileira a partir de uma documentário nos 150 anos da Independência (1972). Maracanan, n. 37, p. 266-291, set.-dez. 2024. Disponível em: https://doi.org/10.12957/revmar.2024.84381. Acesso em: 15 jan. 2025.

[8] SELIPRANDY, Fernando. Perpetradores no cinema sobre as ditaduras do Cone Sul: do arquétipo ao círculo íntimo. Antíteses, v. 12, n. 23, p. 674-697, jan.-jul. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.5433/1984-3356.2019v12n23p674. Acesso em: 15 jan. 2025.

[9] SELIPRANDY, Fernando. A luta armada no cinema: ficção, documentário, memória. São Paulo: Intermeios, 2015.

[10] SELIPRANDY, Fernando. Violência de Estado, impunidade e fabulação da justiça em Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015). In: KAMINSKI, Rosane; PINTO, Pedro Plaza (org.). Cinema e pensamento. São Paulo: Intermeios, 2021. p. 163-178.

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