05 Novembro 2024
O cineasta brasileiro Walter Salles é um dos destaques da programação do Festival de Cinema de Biarritz que reúne, até a próxima sexta-feira (27), dezenas de produções latino-americanas. A RFI conversou com o diretor na manhã deste domingo (22), após a estreia na França do filme “Ainda estou aqui”, exibido na cerimônia de abertura do evento, na noite de sábado (21). Nesta entrevista, ele fala sobre memória nacional, conta passagens da sua própria vida e destaca a importância do cinema para o avanço da sociedade.
A entrevista é de Maria Paula Carvalho, publicada por RFI, 22-09-2024.
RFI - O público saiu da sala de projeção muito emocionado depois de assistir ao longa-metragem “Ainda estou aqui”. Como você avalia a recepção do seu novo filme na França?
Walter Salles - Voltar para Biarritz é um pouquinho como voltar para casa, porque "Terra Estrangeira", o primeiro longa-metragem que eu dirigi, com a Daniela Thomas e já com a Fernanda Torres como atriz principal, estreou aqui. Então, tem um caráter bastante emotivo estar nesta cidade e poder agradecer ao público, onde tudo começou. Ontem, foi uma noite muito comovente e a reação de Biarritz foi calorosa. Eu acho que tudo isso acontece graças a esse personagem extraordinário que é a Eunice Paiva, sempre a nossa guia, e ao fato de o filme ser inspirado no livro luminoso do Marcelo Rubens Paiva sobre a história da família dele, o que nos permite mergulhar não só na história dos Paiva, mas também na história do Brasil.
RFI - Como foi a pesquisa para esse filme que conta o desaparecimento e a morte do ex-deputado Rubens Paiva nos porões da ditadura militar? Aqui em Biarritz, você disse que conheceu a família Paiva, que convivia com eles no círculo dos ex-exilados no Rio de Janeiro, e que conheceu a música brasileira na casa deles, onde também aprendeu que política era um assunto que podia ser falado na frente das crianças, pois eles tinham essa liberdade...
Walter Salles - Sim, eu tive a sorte de conhecer essa família quando eu tinha 13 anos. Eles tinham vindo de São Paulo e alugado uma casa no Rio. Eu voltava de cinco anos na França, onde tinha vivido de 1964 a 1969. Então, quando eu voltei para o Brasil, voltei para um país sob a ditadura militar, onde havia censura, um país onde eu me sentia bastante perdido. E através de uma amiga, acabei conhecendo os cinco filhos da família Paiva. Na casa deles, pulsava um outro país, que era quase o contracampo do país da ditadura e onde a discussão sobre política era livre e acalorada, onde tocava o tempo inteiro música brasileira. A gente tem que lembrar que Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam exilados naquele momento. Então, poder ouvi-los já era algo bastante excepcional. Isso me abriu um mundo novo. Todas essas informações culturais foram se somando e eu fui formado, em grande parte, pelo cinema e, de alguma forma, pela convivência nessa casa.
RFI - Foram sete anos de trabalho para esse filme. Como foi a reconstituição da casa em que eles moravam, que não existe mais na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro?
Walter Salles - Todo esse lado da zona sul da cidade, que parecia uma pequena aldeia nos anos 1970, se foi com a especulação imobiliária. Então, reencontrar uma casa parecida com aquela, que não tinha um estilo muito definido, eu diria que era vagamente mediterrâneo, não foi fácil. Mas a pesquisa nos ajudou primeiro a recolher fotos originais da casa. Depois, a gente tem a sorte de ter um bairro bastante preservado arquitetonicamente no Rio de Janeiro, que é a Urca, onde a gente achou uma casa muito semelhante. A Nalu, minha amiga e irmã do Marcelo, fez um desenho da planta baixa da casa original e o nosso diretor de arte, Carlos Conti, com quem eu trabalho desde "Diários de Motocicleta", reconstruiu aquela casa. E um dos elogios mais lindos que a gente recebeu dessa reconstrução foi do próprio Marcelo, quando ele veio visitar o set. Ele olhou para casa e quando chegou perto da cozinha, falou: “está me lembrando o cheiro da minha casa”. Então, eu consegui ter uma relação sensorial não somente com o espaço, mas com outras formas de memória daquele universo específico.
RFI - No seu discurso na cerimônia de abertura, você disse que o cinema e a literatura são capazes de manter viva a memória não só de uma família, mas de um país. Qual a importância do lançamento desse filme agora, no momento em que a extrema direita cresce em muitos países do mundo, e é bastante presente no Brasil?
Walter Salles - Um país sem memória é um país sem presente e sem futuro. Isso para mim sempre esteve claro enquanto documentarista. A gente começou a fazer este filme em 2017, ou seja, antes daquela virada que, eu confesso, não esperava, de 2018 para 2022. O presente começou a se tornar muito próximo daquele passado que a gente estava retratando no filme. Isso nos mostrou o quanto a democracia é uma matéria frágil e o quanto é importante oferecer reflexos múltiplos de um passado que pessoas viveram de formas totalmente diferentes. É um filme que fala dos anos 1970, mas pela trajetória de Eunice Paiva e da família Paiva e essa trajetória se estende por três, quatro décadas. Então, permite entender um pouco o que aconteceu com o Brasil.
RFI - Na sala de projeção, alguns brasileiros comentaram que você foi sutil nas cenas de tortura, que a realidade deve ter sido muito pior. Isso foi um desejo seu?
Walter Salles - Eu não acho que se trata de sutileza, mas é uma questão de ponto de vista. Nós, abraçamos o ponto de vista da Eunice, que foi levada para o DOI-CODI e lá ficou durante 13 dias. Ela foi submetida ao que talvez a gente possa descrever como uma tortura psicológica e, sobretudo, ela foi levada com a filha, Eliana, e não sabia se a filha tinha voltado ou não para casa. Então, você imagina uma mãe nessa posição? Sobretudo, porque ela não tinha informação alguma, não sabia porque estava lá. Essa é uma forma de violência muito aguda. Ela ouve a tortura acontecendo naquele espaço. Então, mesmo se a tortura não é apresentada de uma forma frontal, ela é um corpo presente. Em cinema, aquilo que você não mostra às vezes é mais impactante do que aquilo que você mostra. Eu já vi muita gente no final dessas sequências sair com medo, com angústia. É como se fosse um filme de terror e eu acho que isso remete, também, à forma de ocupação da casa, em que até a linguagem é afetada pela presença dos policiais, já que as pessoas não podiam mais se falar e o relato se tornava muito mais subjetivo, porque as pessoas se entreolhavam e tinham que entender o que estava acontecendo. Então, necessariamente você não vai ter as formas de tortura que você tem em outros relatos, normalmente ligados a quem estava na linha de frente do combate, ou seja, dentro dos movimentos revolucionários que faziam frente à ditadura militar. Esses você vê retratados em outros filmes que eu admiro e acho que são absolutamente necessários.
RFI - Você se destacou no cenário internacional ao receber o Urso de Ouro em Berlim, em 1998, com o longa-metragem “Central do Brasil”, que chegou a ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1999. Em 2004, o filme “Diários de motocicleta” recebeu o prêmio François Chalais, concedido pelo Ministério da Cultura francês e pelo Centro Nacional de Cinematografia da França, no Festival de Cannes. “Ainda estou aqui” já recebeu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, no dia 7 de setembro. Qual é a sua expectativa para o futuro do filme?
Walter Salles - Eu acho que é no contato com o público que o filme se completa. Isso muda a cada cidade. Eu tenho um pouco de dificuldade em saber até onde um filme vai. Eu jamais imaginaria que “Central do Brasil” fosse tão longe. Quando a gente estava filmando no sertão, a Fernanda Montenegro volta e meia virava para mim e dizia: “quem vai querer ver essa história de uma senhora rabugenta e de uma criança ranzinza?” E ela falava isso com muito humor e depois completava: “mas a gente está gostando de fazer assim”. Então, foi um filme feito com muita entrega. Foi uma criação coletiva. Eu acho que é o resultado de uma família de cinema que é formada pela Nanda, pela dona Fernanda, eu ouso dizer isso para Daniela Thomas, que foi a produtora nesse projeto. Eu acho que o Marcelo faz parte dessa família e vários outros artesãos que trabalharam no filme também se tornaram membros dessa família. E agora, a nossa família se alarga, porque a partir do momento em que você vê o filme, em que outros jornalistas veem o filme, escrevem sobre ele, interpretam a percepção do filme, ele vai ganhando camadas.
RFI - Os brasileiros estão até hoje esperando esse Oscar, que podia ter vindo com “Central do Brasil”. A gente sabe que será divulgada nesta segunda-feira (23) a indicação do Brasil para o Oscar. Qual a sua expectativa?
Walter Salles - Olha, eu diria que no caso do "Central", foi algo que a gente não previa. A gente não tinha a menor ideia de que o filme iria ter aquela trajetória. É uma competição acirrada para o Oscar e que não tem que estar na frente do processo todo. Eu acho que para esse filme, ainda mais do que para o "Central do Brasil", o que mais interessa é oferecer uma memória possível do Brasil, ou seja, contar essa história que o Marcelo compartilhou luminosamente no seu livro e que a gente abraçou para o cinema com a ajuda dele. Se ele não tivesse nos ajudado na adaptação, eu acho que para os talentosíssimos roteiristas Heitor Lorega e Murilo Hauser teria sido muito mais difícil. Então, essa reação do público brasileiro, a discussão do filme, eu acho que a razão de ser do filme está ali. A indicação ao Oscar? Tudo isso adiciona uma etapa, adiciona visibilidade, evidentemente. Nesse sentido, eu acho que é extremamente positivo. E a competição em si é como um jogo de dados.
RFI - Já tem um outro projeto em vista?
Walter Salles - Tem dois projetos que eu estou desenvolvendo há algum tempo. Para mim, esses desenvolvimentos são sempre de lenta decantação. Eu já cheguei a filmar roteiros que não estavam totalmente maduros e depois me arrependi. É tão difícil fazer cinema que é melhor você partir de algo que seja bem estruturado, sólido, com personagens. Com uma riqueza humana que tem que tocar primeiro a gente que está fazendo o filme para conseguir fazer com que aquilo se transmita, sabe? Então, tem dois projetos, mas sobretudo, tem uma série sobre o Sócrates, jogador de futebol, mas pensador também. E eu acho que ele foi um dos construtores da redemocratização do país. Ele é um personagem extraordinário e eu tendo conhecido o Raí e seus outros cinco irmãos e a família extraordinária que eles são, eu me senti muito interessado e tomado pela possibilidade de fazer uma série documental sobre o Sócrates. Isso já está filmado, está em montagem e deve estrear no início do ano que vem na Globoplay. Estou muito feliz de seguir com um projeto que, de alguma forma, conversa também com o filme.
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“Um país sem memória é um país sem presente e sem futuro”, diz Walter Salles ao lançar o filme “Ainda estou aqui” em Biarritz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU