03 Setembro 2024
Melhor filme de Walter Salles desde "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil", o inédito "Ainda Estou Aqui" ganha atualidade ao tratar de um período sombrio, a ditadura militar, que insiste em mobilizar ideias e pessoas. "Propor mais reflexos desse período parecia vital para entender melhor o trauma vivido, e não repetir os mesmos erros do passado", diz o diretor à Folha. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o longa tem estreia mundial neste domingo (1º) no Festival de Veneza.
Em 20 de janeiro de 1971, o engenheiro e ex-deputado federal (PTB) Rubens Paiva, cassado pela ditadura militar, foi levado da casa onde morava no Leblon, no Rio de Janeiro, por agentes da repressão para "prestar depoimentos".
Disse à família que voltaria logo. Foi torturado e assassinado pelo regime, que vivia então seu período mais sangrento, em plena vigência do AI-5. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
A vida antes e depois desse fato definidor levou seu filho Marcelo Rubens Paiva, autor de um dos melhores romances de formação brasileiro, "Feliz Ano Velho" (1982), a escrever "Ainda Estou Aqui" (2015).
Nele, fica claro o papel de protagonista que Eunice Paiva, sua mãe, assume, depois da morte do marido, na condução da família de cinco crianças, na busca por justiça e na reinvenção da própria vida.
A trama é a base do filme homônimo de Walter Salles, seu décimo-primeiro longa e o melhor desde "Terra Estrangeira" (1995) e "Central do Brasil" (1998). Com Fernanda Torres como Eunice jovem, Fernanda Montenegro em sua versão mais velha e Selton Mello no papel de Rubens Paiva, tem estreia mundial neste domingo (1º), no Festival de Veneza. No Brasil a data de lançamento ainda não foi definida.
A entrevista é de Sérgio Dávila, publicada por Folha de São Paulo e reproduzida por André Vallias em sua página no Facebook, 31-08-2024.
Considero este seu filme mais importante desde "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil", que aliás formam uma "trilogia brasiliana", chamemos assim. Como os outros, ele toca num ponto nevrálgico e atual do país. Antes o êxodo da década perdida, depois o Brasil empacado na desigualdade, agora o perigoso flerte de parte da população com ideias que julgávamos enterradas, como as da ditadura militar. São escolhas propositais ou apenas reflexo do zeitgeist?
"Terra Estrangeira" e "Central do Brasil" são filmes em que o destino dos personagens se mistura à história de um país em crise identitária. Eram histórias originais, pensadas à flor da pele, como um reflexo das crises que estávamos vivendo.
O livro de Marcelo Rubens Paiva me pegou por muitas razões, incluindo essa capacidade de mesclar a história pessoal com a história coletiva. Em "Ainda Estou Aqui", a história dos anos de chumbo é atravessada por uma família, esses personagens existem, são de carne e osso. As questões que Marcelo narra são eminentemente políticas, mas também existenciais. E, como nos ensina Fernanda Montenegro, não há salvação fora do humano e do existencial.
Quando a extrema direita começou a ganhar força no país, ficou claro o quanto nossa memória dos anos de ditadura militar era frágil. Propor mais reflexos desse período parecia vital para entender melhor o trauma vivido, e não repetir os mesmos erros do passado. Em "Ainda Estou Aqui", o Estado invade o coração de uma família, decide quem vai viver ou morrer, faz um corpo desaparecer.
Em 2021, um presidente concedeu medalhas de honra a torturadores daquela época. Este filme, baseado em um livro publicado em 2015, entrou em gestação bem antes desses anos terríveis. Infelizmente, ele parece ser não apenas um relato sobre um passado remoto, mas também um filme sobre os perigos das novas formas de autoritarismo que rondam o Brasil e o mundo.
O Brasil ainda é um país jovem e de jovens: 54,2% da população não tinha nascido em 1985, quando acabou o período de 21 anos da ditadura militar. O filme tem esse propósito de mostrar os horrores daquela época a quem não a viveu ou se isso acontecer será um efeito colateral, ainda que desejável?
Que projeto de país o golpe militar quis erradicar? Talvez um dos mais criativos e promissores da nossa história. Naquele momento havia surgido uma nova arquitetura com Niemeyer e Lúcio Costa, uma nova música com Caetano, Gal e Gil, uma nova literatura com Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, o cinema novo com Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, Lygia Clark, Oiticica e Gerchman nas artes plásticas. Um novo projeto de educação com Paulo Freire, as propostas econômicas da Cepal.
Na casa de Rubens e Eunice pulsava justamente esse desejo de um país livre, com uma identidade independente, essencialmente brasileira. Para a família Paiva, viver segundo esses critérios era uma forma de resistência.
Nesse sentido, o início do filme busca recuperar a vitalidade daquele tempo, mostrar aquilo que poderíamos ter sido. Foi esse Brasil possível, original e independente, que foi brutalmente interrompido pelo golpe militar. O sequestro e o assassinato de Rubens Paiva são uma consequência da violência de Estado que se instalou no país em 1964, e se agravou depois de 1968.
Eunice Paiva é a heroína desconhecida da tragédia de Rubens Paiva, que ganha sua redenção no livro do filho escritor, Marcelo Rubens Paiva, no qual o filme se baseia. Fernanda Torres está contida e serena como era o personagem na vida real. Seu final, de certa maneira, é trágico: após lutar a vida inteira para que a memória do marido não desaparecesse, ela vê a sua própria esvanecer no Alzheimer. Vê uma metáfora do que acontece no Brasil, um povo que mais e mais se esquece?
O livro de Marcelo nos convida a olhar essa história do ponto de vista de Eunice. No centro da narrativa, há uma mulher que teve que se reinventar, recusar o que o destino lhe impunha e romper com os laços patriarcais que prevaleciam nas famílias brasileiras, inclusive nas mais progressistas. Eunice encarna e traça uma forma de resistência pouco comum.
O livro e o filme podem ser vistos como um relato sobre a reconstrução de uma memória individual conduzida por essa mulher, que se sobrepõe à busca pela reconstrução da memória de um país, o Brasil. Essa superposição entre o pessoal e o coletivo é uma das razões pelas quais quis fazer este filme. Essa busca da família Paiva durou 30 anos e se confunde com a luta pela redemocratização do Brasil.
O cinema, como a literatura, é um poderoso instrumento contra o esquecimento. Este filme é apenas uma parte pequena de uma imensa história submersa. Novos filmes sobre a ditadura militar estão sendo rodados, o que é uma ótima notícia. É o que pode nos ajudar a não repetir os erros do passado.
Você frequentou a casa dos Paiva na Delfim Moreira, número 80, no Leblon, ao voltar do exterior, um lugar que depois virou um restaurante e, por fim, um prédio. Pode descrever como era a atmosfera então, o convívio com o ex-deputado, sua mulher, Eunice, e os cinco filhos, e como (e se) ela contrastava com a sua? Quanto do que você viu e viveu chegou ao filme?
Conheci a família Paiva, Rubens, Eunice e seus cinco filhos, Vera, Eliana, Nalu, Marcelo e Babiu, em 1969. Eles vieram morar no Rio, cidade para onde eu voltava após cinco anos. Assim, passei parte da minha adolescência na casa que eles haviam alugado no Leblon e que está no centro de "Ainda Estou Aqui". Nalu era minha amiga mais próxima.
Uma das minhas lembranças mais fortes de adolescência é de uma casa onde as portas e janelas estavam sempre abertas, onde turmas de diferentes idades se encontravam. Essa possibilidade era surpreendente em um país sob ditadura.
Além disso, os afetos nessa família eram diferentes dos que eu conhecia na minha. Para o adolescente que eu era, esse contraste era marcante. Por ali passavam amigos da família, jornalistas, gente da música, além da moçada mais jovem. Não havia distinção entre adultos, adolescentes, crianças.
Rubens transitava entre as turmas, enquanto Eunice era o fio terra da família. Foi assim que pude ouvir debates acalorados sobre a situação política durante a ditadura, foi ali onde encontrei pessoas que me marcaram até hoje, onde descobri a tropicália, por exemplo.
A casa dos Paiva, assim como o cinema, de maneira diferente, me permitiu entender que o mundo era bem mais amplo do que eu poderia imaginar a partir da realidade da minha própria família.
O início do filme, que precede o desaparecimento de Rubens, corresponde à memória que tenho dos espaços e personagens. Em constante movimento, passando de um personagem para outro, em uma casa habitada por vozes, sons externos, música pulsante.
Quando os militares à paisana ocupam essa casa, me deparei com algo que eu não conhecia e tive que imaginar: um lugar subitamente desprovido de luz, com as persianas fechadas, em uma penumbra opaca.
Essa inversão me fez optar por planos fixos ou planos-sequência onde o tempo passa muito mais devagar. Os sons externos são abafados, um silêncio habitado prevalece. A relação entre os corpos, os personagens, se modifica.
Agora, cada um guarda segredos, eles não podem mais conversar abertamente. Enquanto eu filmava essa parte do filme, muitas vezes pensei nas pinturas de Vilhelm Hammershoi. Sua matéria é a ausência, os espaços que guardam apenas os vestígios de uma presença.
O filme marca vários reencontros, o primeiro com Fernanda Torres desde "Terra" e "O Primeiro Dia" (1998), com Fernanda Montenegro desde "Central", além de Daniela Thomas e outros parceiros. Queria que você falasse um pouco do que chama de sua "família do cinema" e a necessidade de tê-los por perto.
Considero Fernanda Montenegro uma das maiores atrizes de sua geração, e não só no Brasil. Nanda é uma cúmplice e coautora desde "Terra Estrangeira", que Daniela Thomas e eu dirigimos em 1995. Gosto da inteligência aguda de sua atuação, que vem da compreensão profunda que ela tem de seus personagens.
"Ainda Estou Aqui" era diferente de tudo que Fernanda já havia feito, demandava uma atuação baseada na subtração, na economia dos gestos e sentimentos, na possibilidade de dizer o que era necessário com pouco. Nanda abraçou essa ideia, confiou. Essa fé no cinema que ela tem tornou o filme possível.
"Eu Ainda Estou Aqui" é um filme sobre uma família, realizado por uma família de cinema, composta por Fernanda Torres e pela extraordinária Fernanda Montenegro, por Daniela Thomas, produtora associada do filme e minha grande parceira, por Ulisses Malta, nosso chefe-eletricista desde "Terra", por Carlos Conti, diretor de arte desde "Diários de Motocicleta" [2004], por mim mesmo. E que agora se amplia com novos cúmplices, como Selton e outros atores e artesãos incríveis que abraçaram o projeto.
Outro aspecto lateral, mas importante, do livro/filme é a causa da crise climática e dos povos originários —Eunice forma-se e torna-se advogada já adulta, atuando nessas frentes. Não acha que os temas, que são interligados, merecem um filme próprio?
Sim, esse ponto é de uma extrema relevância. Como aconteceu com Claudia Andujar, Eunice entendeu que havia outras formas de holocausto acontecendo no Brasil e mudou sua vida para combatê-las. Formou-se em direito aos 46 anos e abraçou a luta pela demarcação das terras dos povos originários. Eunice percebeu que as diferentes formas de violência de Estado vigentes até hoje no país não são dessemelhantes da violência que resultou no assassinato de seu marido.
Aliás, o que pode falar de seu próximo projeto?
É uma série sobre Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira, o grande doutor Sócrates. A série está na confluência entre futebol e política, com a participação de convidados que nos deram depoimentos memoráveis. Aprendi muito durante o processo, e considero um presente poder ter feito dois projetos especiais nesse espaço de tempo. A série está em fase final de montagem.
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“É ótimo ter novos filmes sobre ditadura para não repetir erros”. Entrevista com Walter Salles - Instituto Humanitas Unisinos - IHU