O dia 09 de novembro de 2022 foi, sem dúvida, um dos mais tristes de todos os tempos da música brasileira. Em uma tacada só, dois ícones morreram em um curto espaço de tempo: Gal Costa e Rolando Boldrin.
A baiana Maria da Graça Costa Penna Burgos, ou simplesmente Gal Costa, foi uma intérprete única, daquelas que hoje em dia estão, infelizmente, em extinção. Ela está no mesmo patamar de gente do calibre de Elza Soares, Maria Bethânia, Elis Regina, Fafá de Belém... Enfim, intérpretes que pela voz a gente reconhece de longe. Gal cantou o Brasil como ninguém, dando voz a muitos estilos de música genuinamente brasileira, como o samba, marchinha, rock, seresta, sertanejo e tantos outros que ficarão eternamente no nosso ouvido.
O paulista Rolando Boldrin, dentro das artes, seguiu um caminho levemente diferente de Gal. Começou a carreira como ator, e fez inúmeras telenovelas, peças de teatro e filmes, até que, na década de 80, resolveu se dedicar ao resgate da música brasileira. Rolando levou para a televisão, em inúmeros programas, desde o Som Brasil na Rede Globo, até o mais recente, Sr. Brasil na TV Cultura, a fina flor do que se canta nesse país. Gravou discos, seja com músicas ou contando seus causos, e fez da arte a mola propulsora de uma vida, o que aí sim o faz convergir com Gal.
Nessa primeira coluna experimental Pautas de brasilidade, eu, Marcelo Zanotti, trago, não necessariamente em ordem de importância, as 5 músicas de Gal e Rolando que todo mundo deveria ouvir pelo menos uma vez. Claro, como toda a lista é injusta, certamente esquecerei de muita coisa, mas o importante é buscar conhecer a obra desses grandes artistas.
A música "A Moda da Mula Preta" é uma moda de viola de autoria do cantor e compositor brasileiro Raul Torres. Uma singela história de uma pessoa que tinha uma mula de estimação que marcou sua vida. Aqui temos uma gravação do disco "Caipiríssimo: Clássicos e joias da música caipira", de Rolando Boldrin, do ano de 2013:
O conturbado casamento de Herivelto Martins com Dalva de Oliveira (que com certeza será tratado nessa coluna) durou dez anos, de 1937 a 1947, e gerou alguns clássicos da música popular brasileira, como “Segredo” “Atiraste uma Pedra”, “Culpe-me”, “Caminhemos” e "Cabelos Brancos". Composição de Herivelto Martins e Marino Pinto, lindamente gravada por Rolando Boldrin no disco "Esquentai Vossos Pandeiros", de 1998:
A luta pela reforma agrária no Brasil é um dos pontos discutidos no livro de João Cabral de Melo Neto "Morte e vida severina". O poeta retrata de forma triste e melancólica, em que momento o agricultor consegue seu pedaço de terra. Esse trecho foi musicado por Chico Buarque em 1966 e gravado por Rolando Boldrin e Renato Teixeira em 2005:
Como cantador e compositor, o maior sucesso comercial composto pelo próprio Boldrin foi "Eu, a viola e Deus", música lançada pelo autor no álbum "Rio-abaixo" de 1979 e que, inclusive, dá título a autobiografia de Rolando Boldrin lançada em 2013.
E o maior sucesso popular, música pela qual ficou conhecido e foi abertura de todos os programas sobre cultura brasileira que apresentou na televisão (Som Brasil, de 1981 até 1984 na Rede Globo; Empório brasileiro, de 1984 até 1986 na TV Bandeirantes; Empório Brasil, de 1989 até 1990 no SBT; Estação Brasil, de 1995 até 1996 na CNT-Gazeta; e Sr. Brasil, de 2005 até 2022 na TV Cultura), sem dúvida é "Vide vida marvada". Gravada originalmente por Rolando Boldrin, seu compositor, em 1980. Deixo aqui o registro do dia que o grupo de samba "Demônios da Garoa" foi ao Sr. Brasil e fez um dueto sensacional com Boldrin, em 2012:
A amizade dos "Doces Bárbaros" Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia sem dúvida é um dos encontros mais felizes da nossa MPB. A canção "Baby", na verdade, foi encomendada a Caetano por sua irmã, Maria Bethânia, que lhe trouxe o título e o que ela disse tinha que ser o verso final: “Leia na minha camisa: baby, I love you.” Gravada no disco "Tropicália ou Panis et Circensis" disco manifesto que saiu em 68, com a participação de Nara Leão e Tom Zé além, é claro, de Gil, Gal, Mutantes, Duprat e Caetano, mas sem a presença de Bethânia que, por rejeitar intimamente a confusão de sua pessoa com grupos ou movimentos, deixou a canção Baby, que ela própria encomendara, para ser gravada por Gal Costa, o que resultou no primeiro grande sucesso desta.
“Índia” era uma guarânia sertaneja de 1952, composição de José Fortuna, gravada originalmente por Cascatinha e Inhana, Gal Costa regravou, dando título ao seu LP de 1973. Uma curiosidade é que esse LP teve a capa, focada na parte de baixo do biquíni de Gal Costa, vetada pela ditadura. Para sair, o disco precisou ser vendido em plástico opaco, solução encontrada pelo compositor Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora Philips.
Na minha opinião, esse é o melhor dueto da história da MPB, só comparável a Elis e Tom em "Águas de março". Mesmo tendo gravado em dias diferentes no estúdio, o primeiro e único encontro de Gal e Tim Maia em disco rendeu um grande hit e uma boa vendagem para Gal, com mais de 600 mil cópias vendidas do álbum “Bem Bom”, de 1985, que continha a música “Um Dia de Domingo”. A canção leva a assinatura dos hitmakers dos anos 1980, Michael Sullivan e Paulo Massadas:
Bem ao estilo de Cazuza, a música “Brasil”, parceria com George Israel, apresenta um verdadeiro nocaute poético aos que se apoderavam do país em benefício próprio. Lançada pelo compositor em seu álbum “Ideologia”, de 1988, ela foi regravada por Gal Costa no mesmo ano e virou tema de abertura da novela “Vale Tudo”, de Aguinaldo Silva, Gilberto Braga e Leonor Basséres, feita pela Rede Globo.
Em 1975, Gal foi convidada para ser a intérprete da música de abertura da novela “Gabriela”, adaptação de Walter George Durst para a obro de Jorge Amado, feita pela Rede Globo. O tema musical era uma composição de Dorival Caymmi, “Modinha para Gabriela”. O grande sucesso da música nas rádios levou a cantora a voltar aos estúdios, desta vez gravando um LP com músicas de Caymmi, o “Gal Canta Caymmi”. De lá pra cá, grandes compositores receberam essa mesma homenagem de Gal, como Ary Barroso, Tom Jobim e, mais recentemente, Lupicínio Rodrigues e Caetano Veloso.
Pode parecer clichê, mas não tem outra conclusão a se chegar, analisando a obra desses dois extraordinários artistas, que com eles o céu está mais rico em cultura. A morte é inevitável, chega sempre, e o tempo passa. Mas, quando fazemos da nossa vida uma História, com H maiúsculo, e não uma fábula, aquilo que produzimos de riqueza fica. Nos tomam tudo que temos, seja dinheiro, roupas, e em alguns casos até a dignidade, mas nossa cultura, nosso conhecimento e aquilo que sentimos, ninguém nos tira. Gal Costa e Rolando Boldrin são degraus muito preciosos da vida dos brasileiros, pois embalarão para sempre o viver da nossa gente.