Bolsonarismo e caipira: duas coisas que não combinam. Artigo de Marcelo Zanotti

Foto: Marcelo Cruz / Agência Brasil

20 Outubro 2022

 "Dentre os vários estilos musicais no Brasil, destaca-se a música caipira. Falar da música caipira é, portanto, conhecer um pouco mais da cultura do caipira, ou seja, do povo que vive, viveu ou tem laços com a zona rural", escreve Marcelo Zanotti, estudante dos cursos de História e Jornalismo da UNISINOS e estagiário do IHU.

Eis o artigo.

Desde os fins do século XVI, chamava-se o mestiço de branco com índia de caá-pir – procedente do mato – e, aos poucos, de homem que tem casa no mato. Na segunda metade do século XIX, os milhares de índios e senhores da terra já estavam reduzidos a uma minoria, sendo os demais habitantes dos povoados, portanto, esses mestiços. Na virada deste século, as semelhanças físicas e culturais entre os que habitavam as regiões do interior do centro oeste, sudeste e sul do país acabaram por juntá-los sob o mesmo nome: caipira.

Dentre os vários estilos musicais no Brasil, destaca-se a música caipira. Falar da música caipira é, portanto, conhecer um pouco mais da cultura do caipira, ou seja, do povo que vive, viveu ou tem laços com a zona rural. Com a decadência da zona rural, muitos caipiras tiveram que se refugiar nas cidades e adaptar-se a um novo meio de sobrevivência: o trabalho assalariado das indústrias. A essa migração do campo para as cidades dá-se o nome de êxodo rural. A viola, principal instrumento da música caipira é o coração da música brasileira. Nem pandeiro, nem cuíca, nem sanfona, nem violão. Esculpida em um toco de pau, com dez cordas, deu forma às melodias e cadência às poesias que aos poucos definiram o perfil musical do povo da terra. Hoje muito atrelada à música sertaneja, a música caipira é muito maior e mais rica poeticamente, de forma que é preciso analisá-la para além do ufanismo exagerado dos sertanojos do século XXI. Apesar do aplauso ao progresso ditatorial em várias canções, os músicos caipiras não tinham uma visão única acerca do Brasil que ia “pra frente”. Em várias canções fica claro o descontentamento com a modernização acelerada, desestabilizadora das relações camponesas tradicionais.

Apesar de hoje em dia os ditos artistas "sertanejos" aparecerem lambendo as botas do miliciano presidente da Republiqueta Federativa do Brasil, as críticas sempre foram muito contundentes. É hipócrita pensar que o agro que não respeita a natureza, que o agro que desmata para ganhar lucros impressionantes, que esses sub artistas que saem por ai gritando "mito"representam a verdadeira música do povo que sempre viveu da terra, e, acima de tudo, sempre respeitou a terra. Vejamos o caso de uma música singela, mas de poesia altamente nobre, que explica por si só essa minha afirmação.

Em 1961, a dupla Pedro Bento & Zé da Estrada gravou “Mágoa de boiadeiro”, um lamento diante do desaparecimento dessa profissão: “Antigamente nem em sonho existiam / tantas pontes sobre os rios nem asfalto nas estradas / A gente usava quatro ou cinco sinueiros / pra trazer o pantaneiro no rodeio da boiada / Mas hoje em dia tudo é muito diferente, com progresso nossa gente nem sequer faz uma ideia / Que entre outros fui peão de boiadeiro, por esse chão brasileiro os heróis da epopeia.” A música “Mágoa de boiadeiro” apresenta o boiadeiro como figura central de sua narrativa. Composição de Nonô Basílio e Índio Vago, o título da música advém dos boiadeiros que contribuíram para o progresso do país e hoje não tem mais lugar para eles. Em primeiro lugar, observamos o que se poderia qualificar de saudosismo transfigurador – uma verdadeira utopia retrospectiva, se coubesse a expressão contraditória. Consiste em comparar, a todo propósito, as atuais condições de vida com as antigas; as modernas relações humanas com as do passado. As primeiras, que interessam diretamente a este trabalho, referem-se principalmente a três tópicos: abundância, solidariedade, sabedoria.

O primeiro verso da música, “Antigamente nem em sonho existia”, remete aos sujeitos que viviam na zona rural, e que nem imaginavam as transformações advindas da modernidade. Traz consigo também de lembranças da sua identidade caipira, como “sinuelos” (porção de gado, acostumado a ser conduzido, que serve de guia ao rebanho por acompanhar os cavalos), “pantaneiro” (gado crioulo do pantanal mato-grossense), marcado pela contraposição pelo progresso representado na música por “pontes” e “asfaltos” que apontam para as transformações do cotidiano e o saudosismo.

Ainda na primeira estrofe, o sujeito caipira expressa a seguinte fala: “fui peão de boiadeiro / Por este chão brasileiro os heróis da epopeia”. Trata-se dos peões que faziam longas viagens e que em seus cavalos conduziam o gado de uma região para outra. No decorrer da música, com maestria, é narrado, em 4 estrofes, todos os percalços da profissão que gera tanta saudade naquele personagem. Relembra os utensílios que usava na lida, da tristeza que lhe dá quando vê uma “jamanta” (caminhão de grande porte) carregada de gado, como se visse naquilo e no progresso que aquilo representa o fim de sua jornada. Uma jornada que ia muito além da profissão, mas sim uma jornada que representava o maior prazer que aquele homem tinha na vida.

A representação do “saudosismo transfigurador” é algo presente na música caipira em geral. É expressa pelas comparações da vida que o homem do campo levava no passado, principalmente em relação ao trabalho, a vida familiar e a vida que ele leva atualmente no meio urbano. O caipira tem por característica a autossuficiência, ou seja, como o índio ele sabe fazer tudo o que ele vai usar na vida. Ele caça, pesca, doma animais e constrói sua própria moradia, além de cultivar a terra. Eles têm na religiosidade uma forte tradição de festas e de costumes. Esta herança dos Jesuítas está presente em muitas festas regionais e populares do Brasil, como por exemplo a festa de São João, que foi trazida de Portugal pelo colonizador e introduzida no Brasil caipira pelos padres jesuítas e pelas bandeiras, que são o verdadeiro polo de formação caipira.

Outro marco importante é o espaço de tempo caracterizados por tempos diferentes expressos pelas palavras: “antigamente” e “hoje em dia”. Assim o tempo é marcado pela desconstrução do espaço e constituído através da construção de um outro mundo. O sujeito presente na música mostra as transformações sofridas em sua cultura, pois, a sua vivência era simples, não havia pontes sobre os rios e nem asfalto nas estradas, em contrapartida, a cidade grande, é retratada como um espaço moderno. Porém, para o sujeito é visto como um lugar de ausência, devido a destituição do sujeito no seu espaço e provoca transformações em sua identidade.

Mas, a parte mais bonita da música, que por si só é uma obra prima, é o primeiro verso da última estrofe: “Não sou poeta / Sou apenas um caipira / E o tema que me inspira é a fibra de peão”. É como se o personagem da música tentasse justificar tudo que disse anteriormente, se livrando de rótulos que poderiam ser dados, como se o seu verdadeiro ser estivesse além da poesia, mas sim dentro de uma vivência que leva a isso. E, na minha modesta opinião, é a conclusão mais linda da música popular verdadeiramente brasileira, é como se me disse-se: “Não sou poeta, não tenho pretensão de o ser, eu sou apenas eu.”

Devido o avanço das tecnologias e o barateamento delas, da industrialização e da ideologia do consumo, ocorreu, por consequência, a extinção do caipira original. Ficando apenas alguns costumes e hábitos, como a culinária, uso de plantas medicinais e criação de animais domésticos. Mas, na música e na arte, ainda se encontra traços desse mundo que está tão distante dos moradores das cidades e mesmo os da zona rural moderna. O mundo caipira está apenas no coração e na alma dos brasileiros.

A seguir, um poema autoral inspirado na música "Mágoa de Boiadeiro"

Velho carro de boi

Marcelo Zanotti

Meu velho carro de boi está abandonado
Abandonado pelo tempo ingrato
Meu facão quebrou no meio
Meu pelego branco perdeu o pelo
Pelo frio judiado

 

Mas sempre foi assim e sempre será
O novo vem e o velho tem que parar
O progresso cobriu a poeira da estrada
E esse tudo que é o meu nada
Hoje tenho que ver mudar, e chorar

 

Mas, mesmo vendo carros e motos passando
Meus olhos estão enxergando
Meu velho carro de boi passar

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