Autora do livro “As comissões da verdade e os arquivos da Ditadura Militar brasileira” reflete sobre a importância de obter a memória do país por meio de arquivos
Criada 26 anos após o fim oficial da Ditadura Militar no Brasil, a Comissão Nacional da Verdade produziu, após o trabalho incansável de dois anos, um relatório dividido em três volumes e com mais de 4.000 páginas detalhando as violações aos direitos humanos ocorridas entre 18-09-1946 e 05-10-1988. “Instaurou-se uma comissão, depois de tantos anos de demanda dos familiares de vítimas, grupos de direitos humanos e da sociedade. [...] sua criação deve ser celebrada, junto com a celeridade daqueles que se envolveram nos seus trabalhos e as investigações robustas que ela conseguiu desenvolver”, comenta Mônica Tenaglia, arquivista e historiadora, em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Embora haja críticas à exclusão de determinados grupos e à falta de ações educativas após o lançamento do relatório final, é inegável que o trabalho desenvolvido pela Comissão trouxe à tona assuntos pertinentes à sociedade brasileira e, mais que isso, impulsionou a busca pela memória do país. “A CNV ensejou a criação de diversas comissões da verdade locais por muitas partes do território nacional, constituídas por estados, municípios, universidades e associações. [...] Identificamos 88 comissões, que desenvolveram trabalhos interessantes referentes à Ditadura Militar em suas localidades e muitas formas de compreender as violações de direitos humanos”, pontua.
No entanto, a falta de criminalização e as poucas iniciativas do Estado em manter esse debate aceso acabam tornando-se problemas nesse caminho pela memória. “Vejo, em sala de aula, os alunos e alunas bastante interessados em compreender o período. Mas, por outro lado, as poucas iniciativas em nível de Estado (incluindo questões educacionais, memoriais...) refletem numa ausência de interesse, pela sociedade em geral, de discutir o assunto. Diferentemente de países vizinhos, como o Chile e a Argentina, nós não enfrentamos essa questão, não conseguimos alterar a Lei de Anistia de 1979, e seguimos convivendo e normalizando a impunidade daquele período”, diz.
Mônica Tenaglia | Foto: Arquivo Pessoal
Mônica Tenaglia é professora adjunta no curso de Arquivologia e no PPG em Ciência da Informação da Universidade Federal do Pará. É doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (2019), com período sanduíche na Escola de Informação da Universidade do Texas em Austin, Estados Unidos (2018); mestra em Arquivologia pela University College London, Inglaterra (2010); e graduada em História pela Universidade de São Paulo (2003). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Brasília (2019-2020). Sua tese, intitulada “As comissões da verdade no Brasil: contexto histórico-legal e reconstrução das estratégias e ações para o acesso aos arquivos”, recebeu Menção Honrosa do Prêmio CAPES de Tese 2020 da área de Comunicação e Informação.
Autora do livro “As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira”, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico – Categoria História e Arqueologia 2024. É vice-coordenadora do PPGCI/UFPA. É vice-líder do grupo de pesquisa Organização e Representação do Conhecimento e da Informação na Amazônia – ORCI AMAZÔNIA. É coordenadora adjunta do GT10 – Informação e Memória da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (2023-2025). É membro da Seção Arquivos e Direitos Humanos do Conselho Internacional de Arquivos – ICA. Trabalhou como arquivista no Brasil e na Inglaterra, incluindo a Comissão Nacional da Verdade. Pesquisa arquivos e direitos humanos, o acesso à informação, a privacidade, a acessibilidade, arquivos pessoais, arquivos comunitários, a ditadura militar e comissões da verdade.
IHU – Para começar, você pode explicar o que são e para o que servem as Comissões da Verdade?
Mônica Tenaglia – As Comissões da Verdade são órgãos criados oficialmente por Estados ou instâncias públicas que queiram investigar violações de direitos humanos ocorridos em um determinado período específico. Geralmente, têm um prazo para terminar – em média de 2 a 3 anos – e produzem um relatório ao término de suas atividades. Elas não têm caráter judicial, mas podem encaminhar suas investigações para o judiciário. Elas têm sido criadas desde a década de 1980, especialmente após o término de ditaduras militares latino-americanas.
IHU – A Comissão Nacional da Verdade – CNV no Brasil foi eficiente no seu propósito de denunciar as violações de direitos humanos na Ditadura Militar e garantir o direito à memória do povo brasileiro?
Mônica Tenaglia – Acredito que sim, pois a CNV produziu um relatório robusto e bem elaborado que registra as violações de direitos humanos, especialmente durante a ditadura militar. O relatório está dividido em três volumes e possui mais de 4.000 páginas, inclusive nomeando os perpetradores dos crimes investigados. Todavia, embora a CNV tenha realizado uma investigação minuciosa dos casos relacionados aos perseguidos políticos, há algumas críticas sobre o aprofundamento das investigações relacionadas às violações a outros grupos, como os indígenas. Mas me parece que são investigações que podem ser – e algumas delas são – desenvolvidas por outras iniciativas (e, aqui, destaco as investigações sobre o envolvimento de empresas com o governo militar, ideia originada em um grupo dentro da CNV e que, depois, constituiu a Comissão da Verdade do Ministério do Trabalho). Dessas iniciativas, destaco o Fórum Amazônia por Verdade e Justiça, que acompanho mais de perto e que, no bojo das questões empresariais, trata das violações aos indígenas.
Destaco também que a CNV ensejou a criação de diversas comissões da verdade locais por muitas partes do território nacional, constituídas por estados, municípios, universidades e associações. Somente na minha tese de doutorado, que virou livro, identificamos 88 comissões, que desenvolveram trabalhos interessantes referentes à Ditadura Militar em suas localidades e muitas formas de compreender as violações de direitos humanos, para além daquelas apresentadas pela CNV.
Entretanto creio ser importante compreender que essas iniciativas precisam ser contínuas e que o relatório final, por si só, não pode dar conta de lidar com tantas demandas que emergem acerca do período ditatorial, a começar com as próprias questões relacionadas aos mortos e desaparecidos, ainda na década de 1970, e as questões que emergem e continuarão a emergir porque a sociedade, em geral, amplia sua compreensão do que são os direitos humanos. Temos também, a partir da Lei de Acesso à Informação – LAI, um instrumento legal para viabilizar o acesso às informações públicas.
IHU – O revisionismo da Ditadura Militar feito pela extrema-direita brasileira passa de alguma forma por essa ausência de memória do país?
Mônica Tenaglia – Acredito que a falta de disposição política, desde a transição para a democracia, para enfrentar o legado das violações de direitos humanos ocorridas durante a Ditadura Militar, contribui para a nossa falta de memória sobre o período. Acredito ser responsável, também de certa forma, por um desinteresse da população em geral sobre o nosso passado e a Ditadura Militar. O Brasil criou mecanismos de Estado pontuais, após a redemocratização, para lidar com as violações de direitos humanos pelo governo ditatorial, a exemplo da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995, e que, nos últimos anos foi cada vez mais desmantelada, especialmente pelo governo Bolsonaro e que recentemente foi reinstituída. Além da criação da Comissão de Anistia, de 2002, e de outras ações específicas.
A ausência de memória também é agravada pela falta de acesso aos documentos que evidenciam as ações dos militares nos anos de chumbo. Assim, destaco as dificuldades enfrentadas desde a abertura política, para o acesso aos arquivos, mitigada por ações de recolhimento e abertura dos arquivos por meio de algumas políticas arquivísticas produzidas nas últimas duas décadas. A falta de um ensino específico sobre o período da Ditadura nas escolas, a meu ver, também reforça o nosso desconhecimento e a nossa falta de memória do passado, diferentemente de nossos vizinhos latino-americanos, que destinam disciplinas específicas que abordam o passado ditatorial. Há diversas outras questões que não são enfrentadas, mas, de modo geral, temos um cenário propício para revisionismos e apoio à ditadura militar, reforçada pela ascensão da extrema-direita em outros países.
IHU – Como a nossa Comissão Nacional da Verdade difere das comissões da verdade de outros países como Argentina, Chile e demais países latino-americanos que também passaram por ditaduras militares?
Mônica Tenaglia – A CNV foi criada 26 anos após o término da Ditadura Militar; acredito que a demora em criar uma comissão oficial de Estado que investigue as violações de direitos humanos pelo Estado ditatorial nos difere dos nossos vizinhos latino-americanos, além de demonstrar a falta de disposição política, por anos, para enfrentar a questão. Esses países também deram continuidade às discussões sobre o período, mobilizando os processos de punição dos perpetradores. Por outro lado, a CNV se beneficiou de um arcabouço de diretrizes e experiências previamente produzidas por outras comissões da verdade que ajudaram na sua elaboração e no seu desenvolvimento de atividades. As primeiras comissões da verdade latino-americanas, por exemplo, investigaram, majoritariamente, os desaparecimentos forçados e os assassinatos, sem considerar outras formas de violações de direitos humanos. No caso brasileiro, nossa abordagem foi mais ampla.
IHU – É possível seguir em frente como país sem criminalizar, investigar e avaliar o passado?
Mônica Tenaglia – Penso que temos investigado e feito avaliações sobre o passado, considerando as ações pontuais produzidas pelo Estado e anteriormente já mencionadas. Também temos produzido – cada vez mais – pesquisas e debates sobre o período ditatorial nas universidades, por exemplo. Vejo, em sala de aula, os alunos e alunas bastante interessados em compreender o período. Mas, por outro lado, as poucas iniciativas em nível de Estado (incluindo questões educacionais, memoriais...) refletem numa ausência de interesse, pela sociedade em geral, de discutir o assunto. Por fim, a questão da criminalização é, certamente, um grande problema no Brasil. Diferentemente de países vizinhos, como o Chile e a Argentina, nós não enfrentamos essa questão, não conseguimos alterar a Lei de Anistia de 1979, e seguimos convivendo com (e normalizando a) impunidade daquele período.
Minha compreensão como arquivista é que os arquivos evidenciam acontecimentos e ações, possibilitando a construção da nossa memória e entendimento sobre o que aconteceu e como isso reflete no presente e no futuro. Ter o direito de acesso aos arquivos é um direito humano fundamental porque o direito de acesso à informação possibilita a efetivação de todos os outros direitos humanos, incluindo o direito à verdade, à memória e à compreensão do nosso passado.
Desde as primeiras elaborações sobre os direitos humanos, registradas em grandes declarações, como a Declaração do Homem e do Cidadão, de 1789, inclui-se o direito de acesso aos documentos públicos como essencial para a prestação de contas dos Estados e à participação dos cidadãos na tomada de decisão pública. Quanto às comissões da verdade, que trabalham com grandes quantidades de informação, é essencial que o direito de acesso à informação lhes seja garantido. Não é coincidência que a Lei de Acesso à Informação tenha sido aprovada concomitantemente à lei que criou a CNV.
Esse tema foi a razão da escrita da minha tese e do meu livro. Eu quis entender qual foi a relação das Comissões da Verdade brasileiras com os arquivos da Ditadura Militar, já acreditando que os arquivos teriam sido fundamentais para o desenvolvimento das investigações das comissões. Então, analisei o que as comissões da verdade fizeram para acessar os documentos. A CNV, por exemplo, denunciou no relatório final – e, mesmo antes disso, já vinha externalizando a falta de colaboração das Forças Armadas em disponibilizar informações (a exemplo das entrevistas dadas pelo então coordenador da CNV, Pedro Dallari, no segundo semestre de 2014, próximo à entrega do relatório) – as dificuldades de acesso, a falta de evidência da destruição dos documentos etc.
A CNV teve uma estrutura bastante robusta para as suas investigações, um corpo muito qualificado de servidores, colaboradores, peritos, pesquisadores, documentos disponíveis e digitalizados no Arquivo Nacional..., mas, quando se analisam as estratégias de acesso aos arquivos pelas comissões da verdade locais, as questões são diferentes e as estratégias são diversas. Primeiro porque, próximo às suas questões locais, muitas comissões precisavam acessar documentos que nem sequer estavam organizados ou recolhidos a instituições arquivísticas – no caso de comissões da verdade municipais, por exemplo, imagine se pensarmos nos arquivos municipais ou gestão de documentos em municípios, quase incipientes.
Essas questões se refletem nas dificuldades de não acessar os documentos, conseguir utilizá-los e compreendê-los pela falta de organização. Foram também as comissões da verdade municipais que mais denunciaram a falta de apoio institucional e financeiro para desenvolver suas atividades. Comissões da verdade universitárias, que, naturalmente, teriam um corpo de pessoas bastante familiarizado com as questões de pesquisa e já contariam com pesquisas em andamento que viriam a subsidiar os seus relatórios finais, denunciaram situações de péssima conservação dos documentos, como acervos localizados em banheiros desativados. Mas também foram as comissões da verdade universitárias que desenvolveram estratégias de acesso aos arquivos utilizando estudantes de cursos de Arquivologia e História, por exemplo, aproximando-se de ações educacionais que a maioria das comissões da verdade brasileiras – inclusive, a CNV – pouco produziram.
IHU – No seu trabalho você diz que houve uma lacuna das Comissões da Verdade no Brasil: a falta de ações educativas para a sociedade sobre os trabalhos e resultados da investigação. Quais seriam as ações ideais para preencher essa lacuna?
Mônica Tenaglia – A literatura sobre direito humanitário internacional e as comissões da verdade reconhecem que é necessário desenvolver ações educativas e promover o debate, reflexão e compartilhamento de informações sobre as investigações das comissões e o período em geral. Muitas comissões da verdade brasileiras, no entanto, trabalharam com poucos recursos, à custa da ajuda de voluntários. Então, obviamente, só conseguiram finalizar as suas atribuições – quando conseguiram.
Das 88 comissões da verdade identificadas, localizei apenas 27 relatórios finais. Então é possível ter uma noção de que a grande maioria das comissões criadas não conseguiu finalizar os seus trabalhos com um relatório. Identifiquei que algumas delas criaram projetos educacionais interessantes com escolas, a exemplo da Comissão Estadual do Amapá. Mas, ao analisar o seu quadro de membros, verificamos que alguns deles eram professores de História, assim, naturalmente, essas iniciativas emergiram dentre suas ações.
O que é interessante notar, e que está incluído nos desdobramentos das ações das comissões da verdade, é a falta de continuidade de suas ações e, em vez de falar do que as comissões não fizeram em referência às ações educativas, falar mais do que não foi feito a partir da entrega de seus relatórios e da finalização de suas investigações. A maior parte dos relatórios finais aponta recomendações para a realização de ações educativas, abertura e recolhimento dos arquivos e criação de memoriais. Vemos que pouco foi realizado a partir disso. Uma hipótese é o alcance limitado dos desdobramentos das ações dessas comissões, mas não podemos esquecer o período conturbado que o país atravessou e que condiz com a entrega do relatório final da CNV – de 2015 em diante com o impeachment de Dilma Rousseff.
IHU – Qual o legado da Comissão Nacional da Verdade no Brasil e como prosseguir nessa busca pela memória brasileira?
Mônica Tenaglia – Acredito que o primeiro legado foi criar de forma oficial uma comissão de Estado que investiga os seus próprios crimes – as violações de direitos humanos – durante um período determinado (1946-1988) e que enfatizou a Ditadura Militar. Então, mais de duas décadas depois do término desse período, instaurou-se uma comissão, depois de tantos anos de demanda dos familiares de vítimas, grupos de direitos humanos e da sociedade.
Embora a Comissão tenha demorado para ser formada, sua criação deve ser celebrada, junto com a celeridade daqueles que se envolveram nos seus trabalhos e as investigações robustas que ela conseguiu desenvolver. Considero um legado porque, a partir da criação da CNV, muitas outras comissões da verdade locais foram também estabelecidas, fornecendo muitas contribuições. O relatório final da CNV e os desdobramentos de suas recomendações, a mobilização de novos grupos e debates também podem ser destacados.
Enfatizo, ainda, a identificação e os recolhimentos de acervos sobre a ditadura militar impulsionados pela criação da CNV e das comissões locais, o projeto Memórias Reveladas, criado anteriormente, desde 2009. Então essas iniciativas, referentes aos arquivos, também são fruto daquele momento político de aprovação da CNV. Obviamente, há muita coisa que precisa ser retomada e ainda ser feita. Os dez anos de entrega do relatório final da CNV, nesse ano de 2024, é também uma possibilidade de fortalecer essas discussões.