28 Setembro 2023
Noam Chomsky recorda o golpe militar chileno observando também o poder da propaganda americana sobre o imaginário coletivo global ao jogar no esquecimento o terror vivido no Chile durante os 17 anos de ditadura a partir de 11 de setembro de 1973, ao mesmo tempo que superdimensiona o 11 de Setembro americano, no centro das atenções históricas. "Washington foi a Al-Qaeda no Chile", aponta um dos intelectuais mais respeitado do mundo. Quais vidas valem mais?
A reportagem é de Edu Montesanti, enviada pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Neste mês de setembro em que se cumprem 50 anos do brutal golpe militar no Chile financiado pelos EUA, Noam Chomsky manifestou-se exclusivamente para esta reportagem, falando em poucas palavras sobre um dos regimes mais cruéis da história da América Latina, cuja ditadura militar (1973-1990) deixou como saldo 40 mil mortos e "desaparecidos" e mais de 200 mil exilados segundo dados oficiais, além de uma tragédia do ponto de vista econômico e social, com sérias consequências trazidas aos dias de hoje.
A partir de 11 de setembro de 1973, quando as Forças Armadas chilenas surpreendentemente cercaram e bombardearam o Palacio de la Moneda, casa presidencial do então presidente socialista Salvador Allende (1970-1973), o povo chileno viveu "uma guerra subterrânea" de longos 17 anos conforme observado no documentário Clandestino en Chile de 1985, dirigido por Miguel Littín.
Chomsky, autor de mais de cem livros, lamenta que o 11 de setembro chileno, grave terrorismo do Estado patrocinado por um governo estrangeiro, seja esquecido na região e ignorado em todo o mundo, devido ao que o intelectual americano considera um subproduto da imposição midiática americana, "quintal dos Estados Unidos" como se diz ao norte da América Latina.
"Neste ano, apresentei uma palestra [*] no Chile sobre o 50º aniversário do primeiro 11 de Setembro, em qualquer padrão que se possa levar em conta incomparavelmente pior do que Setembro de 2001. Não discuto isso, porque Washington foi a Al-Qaeda no Chile", diz o docente estadunidense.
E acrescenta: "O primeiro 11 de setembro há 50 anos, em setembro de 1973, foi incomparavelmente pior que 11 de Setembro americano. Isso é bem compreendido no Chile, é claro, onde se marca o 50º aniversário do horror local, mas não em outros lugares, onde a propaganda dos Estados Unidos é tão poderosa, que as pessoas não conseguem compreender isto. Incrível como isso foi suprimido da consciência coletiva. Uma evidência da eficácia do poder propagandístico norte-americano".
Dentro do Chile, fruto da memória e incansável luta por verdade baseada no senso de dignidade do povo chileno, mais ex-ditadores foram condenados em junho deste ano: o general Santiago Sinclair de 92 anos foi sentenciado a 18 anos de prisão por ter participado da Caravana da Morte e coordenado o crime de 12 camponeses, além dos militares Juan Chiminelli de 86 anos, Pedro Espinoza de 90 e Emilio de la Mahotiere de 86, todos pela participação no referido massacre. Apesar das elevadas idades, os ex-ditadores foram levados à prisão.
Vale recordar que o ex-ditador Augusto Pinochet morreu em 2006 na cadeia, aos 91 anos de idade condenado à prisão domiciliar perpétua.
As questões trazidas por Chomsky retomam não apenas a discussão sobre o papel que os Estados Unidos desempenham, historicamente, na "democracia" latino-americana, como também levantam a tão indigesta quanto providencial pergunta: quais vidas valem mais?
* Abaixo, tradução exclusiva desta reportagem da palestra em inglês proferida por Noam Chomsky, via Zoom aos chilenos em maio deste ano:
Esta é a época dos aniversários. O 20º aniversário da invasão do Iraque pelos EUA, o 50º aniversário do acordo para acabar com a guerra no Vietnã, e o 50º aniversário do primeiro 11 de Setembro - o 11 de Setembro chileno.
Aprendemos muito sobre o provável futuro, perguntando-nos como estes acontecimentos são comemorados pelo país mais poderoso da história mundial, e seus aliados.
Vamos começar com o primeiro 11 de setembro. Se eu mencionasse isso nos EUA ou na maior parte do Ocidente, poucos teriam ideia do que estou falando. Houve apenas um 11 de Setembro, em 2001, em Nova Iorque. A ignorância ocidental sobre este assunto é fato bastante importante, de grande importância para os dias de hoje e para o futuro.
Seja como for, o primeiro 11 de Setembro foi um ato de terrorismo e violência muito mais extremo do que tem sido reconhecido no Ocidente. É claro que foi ato de terror: terrorismo de Estado. Os EUA foram fundamentais na preparação do golpe de Pinochet, regozijaram-se com o seu sucesso e ofereceram enorme apoio diplomático e material à ditadura imposta.
Passemos às comparações dos dois 11 de Setembros. A forma correta de comparar seu impacto é em termos per capita: a população dos EUA em 2001 era cerca de 30 vezes maior que a população chilena em 1973.
Suponhamos, então, que o número de vítimas nos EUA tenha sido comparável ao primeiro 11 de Setembro. Isso significaria 150 mil mortes, e praticamente um milhão de vítimas de tortura. O segundo 11 de Setembro foi bastante grave, mas nem de longe parecido com aquele outro.
Isto, considerando apenas números brutos. E havia muito mais do que isso. O segundo 11 de Setembro não derrubou o governo dos EUA, instalando uma ditadura cruel. O segundo 11 de Setembro não teve efeitos duradouros nos EUA. Teve efeitos importantes na região da Ásia Central e Oriente Médio, mas não efeitos atrativos, embora isso seja outra história.
Em contraste, os efeitos do primeiro 11 de Setembro foram drásticos. O Chile ainda está, agora, 50 anos depois, lutando para superar os efeitos da destruição da florescente democracia chilena, sendo desnecessário dizer que se trata de uma luta difícil.
Voltemos ao 50º aniversário do acordo de paz do Vietnã. Quatro anos mais tarde, em 1977, o Presidente Carter foi questionado em entrevista coletiva se os EUA tinham alguma dívida com o Vietnã pela matança, ruína e pelos destroços – que ainda persistem enquanto crianças morrem devido à guerra química massiva dos EUA no Vietnã do Sul, sempre o principal principal alvo do ataque dos EUA, o pior crime desde a Segunda Guerra Mundial.
Carter respondeu dizendo que não temos “nenhuma dívida” com o Vietnã porque “a destruição foi mútua”.
Recorde-se que Carter foi único entre os presidentes dos EUA na preocupação com os direitos humanos, e depois de deixar o cargo compilou um registro honroso, incomparável na história presidencial, ou na história de outros Estados imperialistas.
A reação de Carter aos crimes no Vietnã não suscitou abordagens na mídia predominante internacional, por boas razões. Era a norma na opinião liberal. No final da guerra, em 1975, os opositores mais extremos da guerra nos meios de comunicação dos EUA escreveram que a guerra começou com “esforços desajeitados para fazer o bem”, mas acabou sendo um erro porque os EUA não conseguiram levar democracia ao Vietnã, a um custo aceitável para si próprio.
Não insultarei a inteligência coletiva, comparando este comentário com fatos muito bem documentados.
Voltemos ao terceiro aniversário, ao 20º aniversário da invasão do Iraque, o pior crime deste século. Houve uma entrevista com seu perpetrador, o presidente George W. Bush. No Washington Post, um dos dois principais jornais nacionais. Na seção Style ele foi retratado como um vovô adorável, brincando alegremente com os netos e exibindo retratos que pintou de pessoas famosas que conheceu.
Novamente nenhum comentário, exceto aqueles que o acham simplesmente adorável, como Michelle Obama, quem disse: "Eu o amo demais. Ele é um homem maravilhoso. Ele é um homem engraçado".
Nem todo mundo no mundo ri.
O governo dos EUA comemorou oficialmente o 20º aniversário. Uma das atrocidades mais horrorosas da invasão foi o ataque assassino a Fallujah, destruindo uma das mais belas cidades do Iraque com números desconhecidos de mortes de civis: um agressor imperialista não se preocupa em calcular trivialidades, como o preço das suas depredações.
Para comemorar os crimes em Fallujah, a Marinha dos EUA encomendou o seu mais novo navio de ataque, batizando-o de USS Fallujah, com uma declaração eloquente sobre o heroísmo dos fuzileiros navais que levaram a cabo aquele "nobre esforço".
Tais coisas não são noticiadas na grande mídia dos EUA, mas este é um país livre, de maneira que você apenas pode ler sobre isso nas margens dos noticiários, isso ainda se puder encontrá-las.
Você também pode ler a reação dos iraquianos, que não acharam graça. O jornalista Nabil Salih escreve que “a selvageria dos EUA não terminou” com o massacre em massa de mulheres e crianças, e “regar Fallujah com urânio empobrecido e fósforo branco". Vinte anos e incalculáveis defeitos congênitos depois, a Marinha dos EUA está nomeando um dos seus navios de guerra como USS Fallujah…
É assim que o Império dos EUA continua a guerra contra os iraquianos. O nome de Fallujah, arrasado com fósforo branco implantado nos ventres das mães por várias gerações, é também um despojo de guerra… O que resta é a ausência assustadora de membros da família, casas bombardeadas até a destruição total e fotografias incineradas de rostos sorridentes.
Em vez disso, um sistema letalmente corrupto de camaradagem intersectária do roubo foi-nos legado pelos impunes criminosos de guerra de Downing Street e de Beltway, Londres e Washington, as primeiras grandes democracias ocidentais.
Podemos comparar tudo isso com a enxurrada de retórica enfurecida sobre Vladimir Putin, ao lado de Hitler como a figura mais perversa da história. Novamente, não insultarei sua inteligência comentando isso.
Por que a diferença de reação em todos esses casos? Isto foi explicado simplesmente pelo grande romancista e ativista indiano Arundhati Roy, comentando a reação na Índia aos pronunciamentos apaixonados do Ocidente sobre a luta cósmica entre a democracia e a autocracia na Ucrânia: “A Ucrânia certamente não é vista aqui como algo com uma clara história moral para contar. Quando pessoas pardas ou negras são bombardeadas ou ficam chocadas e pasmadas, isso não importa, mas com pessoas brancas isto deve ser diferente.”
Isto também é ininteligível nos círculos ocidentais civilizados, onde o racismo está tão profundamente enraizado que não pode ser notado. Refletindo sobre estas questões, aprendemos um pouco mais sobre as prováveis perspectivas do futuro.
Vejamos algumas outras lições instrutivas da história recente. Porque os EUA estavam tão empenhados em destruir a democracia chilena e instituir um horrível reinado de terror, celebrando-o depois com grandes elogios e apoio pródigo?
A resposta foi dada por Henry Kissinger, figura principal do crime – um dos muitos triunfos de um dos grandes assassinos em massa da história recente ,e o mais homenageado do Ocidente. Kissinger explicou que o Chile de Allende era um vírus que poderia infectar outros: o seu sucesso na concretização da socialdemocracia por meios parlamentares poderia encorajar outros, que enfrentam repressão semelhante, fazendo o mesmo, e o regime de dominação dos EUA poderia ser seriamente desgastado.
Kissinger não estava inventando nada de novo. Ele estava repetindo uma das principais doutrinas da violência imperialista. Os grandes estadistas da Europa tiveram a mesma preocupação em relação à revolução americana há 240 anos, para dar um exemplo.
Outra, mais recente, é a decisão dos EUA de entrar em guerra com o Vietnã em 1950. Os registros internos revelam a mesma preocupação: um Vietnã independente, bem sucedido, seria um vírus que poderia infectar a região, minando a ordem neocolonial do pós-guerra que os EUA estavam, então, construindo.
Como lidar com um vírus que espalha o contágio? Simples. Você destrói o vírus e inocula vítimas em potencial. Esta é a verdadeira história da guerra dos EUA contra o Vietnã, que durou 25 anos. O ataque praticamente destruiu o vírus: o Vietnã sobreviveu, mas não como modelo de desenvolvimento independente bem-sucedido. A região foi vacinada com sucesso pela instalação de ditaduras cruéis. O sucesso final ocorreu na Indonésia, rica em recursos, que tinha sido um alvo importante da subversão dos EUA devido à sua independência.
Em 1965, o problema da Indonésia foi resolvido. O golpe de Suharto apoiado pelos EUA destruiu o governo parlamentar, assassinou centenas de milhares de pessoas, demoliu o principal partido político – um partido dos pobres –, abrindo o país à livre exploração pelo capital ocidental.
Em retrospectiva, o Conselheiro de Segurança Nacional Kennedy-Johnson, McGeorge Bundy, um dos principais arquitetos do massacre do Vietnã, refletiu que poderia ter sido sensato terminar a guerra em 1965, após o golpe de Suharto. O vírus já foi esmagado, e o círculo de ditaduras apoiadas pelos EUA evitou qualquer ameaça de propagação do vírus do desenvolvimento independente bem-sucedido. Os EUA alcançaram os seus principais objetivos de guerra. O que se seguiu, foi desnecessário.
Estas são mais observações corretas, mas incompreensíveis nas sociedades ocidentais "bem disciplinadas". A visão padrão é que os EUA perderam a guerra – o que significa que apenas alcançaram os seus principais objetivos de guerra, mas não alcançaram nada como a conquista das Filipinas no início do século XX, ou muitas façanhas semelhantes.
Os chilenos estavam bem conscientes dos massacres indonésios. Talvez se lembrem das advertências de que “Jacarta está chegando”, enquanto o terreno estava sendo preparado para o golpe de Pinochet.
A mesma lógica se aplica ao caso do vírus Allende. O vírus foi destruído pelo golpe inspirado por Nixon e Kissinger, e as regiões vizinhas foram inoculadas pela imposição de Estados de Segurança Nacional ao estilo neonazi.
O golpe de Pinochet chegou tarde. O processo já estava em andamento, em reação a outro contágio disseminador de vírus: Cuba. Um ano após a libertação de Cuba, em janeiro de 1959, em março de 1960, a administração de Eisenhower decidiu secretamente derrubar o governo.
Houve motivos, os de sempre: a preocupação com o vírus. Uma das coisas boas dos Estados Unidos é que são uma sociedade muito livre e aberta, segundo padrões comparativos. Temos um rico registro documental de planejamento interno.
Ficamos sabendo, com isso, que a CIA informou a Casa Branca que a derrubada do regime de Castro “era a chave para toda a América Latina; se Cuba tiver sucesso, podemos esperar que a maior parte da América Latina caia”. O Conselho de Planejamento Político do Departamento de Estado rapidamente expandiu estas preocupações: “o principal perigo que enfrentamos em Castro”, concluiu, está “no impacto que a própria existência do seu regime tem sobre o movimento esquerdista em muitos países latino-americanos… O simples fato é que Castro representa um desafio bem-sucedido aos EUA, uma negação de toda a nossa política hemisférica de quase um século e meio” – isto é, de volta à Doutrina Monroe, que afirmava a intenção e o direito de Washington de dominar o hemisfério.
Outros planificadores de alto-grau também compreenderam, incluindo os torturadores do Chile. O Conselho de Segurança Nacional de Nixon alertou que se não conseguirmos controlar o nosso próprio quintal na América Latina, não seremos capazes de “alcançar uma ordem bem sucedida noutros lugares do mundo”: isto é, impor o nosso domínio sobre o mundo.
Henry Kissinger disse, ao expressar o seu apoio às guerras terroristas de Reagan na América Central: “se não conseguirmos controlar a América Central, será impossível convencer as nações ameaçadas no Golfo Pérsico e em outros lugares de que temos a capacidade de controlar o equilíbrio global; traduzindo para uma linguagem precisa, não seremos capazes de governar o mundo de forma eficaz – sempre para o bem da humanidade, por definição".
As preocupações de Kissinger sobre o controle dos EUA nas regiões produtoras de energia do Oriente Médio ecoaram um velho refrão nos círculos políticos dos EUA. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou e os EUA se prepararam para governar o mundo do pós-guerra, o Departamento de Estado descreveu estas regiões como um dos maiores prémios materiais da história mundial, a região estrategicamente mais importante do mundo. O controle destas regiões proporcionará a Washington “o controle substancial do mundo”, nas palavras do influente planejador A.A. Berle, uma figura proeminente na administração de Roosevelt e posteriormente nas administrações liberais.
Vale lembrar que os EUA são um império global. As políticas implementadas em uma região são normalmente duplicadas noutras. Os EUA têm responsabilidades globais, como disse Kissinger; os aliados têm apenas responsabilidades regionais. Esse tem sido o papel de Washington desde que tomou a gestão global da Grã-Bretanha após a Segunda Guerra Mundial, embora em âmbito e com ambições muito maiores.
A administração de Kennedy respondeu imediatamente ao crime de Cuba de desafiar com sucesso a política imperialista dos EUA. O primeiro passo foi a invasão da Baía dos Porcos. Quando isso falhou, Kennedy lançou uma grande guerra terrorista para levar “os terrores da Terra” para Cuba, nas palavras do seu confidente e conselheiro para a América Latina, o historiador liberal Arthur Schlesinger. Kennedy também impôs um regime de sanções de uma selvageria sem precedentes, que ainda persiste.
Irrelevantemente, o regime de sanções é combatido por todo o mundo. Este fato é ilustrado todos os anos na votação anual sobre as sanções na Assembleia Geral da ONU. A oposição é unânime, com exceção dos EUA e de Israel, forçado a votar com seu protetor. Essa irrelevância quase não é noticiada e não preocupa a hegemonia imperial. Os aliados dos EUA que se opõem às sanções, no entanto, obedecem-nas. Não é sábio ofender o Padrinho.
Não deveria haver necessidade de rever os detalhes deste exercício de sadismo internacional.
Kennedy também compreendeu a lógica imperial padrão: quando existe um vírus que espalha o contágio, não se deve apenas destruir o vírus, mas também inocular as vítimas. Assim, em 1962, Kennedy mudou a missão das forças armadas latino-americanas de “defesa hemisférica”, para “segurança interna”.
É claro que os EUA foram capazes de determinar a missão das forças armadas latino-americanas, uma questão de rotina.
A defesa hemisférica era um anacronismo, um resquício da Segunda Guerra Mundial. A segurança interna, por outro lado, não é brincadeira. No contexto latino-americano, significa guerra contra a população civil. As consequências previsíveis foram descritas por Charles Maechling, que liderou a contrainsurgência e o planejamento da defesa interna dos EUA nas administrações Kennedy e Johnson.
A decisão de Kennedy em 1962, escreveu ele, mudou a posição dos EUA da tolerância “da rapacidade e da crueldade dos militares latino-americanos” para a “cumplicidade direta” nos seus crimes, para o apoio dos EUA aos “métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich Himmler”.
O primeiro grande alvo foi o Brasil. Em 1964, um golpe militar derrubou o governo parlamentar e estabeleceu a primeira das ditaduras assassinas que se espalharam pelo continente, com uma terrível praga de repressão. Todos foram fortemente apoiados, em alguns casos virtualmente criados, pelo governo dos EUA.
O golpe brasileiro foi elogiado pelo embaixador de Kennedy e Johnson, Lincoln Gordon, que o saudou como “a vitória mais decisiva para a liberdade em meados do século XX”. Foi, disse ele, uma “rebelião democrática” que ajudaria a “restringir os excessos da esquerda” e deveria “criar um clima muito melhor ao investimento privado”.
Gordon tornou-se presidente da John’s Hopkins, uma das grandes universidades dos EUA.
O padrão ressoou por todo o hemisfério. O Chile foi apenas mais uma vítima. A praga atingiu a América Central nos anos de Reagan, terminando em 1989 com o assassinato de seis importantes intelectuais latino-americanos, padres jesuítas, pela brigada de elite Atlacatl, recém-saídos de um treinamento renovado pelas forças especiais dos EUA sob ordens diretas do Comando Militar Superior, que esteve sempre em contato próximo com a Embaixada dos EUA.
Poucos americanos sabem os nomes dos padres assassinados. Ou tenha alguma consciência do registro terrível. Este é mais um testemunho do sucesso da doutrinação profunda nas sociedades livres, o que por vezes é chamado de “lavagem cerebral sob liberdade”. É rotineiro, e com consequências graves.
O grande romancista americano e ativista antiguerra, Mark Twain, escreveu há muito tempo: “é pela bondade de Deus que, em nosso país, temos essas três coisas indescritivelmente preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência, nunca praticando nenhuma delas".
É tudo parecido com a Inglaterra, a primeira grande democracia moderna. Na Inglaterra, escreveu George Orwell, “as ideias impopulares podem ser silenciadas e os fatos inconvenientes mantidos no escuro, sem necessidade de nenhuma proibição oficial”. Um dispositivo é uma "boa educação", que inculca a compreensão de que há certas coisas que “não seria bom dizer” – nem sequer pensar.
Seu ensaio, que pretendia ser uma introdução de seu famoso livro Animal Farm, não foi publicado.
A América Latina tem agora, mais uma vez, uma oportunidade de escapar à sua história conturbada de violência e repressão internas e de subjugação ao poder externo. As recentes eleições no Chile, na Colômbia, na Argentina e, mais recentemente, no Brasil, oferecem uma esperança renovada. Renovado, porque antes houve esperanças que foram frustradas pelos demônios gêmeos da América Latina.
Há um ditado famoso no México sobre os demônios gêmeos, as raízes da promessa falhada do país: o México está demasiado perto dos Estados Unidos e demasiado longe de Deus.
A primeira frase – demasiado próxima dos Estados Unidos – é autoexplicativa à luz da história. Podemos entender esta última frase – demasiado longe de Deus – como referindo-se à doença interna do México, da América Latina em geral. A doença é destacada pela comparação da América Latina com o Leste Asiático. Segundo medidas objetivas, a América Latina parece ter todas as vantagens sobre a Ásia Oriental: recursos naturais abundantes, ausência de inimigos externos, uma rica cultura intelectual.
Por que então as diferenças radicais no desenvolvimento nos últimos anos? Há meio século, a Coreia do Sul estava ao nível de um país africano pobre. Hoje é uma das principais potências industriais do mundo. Taiwan emergiu de uma dura repressão para se tornar não apenas uma democracia vibrante, mas também o líder mundial na produção de chips de computador que constituem o núcleo da economia moderna. O mesmo se aplica em toda a região – com a notável exceção das Filipinas, o único país que não se libertou do amargo legado da conquista assassina dos EUA há 120 anos.
A América Latina, apesar das suas vantagens, está muito atrás.
O paradoxo foi investigado por ilustres economistas internacionais. Eles identificam uma forma principal pela qual a América Latina está demasiado longe de Deus, metaforicamente falando: as suas elites escaparam ao controlo público e mostram pouca responsabilidade pelos seus países.
Na Ásia Oriental, as importações são bens de capital e o investimento estrangeiro é direcionado pelo planejamento nacional para objetivos de desenvolvimento específicos. Na América Latina, as importações são bens de luxo para os ricos e o investimento destina-se à extração de recursos. Os ricos da América Latina exportam capital livremente. No Leste Asiático, foi proibido e poderá enfrentar penalidades severas. O capital é direcionado para o desenvolvimento econômico. Existem muitas divergências semelhantes.
Embora sejam pinceladas amplas, elas têm, no entanto, uma validade considerável.
No sistema global emergente, a América Latina tem a oportunidade de se libertar da proximidade excessiva dos Estados Unidos. Há movimentos em direção a um sistema mais diversificado de ordem global, em direção a uma espécie de multipolaridade. Durante os dois primeiros mandatos de Lula, o Brasil tornou-se um ator importante no cenário mundial, altamente considerado em grande parte do mundo por suas iniciativas. Há sinais precoces de que este estatuto poderá ser recuperado, juntamente com as iniciativas de cooperação e apoio mútuo entre os países da América Latina: entre eles a UNASUL, mais amplamente a CELAC, a próxima cimeira UE-CELAC, o reforço das relações comerciais e diplomáticas com a China.
Em outras partes do mundo também há indícios de difusão de centros de poder tradicionais. Um exemplo dramático recente é o acordo mediado pela China entre o Irã e a Arábia Saudita, anteriormente inimigos ferrenhos, um acordo que poderá pôr fim à horrível guerra por procuração no Iêmen, uma das maiores catástrofes humanitárias dos últimos anos. É um movimento em direção à paz que afeta a política de longa-data dos EUA, suscitando muita preocupação nos altos escalões.
Internamente na América Latina, os desenvolvimentos recentes oferecem mais uma vez alguma esperança de lidar com as doenças que envenenaram o que deveriam ser sociedades prósperas e prósperas – embora não sem luta dedicada, como o povo do Chile sabe muito bem.
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Chomsky: o esquecido 11 de setembro chileno, incomparavelmente pior que o norte-americano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU