10 Janeiro 2023
Preso em julho do ano passado por crimes de lesa humanidade, Carlos Américo Suzacq “controlava até que ponto poderiam aplicar tortura aos detidos” segundo testemunhas.
A reportagem é de Edu Montesanti, enviada pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O Uruguai exige da Espanha a extradição de Carlos Américo Suzacq Fiser, 72 anos, radicado em Madri, apontado por testemunhas como um dos médicos acusados de colaborar com torturas de presos políticos cometidas durante a ditadura cívico-militar do país sul-americano (1973-1985).
Em 5 de novembro de 2021, o Ministério Público uruguaio havia pedido o indiciamento e a prisão do médico. A Justiça Nacional da Espanha decidirá no dia 11 de janeiro a extradição de Suzacq, quem tem em dupla nacionalidade, preso em julho do ano passado após um mandado de prisão internacional requerido pela Justiça uruguaia por crimes de lesa humanidade.
O médico é particularmente acusado de ter assessorado os repressores nas torturas a que foram submetidos diversos presos políticos. Pesam sobre ele as acusações de responsabilidade por ferimentos graves e privação de liberdade.
A informação foi confirmada à agência EFE por Ricardo Perciballe, procurador uruguaio especializado em crimes contra a humanidade. O procurador garantiu que há depoimentos de 40 vítimas que afirmam que Suzacq “controlava até que ponto poderiam aplicar tortura aos detidos” na chamada Sexta Cavalaria, regimento do Exército que funcionou entre 1972 e 1984 na Zona Norte de Montevidéu, onde os presos da ditadura eram detidos sob responsabilidade do Exército e da Coordenação de Operações Antissubversivas (OCOA).
Neste caso, existe o antecedente de o governo espanhol ter extraditado ao Uruguai o coronel Eduardo Ferro em março do ano passado, também requerido por crimes contra a humanidade no âmbito da Operação Condor, operação regional repressão e desaparecimentos nos anos de 1970 e 1980, apoiada diretamente pelo regime de Washington e especialmente pela CIA que, autora intelectual da Operação Condor, ajudava a monitorar cidadãos e ensinava métodos de tortura aos ditadores da região.
Durante a ditadura cívico-militar que vigorou em território uruguaio desde o golpe de Estado de 27 de junho de 1973, vários partidos e movimentos políticos de esquerda foram proscritos, entre eles o Partido Comunista do Uruguai (PCU) tanto quanto organizações sociais, tais como a Convenção Nacional dos Trabalhadores (CNT).
Paralelamente, foram criadas ou fortalecidas diversas organizações repressivas como a Coordenação de Operações Antissubversivas (OCOA), o Serviço de Informação de Defesa (SID), a Direção Nacional de Informação e Inteligência (DNII), a Empresa de Contrainformação e o Naval Rifle Corps (FUSNA), agências de poder punitivo.
O sistema de vigilância sistemático da sociedade uruguaia escapou às fronteiras nacionais através da Operação Condor, instaurando uma verdadeira “cultura do medo”. Um exemplo disso é o Certificado de Fé democrático que diferenciava a cidadania em três grupos, A, B e C segundo o "grau de periculosidade" necessário para efetuar qualquer trâmite entre os cidadãos, tal como uma simples obtenção de Carta de Motorista. O grau C autoriza inclusive a detenção imediata por parte das autoridades (Investigación sobre la dictadura y el terrorismo de Estado en el Uruguay (1973-1985), Montevideo, FHCE- CSIC, 2008, Tomo I).
Segundo dados oficiais do governo uruguaio, "no âmbito das ações ilegítimas do Estado incluídas no período 1968-1985, o número confirmado até esta data é de 192 pessoas detidas e desaparecidas", e levou ao exílio cerca de 380 mil pessoas, quase 14% da população total do país.
Luis Eduardo González, membro do Partido Comunista Revolucionário (PCR) e estudante de Medicina, foi arbitrariamente detido e levado, em dezembro de 1974 quando foi visto pela última vez em estado físico muito deteriorado, ao centro de detenção clandestino “Inferno Grande” da capital uruguaia.
Elena Zaffaroni, esposa de González e hoje membro das Mães e Familiares de Uruguaios Presos e Desaparecidos, conta que no final de 1974, enquanto estava grávida, foi detida junto do esposo enquanto dormiam, e depois foram levados ao centro onde, durante exames médicos, outra vítima reconheceu a Suzaq, amigo de uma de suas irmãs.
“O papel de Suzacq era, por exemplo, reanimar os presos que sofriam parada cardíaca durante a tortura”, diz Zaffaroni, que presenciou a tortura do cônjuge no regimento onde o médico atuava.
Após a notícia da prisão e possivel extradição de Suzacq, a integrante do movimento por direitos humanos que reúne familiares dos 192 desaparecidos da ditadura da República Oriental destacou que "é muito importante que os envolvidos venham testemunhar no Uruguai, a fim de resolver todas as questões que ficaram pendentes".
Em 30 de novembro de 1980, o governo da ditadura militar uruguaia realizou um plebiscito com o fim de aprovar uma nova Constituição que institucionalizasse a intervenção militar no governo. Inesperadamente, o resultado foi a vitória do “não” com 946.176 votos (57%), diante de 707.118 votos (43%) a favor do “sim”.
Em agosto de 1984 houve o Pacto do Clube Naval, que envolveu a aceitação por parte dos militares em se promover uma transição à democracia, o que jamais significou deixar de punir os criminosos ex-ditadores apesar da Lei de Anistia de 1986.
Assim, o caminho estava pavimentado para, em 1º de março de 1985, terminar com o maior pesadelo da República uruguaia "por um Uruguai sem exclusões – por liberdade, democracia e trabalho”, enquanto o lema do movimento dos familiares de vítimas desde então é "Verdade, Justiça, Memória e Nunca Mais".
Conscientes do que acarreta a uma nação a política de silêncio do Estado, o discurso dos familiares das vítimas e demais ativistas uruguaios por justiça contra os ex-ditadores tende a abordar as vítimas de maneira direta e contundente, com o intuito de se distanciar da tentativa de se tratar as consequências humanas da repressão como algo normal.
O primeiro dos ditadores, Juan María Bordaberry (1973-1976), foi condenado em fevereiro de 2010 a 30 anos de cadeia por vários crimes, incluindo o homicídio de duas pessoas desaparecidas cujos restos mortais que haviam sido encontrados alguns anos antes.
Com então 81 anos de idade, Bordaberry foi acusado também de atentado à Constituição por ter dissolvido o Congresso em junho de 1973, além de outros nove crimes de desaparecimento forçado e dois homicídios especialmente agravados, ambos como co-autor.
Em outubro de 2010 o último ditador militar do país, Gregorio 'Goyo' Alvarez (1981-1985) foi condenado a 25 anos de prisão por "homicídio especialmente agravado" de 37 opositores e por crime contra a humanidade. Alvarez havia sido preso em 2007, acusado de "repetidos crimes de desaparecimento forçado" e transferências clandestinas de detidos da Argentina ao Uruguai durante a ditadura uruguaia.
Uma dezena de ex-soldados e policiais uruguaios estão presos, acusados de homicídios e desaparecimentos durante a ditadura, apesar da Lei de Anistia que proíbe julgamentos contra eles.
Em junho de 2021 o Peñarol, ao lado do Nacional maior clube de futebol do Uruguai, expulsou de sua lista de integrantes José Nino Gavazzo e Manuel Cordero, dois dos militares mais atuantes nos anos de ditadura. Após uma campanha da torcida do clube iniciada em abril daquele ano, ambos os militares da reserva perderam o título de sócios vitalícios.
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Uruguai exige extradição de médico torturador foragido na Espanha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU