05 Setembro 2023
Com os partidos banidos, o Congresso fechado e a imprensa silenciada, a Igreja do Chile foi o refúgio dos perseguidos.
A reportagem é de Javier M. González e Gabriela Máximo, publicada por Nueva Tribuna, 31-08-2023. A tradução é do Cepat.
Javier M. González é correspondente da RNE na América Latina e Alemanha. Cobriu informações sobre o Chile desde a transição até a morte de Pinochet. Gabriela Máximo é jornalista brasileira de política internacional. Cobriu diversos eventos na América Latina e na África para o Jornal do Brasil e O Globo.
“Obrigado, Senhor, finalmente ouviu nossas orações”. Esta foi a reação de Lucía Hiriart de Pinochet, esposa do ditador chileno, em 1983, quando o Vaticano anunciou quem substituiria o cardeal Raúl Silva Henríquez, que completava 75 anos. O novo arcebispo de Santiago seria dom Juan Francisco Fresno que, “junto com seu prestígio de homem santo, tinha fama de conservador”, segundo a expressão do líder democrata-cristão Patricio Aylwin.
Mas a esposa de Pinochet estava equivocada. Na verdade, Fresno tinha um perfil mais conservador do que Silva Henríquez – tinha sido um dos poucos bispos que parabenizou o ditador após o golpe e era próximo do núncio Angelo Sodano, que tinha uma relação estreita com Pinochet. No entanto, a chegada de Fresno, que a princípio preocupou os próprios membros do Vicariato da Solidariedade, não significou um retrocesso na posição da Igreja contra a ditadura.
O novo cardeal tomou posse em 3 de maio de 1983. Uma semana depois houve o primeiro grande protesto contra a ditadura, que foi violentamente reprimido. Fresno tomou distância do regime. Foi à sede do Vicariato da Solidariedade – uma organização eclesial criada em 1976 para proteger os perseguidos pela ditadura – e disse: “Quero parabenizá-los pelo trabalho que fazem, isso tem que continuar”. Com o Congresso fechado, os partidos e sindicatos banidos, a imprensa independente silenciada e qualquer sinal de oposição perseguido, a Igreja e o Vicariato tornaram-se um bastião na defesa dos direitos humanos e o único ator de oposição ao regime.
A atuação da Igreja chilena após a derrubada de Allende contrasta com o papel desempenhado pela mesma instituição na Argentina, após o golpe de 1976. Ali houve alguns prelados que levantaram a voz contra a repressão, houve até um bispo assassinado – dom Enrique Angelelli, de La Rioja –, mas a cumplicidade prevaleceu. Não foi o que aconteceu no Chile.
Dois dias depois do golpe, quando os militares caçavam implacavelmente os opositores, a Comissão Permanente do Episcopado declarou: “O sangue que avermelhou as nossas ruas, as nossas cidades e as nossas fábricas dói imensamente em nós e nos oprime, sangue de civis e de soldados, e as lágrimas de tantas mulheres e crianças. Pedimos respeito aos que tombaram na luta e, antes de tudo, àquele que até o 11 de setembro foi o Presidente da República. Pedimos moderação diante dos vencidos. Que não haja represálias desnecessárias e tenhamos em conta o idealismo sincero que inspirou muitos dos que foram derrotados. Que acabe o ódio, que chegue a hora da reconciliação”.
Não havia passado nem um mês desde o golpe quando foi fundado o Comitê de Cooperação para a Paz, uma organização ecumênica formada pelo cardeal Silva Henríquez e o bispo luterano Helmut Frenz, com a participação de Igrejas Protestantes e um representante da comunidade judaica. O Comitê pretendia fornecer apoio financeiro, espiritual e jurídico a todos os chilenos que dele necessitassem, especialmente aos militantes de esquerda caçados pelas forças da repressão. Era integrado por médicos, assistentes sociais e advogados de todo o país. Também ajudou cerca de 5.000 estrangeiros, geralmente latino-americanos de esquerda que se refugiaram no Chile e apoiaram o governo Allende, a deixarem o país.
Em abril de 1974, o então chefe da DINA (Diretoria de Inteligência Nacional), coronel Manuel Contreras, visitou o cardeal Silva Henríquez para fazer-lhe uma ameaça velada: “Cardeal, sabemos que muitos loucos estão à solta, tememos que algo possa acontecer a você. Seria bom que se cuidasse”.
O Comitê de Cooperação para a Paz foi dissolvido em 1975, depois de Pinochet ter ameaçado fechá-lo à sua maneira. O fechamento ocorreu após um confronto entre agentes da DINA e o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), no qual os miristas sobreviventes se refugiaram em diversas paróquias e na Nunciatura Apostólica. Mas a Igreja não se renderia ao regime.
A dissolução oficial do Comitê de Cooperação para a Paz ocorreu em 31 de dezembro. Vinte e quatro horas depois nasceu o Vicariato da Solidariedade. Com recursos do Conselho Mundial de Igrejas, de outras conferências episcopais e de fundações da Alemanha, do Reino Unido, dos Países Baixos e da Bélgica, tornou-se o principal instrumento de denúncia de violações dos direitos humanos. Funcionava no segundo e terceiro andares do Palácio Episcopal, situado junto à catedral de Santiago, na central Plaza de Armas e abrigava o Grupo de Familiares dos Detidos e Desaparecidos.
Quando o Vicariato foi criado, Pinochet convocou o cardeal Silva Henríquez, a quem detestava. No livro A história oculta do regime militar os jornalistas Ascanio Cavallo, Manuel Salazar-Salvo e Óscar Sepúlveda Pacheco reproduzem a conversa: “Então, vamos recomeçar com a mesma coisa! Parece que a Igreja não quer entender, ouvir?”, disparou Pinochet. Destemido e elevando a voz, o cardeal respondeu: “Vocês não podem impedir o Vicariato. E se tentarem fazer isso, colocarei os refugiados debaixo da minha cama, se for necessário!”
Até o final da ditadura, o Vicariato ajudou em média 90 mil pessoas por ano. Destas, cerca de 11.000 receberam assistência jurídica. Todos os anos apresentava queixas por violações da Constituição perante o Tribunal Constitucional, mas das mais de 9.000 queixas, o tribunal se dignou a aceitar apenas 23.
Tão importante quanto o seu trabalho de defesa dos perseguidos, foi sua minuciosa tarefa de registar todas as denúncias, que incluía num relatório mensal, que ajudavam organizações como a ONU e a OEA ou organizações de defesa dos direitos humanos nas suas denúncias contra o regime. E uma vez por ano submetia um relatório de situação ao Judiciário, que nunca reagia.
A ditadura infiltrou o agente da DINA, Alberto Palacio González, no Comitê de Cooperação para a Paz e posteriormente no Vicariato da Solidariedade. O agente elaborou listas de 37 “padres marxistas”, incluindo dois padres espanhóis, Joan Alsina – assassinado em 20 de setembro de 1973 – e Antonio Llidó – que desapareceu em outubro de 1974 e que foi acusado de ser militante do MIR. Houve também operações sistemáticas de propaganda contra o Vicariato, o que levou a Igreja (em maio de 1980) a publicar uma carta, Yo soy Jesús, a quien tu persigues (Eu sou Jesus, a quem tu persegues), denunciando as ameaças dos organismos de repressão.
Dois acontecimentos marcaram a relação da Igreja com o governo Pinochet. Em dezembro de 1978, após receber uma denúncia, o Vicariato anunciou a descoberta de 15 corpos em alguns fornos de cal abandonados na cidade de Lonquén, a 50 quilômetros de Santiago. Tratava-se de 15 camponeses que foram presos em 7 de outubro de 1973 por uma patrulha policial. Esta descoberta foi essencial para estabelecer, pela primeira vez, a existência de presos e desaparecidos. O governo negou consistentemente que os desaparecidos tivessem alguma vez sido detidos pelos serviços de segurança. A Igreja provou o contrário.
O segundo acontecimento marcante ocorreu em 29 de março de 1985, quando foram assassinados José Manuel Parada, Manuel Guerrero Cevallos e Santiago Nattino, ligados ao Partido Comunista, cujos corpos foram encontrados com a garganta cortada. Parada era chefe do departamento de análise do Vicariato da Solidariedade e tinha em mãos a confissão do desertor da Força Aérea Andrés Valenzuela, que havia declarado à jornalista Mónica González sobre inúmeras operações dos serviços de segurança, incluindo a existência de um Comando Conjunto paralelo e competitivo da DINA.
Se nos primeiros anos a Igreja se concentrou na defesa dos perseguidos, por volta de 1982 tomou iniciativas políticas buscando a redemocratização do país. Publicou uma carta pastoral intitulada El Renacer de Chile, onde, pela primeira vez, exige abertamente o retorno à democracia. “Esgotados os esforços privados e temendo que os acontecimentos se precipitem em caminhos de violência, é urgente que digamos uma palavra de alerta e de esperança”, afirmaram. Depois de descrever a situação econômica, social e institucional do país, a Igreja propôs uma saída com três condições fundamentais: o respeito pela dignidade humana, o reconhecimento do valor do trabalho e o retorno à plena democracia.
Em agosto de 1983, quando começaram os protestos populares contra o regime, a Igreja tomou outra medida. O novo ministro do Interior, Sergio Onofre Jarpa, que acabava de tomar posse, apresentou os seus planos políticos ao cardeal Fresno com um ar de abertura. O cardeal perguntou se estaria disposto a conversar com a Aliança Democrática, a coligação de partidos da oposição formada pouco antes. “Claro, isso seria o ideal”, respondeu Jarpa. Dias depois, a Aliança aprovou o documento Bases do diálogo para um grande acordo nacional, que seria entregue a Jarpa. Haveria três reuniões da oposição com o ministro. Não houve acordo, uma vez que Pinochet não estava disposto a fazer concessões, mas estas reuniões marcaram um marco no caminho para a democracia.
A visita do Papa João Paulo II ao Chile em 1987 foi um momento de disputa entre o regime e a Igreja local, que tentou impedir que o governo tirasse vantagens políticas da viagem. Quase dois milhões de pessoas participaram dos diversos atos do Papa, a maior mobilização popular que o Chile viveu desde a era Allende. Forçando o protocolo e o acordo, Pinochet levou o Papa à varanda do Palácio La Moneda. Mas a Igreja conseguiu que o pontífice desse sinais claros do seu apoio ao trabalho dos seus representantes no Chile.
Numa das missas, João Paulo II leu um texto segurando nas mãos a Bíblia que pertenceu ao padre André Jarlan. O padre foi assassinado em 1984, num dos protestos reprimidos com violência pelo regime, quando rezava com a mesma Bíblia. O Papa também visitou a jovem Carmen Gloria Quintana, que teve parte do corpo queimada pelos militares em outro protesto, em 1986. E se reuniu com representantes dos partidos políticos.
No Estádio Nacional, na mensagem aos jovens, referiu-se ao local como “um local de competições, mas também de dores e sofrimentos do passado”. E na sede da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina – sublinhou: “Os pobres não podem esperar. Aqueles que nada têm não podem esperar por um alívio que lhes chega através de uma espécie de transbordamento da prosperidade geral da sociedade”. No final, o pontífice falou das graves violações dos direitos humanos e criticou a política econômica ultraliberal dos Chicago Boys.
Em novembro de 1992, já em democracia, uma cerimônia na catedral serviu para fazer a despedida oficial do Vicariato da Solidariedade. Estiveram presentes muitos líderes políticos e sociais, bem como representantes de organizações de direitos humanos. No meio da homilia, o cardeal Silva Henríquez, já com 92 anos e aposentado 17 anos antes, entrou no templo de forma tímida e quase sub-reptícia. Ao notar sua presença e diante de um idoso que não gostava de homenagens, irromperam aplausos e vivas, em reconhecimento ao homem que passou para a história do Chile como o mais ardoroso defensor da vida e da liberdade chilena.
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Chile, Igreja e ditadura. Cardeal Silva Henríquez: “Vou colocar os refugiados debaixo da minha cama” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU