Joana Salém Vasconcelos, Sílvia Cezar Miskulin e Frei Betto analisam as manifestações que ocorreram em Cuba desde o dia 11 de julho deste ano à luz da Revolução e do socialismo cubano
As manifestações que tomaram as ruas de Cuba no dia 11 de julho deste ano dividem opiniões. Se, de um lado, há um consenso de que os manifestantes estão "desgastados com a crise econômica e a escassez de bens cotidianos", de outro lado, "alguns manifestantes foram às ruas porque são contrarrevolucionários e querem derrubar o governo", menciona a historiadora Joana Salém Vasconcelos. Segundo ela, não é possível "medir matematicamente cada um dos tipos de manifestantes" e, apesar das reivindicações, "a população cubana demonstrou que o Partido Comunista está longe de perder sua maioria social e sua hegemonia política".
Para Frei Betto, que frequentemente visita a ilha, as manifestações evidenciam que "Cuba enfrenta, no momento, uma conjuntura muito difícil" em função da crise econômica e sanitária e, portanto, "a insatisfação de uma parcela da população" é "normal". "A meu ver o socialismo cubano é muito sólido, e enfrenta a atual crise com o mesmo otimismo e determinação que enfrentou, no passado, outros episódios adversos, como a mercenária invasão da Baía dos Porcos, em 1961, financiada pelo governo Kennedy e derrotada pelos cubanos, e as manifestações de 1994, durante o Período Especial, quando o país enfrentou escassez provocada pela implosão da União Soviética", afirma.
Ao comentar a situação do país, a historiadora Sílvia Cezar Miskulin pontua que "o futuro de Cuba é incerto e imprevisível, depende muito das condições gerais e da duração da pandemia mundial, dos desdobramentos da crise econômica mundial e da crise em Cuba. Depende também das respostas do governo cubano e do governo dos Estados Unidos neste contexto, além de quanto as insatisfações e demandas da maioria da população cubana serão ou não canalizadas e atendidas pelo governo".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, os entrevistados refletem sobre as manifestações, comentam o peso do embargo americano na ilha, o desempenho de Cuba frente à pandemia de Covid-19 e as perspectivas de futuro.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é frade dominicano, jornalista graduado, escritor e uma das referências da Teologia da Libertação no Brasil. Entre seus livros publicados, destacamos Por uma educação crítica e participativa (Rocco).
Joana Salém Vasconcelos é doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo - USP. Autora do livro História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo no século XXI (São Paulo: Alameda, 2017) e coorganizadora de Cuba no século XXI: dilemas da revolução (São Paulo: Editora Elefante, 2019).
Sílvia Cezar Miskulin é professora de História na Universidade de Mogi das Cruzes, com doutorado e pós-doutorado em História pela Universidade de São Paulo - USP. Publicou Os intelectuais cubanos e a política cultural da Revolução (Alameda/Fapesp, 2009) e Cultura ilhada: imprensa e Revolução Cubana (Xamã/Fapesp, 2003).
IHU – Como avalia as recentes manifestações em Cuba?
Joana Salém Vasconcelos – As manifestações do dia 11 de julho em Cuba misturaram diferentes tipos de participantes. Os relatos internos dão conta de que havia contrarrevolucionários financiados pelos EUA para criar agitação golpista (identificados com a hashtag SOS Cuba e a consigna Patria y Vida). Mas nem todos tinham esse exato perfil. Alguns manifestantes expressaram insatisfação com a falta de eletricidade e com as dificuldades econômicas da ilha.
Joana Vasconcelos (Foto: Arquivo pessoal)
Em San Antonio de los Baños e Palma Soriano, cidades que registraram os primeiros protestos do dia 11/07, faltava energia há uma semana (segundo o historiador cubano Ernesto Limia) e esse foi o estopim. As notícias falam de 3 a 5 mil pessoas em Havana e grupos de centenas ou dezenas em outras 14 cidades. Na soma, é um número relativamente pequeno de manifestantes, embora para os padrões cubanos seja alto.
No mesmo dia, Díaz-Canel foi a San Antonio de Los Baños conversar com manifestantes e o governo convocou a população a seu favor. Algumas cidades registraram uma resposta massiva de apoio ao governo. No sábado seguinte, 17 de julho, novos atos massivos favoráveis à revolução foram convocados. Por um lado, a população cubana demonstrou que o Partido Comunista está longe de perder sua maioria social e sua hegemonia política. Por outro, o presidente cubano reconheceu que nem todos os manifestantes eram “mercenários”, que alguns eram, nas suas palavras, “revolucionários confundidos” e reforçou a explicação das medidas para atenuar a crise energética.
Frei Betto – Cuba enfrenta, no momento, uma conjuntura muito difícil. Além do criminoso e genocida bloqueio imposto pela Casa Branca, acrescido das 243 novas medidas de arrocho adotadas por Trump e, ainda, não revogadas por Biden, há o declínio da atividade econômica provocado pela pandemia, já que o turismo era uma das principais fontes de renda do país, e a unificação das moedas, que trouxe aumento da inflação.
Frei Betto (Foto: MST)
Assim, considero normal a insatisfação de uma parcela da população, devido sobretudo à escassez de certos produtos da dieta alimentar cubana. O presidente de Cuba, Díaz-Canel, foi às ruas dialogar com os manifestantes e reconheceu que suas demandas são justas. No entanto, repudiou aqueles que, movidos pela contrarrevolução sediada em Miami, querem desestabilizar o país, pois temem que Biden adote a mesma política de Obama de flexibilização do bloqueio.
Sílvia Cezar Miskulin - As manifestações populares de 11 de julho em Cuba ocorreram simultaneamente em diversas cidades da ilha. Tiveram a adesão de jovens e amplos setores da população, que demandavam alimentos e medicamentos, mas também reivindicavam liberdade e faziam críticas ao governo de Miguel Díaz-Canel. As manifestações surpreenderam, pois desde 1994, no Período Especial, não havia algo semelhante em Cuba.
Sílvia Cezar Miskulin (Foto: Arquivo pessoal)
IHU – O que levou os manifestantes às ruas? Pode-se afirmar que a Revolução Cubana, ou o socialismo cubano, chegou ao limite?
Joana Salém Vasconcelos – Alguns manifestantes foram às ruas porque são contrarrevolucionários e querem derrubar o governo. Outros porque estão desgastados com a crise econômica e a escassez de bens cotidianos, demandam soluções emergenciais e nas ruas encontraram uma forma de expressão. Não creio que seja possível medir matematicamente cada um dos tipos de manifestantes.
A situação conflitiva evidenciou que a revolução cubana está viva, que o apoio popular ao governo Díaz-Canel ainda é forte, apesar das dificuldades. Sempre existiram cubanos contrários à revolução, mas tais acontecimentos parecem indicar que estes são minoritários – inclusive porque parte dos manifestantes não quer derrubar o governo, quer soluções aos problemas cotidianos.
É importante lembrar que em 24 de fevereiro de 2019, 86% dos cubanos votaram “sim” para a nova constituição do país, que declara que “Cuba é um Estado socialista de direito, democrático, independente e soberano” e que “a defesa da pátria socialista é a maior honra e dever supremo de cada cubano”. Além de ser bloqueado pelos Estados Unidos, o sistema cubano é um “socialismo dependente”. Ou seja, sofre com escassez de divisas, vulnerabilidade externa, concentra seus ganhos no setor primário (agrominerador) e terciário (turismo e diplomacia médica), e ainda assim consegue manter um índice de Gini bem mais igualitário que a média latino-americana (Cuba tem Gini 0,38 e a América Latina 0,47, segundo a Cepal).
O Estado controla os recursos estratégicos, a indústria biomédica, a mineração e continua sendo insubstituível como comprador de primeira instância dos produtos agrícolas dos camponeses em cooperativas. Em Cuba, saúde, educação, previdência e seguridade social continuam asseguradas pelo Estado, blindadas contra qualquer privatização. Portanto, apesar da crise e do crescimento do setor privado na última década, podemos dizer que o sistema cubano ainda representa o “socialismo real” em nosso continente.
Frei Betto – A meu ver o socialismo cubano é muito sólido, e enfrenta a atual crise com o mesmo otimismo e determinação que enfrentou, no passado, outros episódios adversos, como a mercenária invasão da Baía dos Porcos, em 1961, financiada pelo governo Kennedy e derrotada pelos cubanos, e as manifestações de 1994, durante o Período Especial, quando o país enfrentou escassez provocada pela implosão da União Soviética. A resiliência da Revolução decorre no majoritário apoio popular a ela.
Sílvia Cezar Miskulin - Os manifestantes foram às ruas em um grave momento de crise econômica, social e sanitária, graças ao agravamento da pandemia de Covid-19 na ilha justamente neste período. O turismo internacional foi enormemente prejudicado devido à pandemia, agravando a crise econômica cubana. Outro fator importante foi a suspensão dos envios das remessas de dinheiro de familiares cubanos nos Estados Unidos para seus parentes em Cuba, vigente desde a época do governo Trump. Além do histórico embargo econômico, que dificulta em muito as transações comerciais, econômicas e financeiras com Cuba.
Com a escassez de divisas, o governo cubano fez a unificação monetária em dezembro de 2020, com a Tarea Ordenamiento, o que gerou inflação e maiores desigualdades. A população cubana está sofrendo com a falta de abastecimento de produtos alimentícios, de higiene e medicamentos, além dos apagões elétricos que têm ocorrido em algumas regiões do país. O descontentamento social ficou evidente nestas manifestações e o governo cubano se viu diante de novos desafios.
IHU – Como interpreta a crise que Cuba atravessa e a reação do presidente cubano, Díaz-Canel, sobre as manifestações, a partir da declaração dele: "Há uma minoria de contrarrevolucionários que tentou dirigir essas manifestações. Mas aqui temos pessoas insatisfeitas, com incompreensões, com desejo de expressar algum problema"?
Joana Salém Vasconcelos – Díaz-Canel alternou entre uma posição mais beligerante, considerando os manifestantes como contrarrevolucionários e convocando uma contramarcha, e outra postura mais dialógica, admitindo que muitos manifestantes eram cubanos insatisfeitos, não golpistas.
A crise cubana tem muitas camadas e temporalidades. O primeiro causador da crise é o bloqueio econômico dos EUA, que já dura 60 anos. Em segundo, vem a crise da Venezuela, que desde 2012 tem tornado a importação de combustível mais difícil. O comércio de Cuba com a Venezuela decaiu de 40% em 2010 para 17% em 2019. Em terceiro, a pandemia eliminou o turismo, fazendo o PIB cubano cair 11% em 2020. Uma quarta camada é a Tarea Ordenamiento, a política de reunificação monetária que impactou o dia a dia de consumo de itens básicos dos cubanos, agudizando todas as camadas anteriores.
Frei Betto – Sim, viver num país socialista é como viver nessas microssociedades socialistas chamadas conventos e mosteiros, como vivo. Há que pensar, primeiro, na coletividade. O que não é fácil. Então é normal que haja quem coloque seus interesses individuais acima dos comunitários. E aí é que, no caso de Cuba, age a contrarrevolução financiada desde os EUA, cujas empresas e milionários que perderam seus bens com o êxito da Revolução não se conformam até hoje.
Sílvia Cezar Miskulin - A resposta do presidente Díaz-Canel foi a de rotular todos os manifestantes de contrarrevolucionários e proclamar que as ruas pertenciam aos revolucionários, o que levou à repressão com violência das manifestações. Em Havana, houve muita repressão com os grupos das Brigadas rápidas e com agentes da Segurança do Estado em geral à paisana, atuando com bastões e efetuando centenas de prisões. Foi registrado, até o momento, um homem morto na região de Havana.
IHU – Quais são os impactos da reforma econômica, mais precisamente da Tarefa Ordenamento, na vida social e econômica dos cubanos?
Joana Salém Vasconcelos – A Tarea Ordenamiento tem como objetivo a reunificação das duas moedas cubanas em uma única, o peso cubano. A moeda convertível (divisa), pelo ordenamento aprovado em dezembro de 2020, deveria ter sido encerrada em 01 de julho. O problema é que a economia cubana se tornou dependente dessa moeda, pois muitos itens da economia cotidiana são importados. Então o governo percebeu que não seria possível acabar com a moeda forte tão rápido e criou uma estratégia de transição mais diluída, com uma unidade de valor em cartão chamada “Moeda Livremente Convertível” - MLC.
Uma das coisas que chamam atenção nos protestos de 11 de julho foi a depredação e saqueio de algumas Tiendas MLC, mostrando certa raiva contra esse lugar que tem representado a desigualdade entre cubanos. Os cubanos que conseguem obter MLC são os mesmos que conseguiam obter o CUC (moeda forte que perdurou de 1994 até 2021). Existe um impasse sobre como transitar para uma economia de moeda única em situação de escassez e ao mesmo tempo impedir uma inflação descontrolada e uma dolarização ilegal de importações contrabandeadas. A situação ainda está indefinida.
Outros objetivos da Tarea Ordenamiento são corrigir a falta de estímulos à produtividade decorrente dos diferenciais cambiais internos; reduzir desigualdades sociais entre os cubanos que acessam e os que não acessam as divisas; reestruturar os subsídios tarifários do Estado às pessoas e reformar a renda geral da sociedade. É uma grande operação de reforma monetária, cuja complexidade exige muita competência técnica e certa paciência popular.
Frei Betto – Cuba tinha duas moedas, o CUC, utilizado pelos turistas, e o peso, utilizado pela população. 1 CUC valia 24 pesos. Agora, com a unificação das moedas, há um surto inflacionário, como ocorreu na Europa ao unificar inúmeras moedas em torno do euro. E isso, agravado pela pandemia, e considerando que Cuba importa mais de 60% dos alimentos que consome, traz muitas dificuldades, sobretudo levando em conta as dificuldades que o bloqueio impõe às importações e exportações de Cuba.
Sílvia Cezar Miskulin - A Tarefa Ordenamento foi decretada pelo governo em dezembro de 2020, quando ocorreu a unificação monetária em torno dos pesos cubanos, eliminou-se os CUCs (pesos conversíveis), e criou-se temporariamente a MLC (Moneda Libremente Covertible), usada apenas como cartão.
O governo também aumentou os salários em cinco vezes, aumentou tarifas e eliminou subsídios a diversos produtos. Os impactos foram sentidos na inflação, no desabastecimento e dificuldades de aquisição de produtos básicos, além do aumento do mercado paralelo e da desigualdade social.
IHU – Como avalia o desempenho de Cuba durante a crise pandêmica, que desenvolveu suas próprias vacinas contra a Covid-19?
Joana Salém Vasconcelos – Cuba foi sem dúvida o país exemplar na crise sanitária da Covid, não apenas para a América Latina, mas para todo o mundo. Está entre os países com menores taxas de mortalidade por habitante: aproximadamente uma morte por Covid a cada 7 mil cubanos. O Brasil tem uma morte por Covid a cada 330 habitantes; os EUA, uma morte a cada 500 habitantes; o Canadá, uma morte a cada 1.400 habitantes; a Bélgica, uma morte a cada 2.800 habitantes. Ou seja, Cuba conteve a pandemia melhor que a maior parte dos países mundialmente. Fez isso com isolamento social, redução brusca do turismo e um sistema de saúde pública universal, que não é o mais tecnologicamente moderno, mas é sim um dos mais igualitários e enraizados nos territórios.
O mundo tem muito o que aprender com o caráter humanitário do socialismo cubano. Por isso, é uma piada de mau gosto que Biden mencione uma “intervenção humanitária” em Cuba. Pelos dados sociais e sanitários da realidade, Cuba que deveria fazer uma intervenção humanitária nos Estados Unidos. Os estadunidenses convivem com três Cubas inteiras passando fome dentro de seu país.
Frei Betto – Cuba é o único país latino-americano que conseguiu, devido ao seu avanço científico, criar duas vacinas contra a Covid-19: a Soberana 2 e a Abdala, nome de um romance de José Martí no qual o jovem Abdala vai para a guerra defender sua pátria. A Abdala tem 92,28% de eficácia e exige três doses. Até agosto, 70% dos 11 milhões de habitantes da Ilha devem estar vacinados. Os EUA registram 1.724 mortes por milhão de habitantes e Cuba, 47 mortes.
Sílvia Cezar Miskulin - O desempenho de Cuba durante a pandemia estava mais controlado ao longo do ano de 2020. Mas, com a tentativa de abertura da ilha para o turismo, houve a entrada de novas variantes. Nos meses de junho e julho de 2021 a pandemia saiu de controle, sobretudo na região de Matanzas, e houve grande aumento no número de casos e de mortes, tendo um recorde de 47 mortes em um só dia. As notícias de esperança são o desenvolvimento de vacinas totalmente cubanas, como a Abdala e a Soberana 2, que foram aprovadas e atingiram alta eficácia contra a Covid-19.
IHU – Qual é o peso do embargo econômico norte-americano no país?
Joana Salém Vasconcelos – Segundo o governo da ilha, em 60 anos o bloqueio estadunidense contra Cuba representou um prejuízo de 933 bilhões de dólares aos cubanos. O bloqueio foi atenuado na administração Obama, não porque o presidente estadunidense fosse mais tolerante com a soberania da ilha, mas sim porque diagnosticava o fracasso da estratégia de sanções e calculava uma penetração mais efetiva da lógica capitalista por meio de uma tática alternativa (que alguns chamam de soft power).
Mas com Trump, desde 2017 houve muitos retrocessos: o governo cubano menciona 243 medidas de Trump para acirrar o bloqueio, entre elas o retorno da ilha ao grupo de países considerados terroristas e a inviabilização de envio de remessas de dólares dos cubanos que vivem nos EUA para suas famílias em Cuba. Outra observação importante é que hoje o bloqueio impacta mais o nível das empresas do que o nível dos países, como era antigamente. Muitas empresas de bens de capital e medicamentos são chantageadas pelo governo estadunidense a não negociar com Cuba sob o risco de perderem seus mercados maiores nos EUA. Segundo os dados do governo cubano, hoje Cuba comercializa com mais de 40 países na Europa, mais de 35 países nas Américas, mais de 15 países asiáticos e mais de 12 países africanos. O problema é o tipo específico de empresas que acata o bloqueio e impede o acesso de Cuba a certas tecnologias insubstituíveis.
Frei Betto – Cuba perdeu 5 bilhões de dólares em comércio potencial entre abril de 2019 e março de 2020, devido ao bloqueio. Este causou um prejuízo ao país, nas últimas seis décadas, de 144 bilhões de dólares. No entanto, Cuba resiste!
Sílvia Cezar Miskulin - O embargo econômico vigente desde 1962 tem um peso econômico enorme, pois impede a entrada de capitais e de produtos de empresas que mantenham relações econômicas com os Estados Unidos. O embargo tem dificultado as transações comerciais e a aquisição pela ilha desde produtos básicos como petróleo, alimentos, remédios, seringas, insumos médicos e farmacêuticos, além de outros tipos de produtos industrializados. O embargo econômico a Cuba é todo ano rechaçado na Assembleia da ONU, mas só poderá ser revogado com uma votação no Congresso dos Estados Unidos.
IHU – Com Biden à frente da presidência dos EUA, o que é possível esperar acerca das relações EUA e Cuba?
Joana Salém Vasconcelos – Passaram-se sete meses desde sua posse e Biden ainda não revogou as medidas de Trump contra Cuba. Sua tradição ideológica é a mesma de Bill Clinton, que sancionou as leis Torricelli (1992) e Helms Burton (1996), que apertaram o bloqueio depois da queda da URSS. Ver Biden falar em “intervenção humanitária” é suficiente para sabermos que não se deve esperar mudanças em relação a Trump.
Frei Betto – Espero que Biden suspenda o bloqueio ou que, ao menos, adote a mesma política de Obama, que reatou as relações diplomáticas entre os dois países e favoreceu o incremento do turismo e do comércio.
Sílvia Cezar Miskulin - Enquanto Biden foi vice do presidente Obama, houve uma reaproximação entre os dois países. Obama visitou Cuba, restabeleceu as relações diplomáticas, as possibilidades de viagens e de envio de remessas à ilha. Espera-se que, com Biden na presidência, Cuba seja retirada da lista de países terroristas e as relações sejam restabelecidas novamente.
IHU – Que futuro próximo vislumbra para Cuba?
Joana Salém Vasconcelos – Entre junho e julho, Cuba vacinou 63% de sua população com ao menos uma dose de Abdala, sua vacina nacional de três doses. Acredito que até o fim de 2021, todos os cubanos estarão vacinados e o turismo em 2022 poderá retornar com mais intensidade, melhorando paulatinamente a situação econômica. Eventualmente, Cuba poderá exportar vacinas e com isso melhorar sua balança comercial.
A situação crítica é estrutural, não se resolverá de uma hora para outra, mas o caminho da solução dos problemas está sendo construído pelo governo. Seria interessante que, antes disso, algo fosse feito para aliviar as dificuldades imediatas. Considero importante, ademais, que se criem novos mecanismos de diálogo entre Estado e sociedade, especialmente atentos à juventude, para com isso minimizar situações conflitivas como ocorrido em 11 de julho, ampliar a base de apoio do governo e isolar grupos golpistas.
Frei Betto – Depende da conjuntura. Se a pandemia cessar, a economia cubana se revitalizará graças ao fluxo turístico. Se o bloqueio for suspenso ou ao menos flexibilizado, também influirá na melhoria das condições de vida da população. Mas, apesar de tudo, espero que o futuro de Cuba não seja o presente do Brasil, de Honduras, da Guatemala etc.
Sílvia Cezar Miskulin - O futuro de Cuba é incerto e imprevisível, depende muito das condições gerais e da duração da pandemia mundial, dos desdobramentos da crise econômica mundial e da crise em Cuba. Depende também das respostas do governo cubano e do governo dos Estados Unidos neste contexto, além de quanto as insatisfações e demandas da maioria da população cubana serão ou não canalizadas e atendidas pelo governo.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Frei Betto – É mais fácil encontrar o papa em Havana do que em Roma... Isso porque nenhum país de nosso Continente mereceu tantas visitas papais como Cuba, visitada, em período de tempo relativamente curto, por João Paulo II, Bento XVI e, duas vezes, por Francisco. Todos os três condenaram o bloqueio imposto pela Casa Branca. E, na ONU, todos os países, agora em 2021, também condenaram o bloqueio, com exceção dos EUA e de Israel e três abstenções, entre as quais o Brasil.