Cuba e o tabu das esquerdas

Bandeira de Cuba (Fonte: Pixabay)

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20 Julho 2021

 

“Trata-se de acompanhar o processo cubano de maneira crítica, sem cair em retóricas binárias e simplistas, que só acabam beneficiando os poderes existentes, seja da partidocracia cubana como do imperialismo estadunidense”, opina Andrés Kogan Valderrama, sociólogo, em artigo publicado por OPLAS, 16-07-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

A propósito dos recentes protestos em Cuba, com um chamado explícito do governo de Miguel Díaz-Canel a seus partidários para irem às ruas enfrentar os manifestantes, abriu-se uma nova oportunidade para se posicionar criticamente sobre o que ocorre na ilha, ultrapassando as clássicas posições reducionistas que continuam reproduzindo esquemas políticos binários, que prestam um desserviço à possibilidade de se pensar alternativas e saídas transformadoras à crise atual.

Uma crise que foi agravada pelas consequências da pandemia, com o turismo sendo consideravelmente afetado, o que economicamente é dramático, já que esse setor é responsável por 10% do PIB e 11% do emprego. Isso acaba afetando enormemente as receitas do Estado e as importações de alimentos, que equivalem a 70%.

Consequentemente, há escassez de alimentos básicos, cortes no serviço elétrico e também um colapso no sistema sanitário, resultado da Covid-19, com a infraestrutura dos hospitais tremendamente deteriorada com o passar do tempo.

A questão é que essa crise resultou em protestos que poderiam levar a uma inédita revolta em Cuba, somando-se ao cenário regional atual, no qual importa muito pouco se o governo é de esquerda ou de direita, já que o que se trata é de interpelar o poder político existente a partir de diferentes movimentos organizados (estudantis, feministas, ecologistas, dissidências sexuais, afros, indígenas).

É por isso que a resposta do governo cubano, reprimindo e detendo inclusive figuras da revolução e de esquerda na ilha, como são os casos de Frank García Hernández, Leonardo Romero Negrín e Marcos Antonio Pérez Fernández, deveria despertar a reflexão regional e não ser cúmplice de um processo político fechado em si.

Proponho isso, pois parece que o processo político cubano, com o passar do tempo, tornou-se uma espécie de tabu para boa parte das esquerdas no mundo, especialmente latino-americanas, onde qualquer crítica a esse respeito é rapidamente insultada e descartada por seu caráter imperialista e contrarrevolucionário.

Embora seja inegável a importância crucial da experiência da revolução cubana para a autonomia política da região, sendo talvez a mais influente de todas, acima de outros processos políticos latino-americanos fundamentais, não a torna um processo sem erros e horrores em muitos sentidos.

É verdade que historicamente os questionamentos ao governo de Cuba foi uma constante de setores conservadores (pró-estadunidenses) para desestabilizar e intervir no processo político interno, que se mantém há mais de 60 anos, apesar de um bloqueio criminoso dos Estados Unidos que só gerou dano à população da ilha, como acontece com a falta de medicamentos, por exemplo.

Contudo, daí a omitir o caráter centralista, militarista, autoritário e burocrático do Estado em Cuba, formado estruturalmente pela partidocracia castrista, é simplesmente se deixar levar por uma noção estática e essencialista do que foi a revolução nos últimos 62 anos.

José Martí, um dos maiores antirracistas, anticolonialistas, anti-imperialistas latino-americanos e referência fundamental para a revolução cubana, já em seu momento questionou os efeitos devastadores da concentração do poder político, destacando que “todo poder exercido de forma ampla e prolongada se degenera em castas, com as castas, vêm os interesses, os altos cargos, os medos de perdê-los, as intrigas para sustentá-los”.

Isso é exatamente o que acabou acontecendo em Cuba, gerando um processo de apropriação da revolução e proibição da auto-organização e participação popular, onde qualquer dissidência se transformou em um argumento perfeito para reprimir qualquer pessoa que coloque em dúvida ou levante a possibilidade de discutir o que a casta no poder disser.

Sendo assim, esse estadocentrismo na ilha bloqueou a possibilidade de permitir ao sujeito popular cubano pensar e construir mundos distintos e sustentáveis, no qual a soberania alimentar, a soberania energética, a propriedade comunitária, a defesa dos bens comuns, a descolonização, os direitos da Mãe Terra, a despatriarcalização, a plurinacionalidade, a autogestão e a democracia direta possam ser horizontes possíveis.

Evidentemente, essa crítica não omite a persistência dos Estados Unidos em derrubar o governo cubano e o papel dos grandes meios de informação concentrados, que dão argumentos para uma intervenção militar (não é assim com a China), também ignorando de maneira irresponsável a soberania do país e a autodeterminação do povo cubano.

Por essa mesma razão, trata-se de acompanhar o processo cubano de maneira crítica, sem cair em retóricas binárias e simplistas, que só acabam beneficiando os poderes existentes, seja da partidocracia cubana como do imperialismo estadunidense.

 

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