27 Mai 2021
"Uma elite global maior e composta do que aquela identificável com o cosmopolitismo do passado. Mas ainda elite: minoria na sociedade, maioria na propriedade e na disposição dos ativos e dos meios financeiros", escreve Enrico Letta, ex-Primeiro Ministro da Itália, do Partido Democrático - PD, em artigo publicado por la Repubblica, 26-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A antecipação do livro "Anima e cacciavite” (Alma e chave de fenda, em tradução livre) do secretário do Partido Democrático. Nos últimos anos pensei, e escrevi, que uma das causas mais profundas da crise das elites na Europa, em particular dos partidos progressistas, tem sido a tendência generalizada de desprezar o mal-estar, de desclassificar o conflito social como um adorno novecentista, de viver as desigualdades como o preço a pagar, aparentemente mínimo, diante das oportunidades, aparentemente infinitas, da globalização e da abertura.
Foi nosso erro histórico, sobre o qual todos devemos fazer uma autocrítica. Primeiro, porque permitimos que a resposta às necessidades legítimas de proteção fosse competência exclusiva da direita populista. Em segundo lugar, porque, quase com vergonha de pronunciar a expressão "justiça social", perdemos a própria aspiração ao progresso, não vendo que ao nosso redor estava acontecendo um retrocesso. Menos trabalho, menos oportunidades de crescimento, menos esperança, menos filhos, menos empatia para com as dificuldades, menos solidariedade com os últimos e desesperados. Justamente hoje que tudo é ainda mais acelerado, devemos recuperar depressa o tempo perdido e colocar a redução das desigualdades e a proximidade para com as necessidades da pessoa e da comunidade no centro da nossa ação política. O que significa ser progressistas, caso contrário? Onde está a alma de que falava antes? Afinal, diz Filippo Andreatta, “restam os inimigos de sempre a serem derrotados (os 4 Ps): pobreza, privilégios, preconceitos, ‘paura’ (medo). São ainda os mesmos inimigos do Renascimento, da Resistência e da Constituinte”.
As épocas históricas mudam, mas nossa missão, nossa alma, deve ser a mesma. Se não demonstrarmos, aos que lutam para viver e se adaptar às mudanças contínuas, que a política se concentra justamente em possibilitar a convivência não traumática com esses inimigos, o caminho se tornará cada vez mais difícil. Não é fácil encontrar as ferramentas, as soluções e até mesmo as palavras certas. O que é certo é que devemos mudar a nós mesmos, na cabeça e talvez também no coração. [...] Porque, para ter olhos capazes de olhar além, é preciso ir além da trilha batida, por alguém além das convicções de uma vida, das correntes de pensamento varridas pelo vento da mudança da última década, dos pertencimentos a correntes políticas superadas pela história. É por isso que usei Emmanuel Mounier e o apelo [no volume sobre os anseios Novecento, ndr.] para não ter medo da máquina. Poderíamos atualizá-lo e dizer a nós mesmos que o verdadeiro desafio é vencer "o medo do século XXI". E poderíamos também concordar que o desafio não é impossível, se o enfrentarmos, precisamente, com olhos que saibam olhar para além, com o espírito de quem sabe se identificar com as angústias e fragilidades do outro, com a criatividade e a competência de quem sabe ver primeiro para depois construir novas soluções; com a paciência necessária para nos acompanhar a todos pela mão, sem desviar os olhos do estudante que se desconectou ou do cinquentão que perdeu o emprego.
Para fazer este salto de paradigma, que é emocional antes mesmo do cultural e político, devemos, no entanto, evitar contornar um sério debate sobre o fracasso do "modelo da locomotiva e vagões". E entender por que aquela abordagem, às vezes apoiada com a melhor das intenções, acabou fracassando, principalmente na Itália e na Europa, criando desvirtuamentos e distorções que levaremos tempo, talvez anos, para corrigir radicalmente. A locomotiva, como sabemos, é a parte mais importante do comboio. Aliás, é a parte na qual trabalhar e investir. Se a locomotiva for potente, o principal está feito. Quanto mais rápido a locomotiva andar, mais eficazmente vai puxar o resto do comboio atrás de si. Esse paradigma, nas últimas três décadas, foi declinado de forma massiva, até mesmo fideística, tanto nos modelos de desenvolvimento econômico (especialmente territorial) quanto nas relações dentro da sociedade.
Na Itália, talvez mais do que em qualquer outro lugar [...]. Eu conheço até bem demais a objeção. Em uma comunidade complexa - diz-se - existem mecanismos redistributivos internos e redes de proteção que protegem os que ficam para trás. Isso tem sido, embora parcialmente, verdade por muito tempo. Hoje não é mais assim. Hoje, em todo o mundo, se você tem dinheiro, você tem mais oportunidades do que antes. Você pode mover legalmente seu capital para fora do país, você pode facilmente estabelecer a sede fiscal de sua atividade no exterior. Você pode optar por se transferir, fisicamente ou mesmo apenas juridicamente, de uma forma simples. Existem até países que leiloam a cidadania, prometendo mundos e fundos se você decidir pagar seus impostos ali. Em outras palavras, quem detém o privilégio econômico tem o privilégio de separar seu destino individual daquele de seu país. E se o país afundar, ele pode se salvar. É um discurso que serve perfeitamente à Itália, mas que vale para muitas outras democracias, não por acaso elas mesmas em crise. É a consequência mais direta de uma globalização que está criando uma nova elite mundial que se reconhece entre si no aproveitamento de oportunidades sem precedentes.
Uma elite global maior e composta do que aquela identificável com o cosmopolitismo do passado. Mas ainda elite: minoria na sociedade, maioria na propriedade e na disposição dos ativos e dos meios financeiros. O problema é que esta elite global, cosmopolita e culta, corre o risco não só, como eu dizia, de se separar cada vez mais do seu próprio país, mas também de se defender dele, em vez de se questionar sobre como contribuir para a sua salvação.
Certamente, continuar a perpetuar desequilíbrios rouba força vital e vitalidade às nossas comunidades. Todos são afetados, não apenas os últimos, e isso deveria sugerir às elites, à locomotiva, que a única forma real de fazer o trem andar a boa velocidade é aceitar de uma vez por todas que a redução das desigualdades - antigas e novas, sociais e territoriais, geracionais e de gênero - não é mais apenas uma sacrossanta questão de justiça social, mas um motivo de conveniência para todo o país, a começar pelas classes dirigentes. Porque, se o trem descarrilhar, as consequências são graves para todos e ficam em risco não os privilégios de uma parte, mas a sobrevivência de todo o sistema da democracia como o conhecemos no último século.
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A esquerda deve fazer uma autocrítica, esqueceu a justiça social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU