Por: Patricia Fachin | 22 Agosto 2018
O intelectual cosmopolita globalizado “é antes de tudo um outsider”, diz o filósofo Ivan Domingues à IHU On-Line. Jean-Paul Sartre, com seu “grande engajamento político”, ou Immanuel Kant, “que nunca saiu de sua cidade natal, Königsberg, e tinha uma carreira de professor totalmente consagrada à universidade de sua cidade”, são dois exemplos opostos que ilustram que o intelectual cosmopolita globalizado não necessariamente está vinculado a “um modelo específico de universidade”, embora a universidade siga “sendo importante como plataforma de ação e de pensamento para a maioria da intelectualidade”, argumenta. O intelectual cosmopolita globalizado, resume, “é o ideal da experiência intelectual e, portanto, o máximo que podemos almejar e ser atingido”.
Na noite de ontem, 21-08-2018, Ivan Domingues esteve na Unisinos ministrando a Aula Inaugural das Escolas Unisinos, cujo tema foi “O intelectual cosmopolita globalizado: para qual universidade?" Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo reflete sobre os desafios postos às universidades brasileiras e também apresenta um panorama do desenvolvimento da intelligentsia brasileira, tema de seu livro “Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios Metafilosóficos” (São Paulo: Unesp, 2017).
Domingues também comenta o papel da intelligentsia brasileira na atual conjuntura política do país e lamenta a falta de uma “discussão substantiva” acerca dos problemas a serem enfrentados. “Entendo que esta aliança entre a cegueira intelectual, protagonizada pela ideologia, e o taylorismo acadêmico, levando à vitória do pensamento técnico, é o maior dos males da intelligentsia brasileira neste momento tão infeliz e ingrato de nossa história”, conclui.
Ivan Domingues | Foto: Unesp
Ivan Domingues é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e doutor em Filosofia pela Université de Paris I. Atualmente é professor titular da UFMG. Além de experiência no ensino e na pesquisa, Ivan Domingues acumulou experiência administrativa ao longo de sua carreira, tendo sido fundador do Doutorado em Filosofia da UFMG, um dos fundadores e ex-diretor do Instituto de Estudos Avançados - IEAT/UFMG, assessor do Reitor da UFMG – Gestão 2010-2014, coordenador da Área de Filosofia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes e membro de Comitê Assessor de Filosofia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Atualmente é o coordenador do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo - NEPC da FAFICH-UFMG, um grupo interdisciplinar de pesquisa que desenvolve o projeto Biotecnologias e o Futuro da Humanidade, apoiado pela Fapemig, com ênfase no impacto das bioengenharias sobre a questão antropológica e suas implicações éticas, políticas e jurídicas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Pode nos dar um panorama geral dos cinco tipos de intelectuais que fazem parte da história da intelectualidade brasileira, conforme apresentado no seu livro, a saber, o intelectual orgânico da igreja ou o jesuíta, na época da colônia; o diletante estrangeirado remanescente do direito, no período Império e da República Velha; o scholar; o filósofo intelectual público; e o intelectual globalizado? Como, por que e em que contexto eles surgem e quais são alguns arquétipos que representam esses diferentes intelectuais?
Ivan Domingues - Antes, eu vou começar pela proposta do livro, lançado na Unisinos em agosto do ano passado, cujo título é Filosofia no Brasil – Legados e perspectivas (Ed. UNESP, 2017) e cujo desafio consistiu em articular dois eixos argumentativos com o propósito de pensar a intelligentsia filosófica brasileira. Por um lado, o eixo da história intelectual, tomando como foco a história da corporação filosófica nacional, e não exatamente a história da filosofia ou da ideias filosóficas, ao seguir as pegadas do historiador francês Sirinelli e estender seus aportes e métodos, então restritos à história e à França, no meu caso à filosofia e ao Brasil. Por outro lado, o eixo da metafilosofia, ou a filosofia da filosofia, ao perguntar pela natureza da filosofia e da práxis filosófica ao longo de nossa história: como Sirinelli no tocante à história intelectual, o ponto de arranque da metafilosofia foi Williamson, de Oxford, que pensa a sua metafilosofia com as armas e as bagagens da filosofia analítica e fica restrito à filosofia anglo-saxã nas décadas recentes; no meu caso, com as armas e as bagagens da história da filosofia, bem como da história intelectual, tendo como foco o Brasil e um horizonte de 500 anos ou quase.
Ao longo dessas incursões, a noção de intelligentsia que eu tomei de empréstimo de Mannheim se revelou decisiva: tanto ao incorporar elementos da sociologia das corporações e da história intelectual, quanto ao se abrir e proporcionar a inclusão nas análises efetuadas de elementos relativos aos ethei das corporações intelectuais, deixando-nos nas vizinhanças da psicologia moral e ao mesmo tempo nos exigindo ir além dela: especificamente, rumo à ética filosófica e sua aplicação à história da cultura.
Contudo, mais do que ninguém, quem me proporcionou as ferramentas analíticas para pensar todo esse conjunto e fazer o trânsito para o Brasil e à filosofia nacional foi Max Weber e seu método dos tipos ideais, autorizando sua extensão tanto ao ethos e, por extensão, aos ethei da intelectualidade, devido à diversidade histórica dos agrupamentos dos intelectuais bem pensantes, quanto à história das corporações e das intelligentsia elas mesmas.
Foi assim, ao examinar a matéria história em sua diversidade com a ajuda do ferramental da metodologia weberiana, que cheguei aos cinco modelos ou tipos ideais da intelectualidade filosófica nacional ao longo de seus quinhentos anos, a saber:
[i] o intelectual orgânico da igreja, ou o clérigo jesuíta, definido seu tipo ideal, entre outros traços, pelo apostolado intelectual e tendo como cristalização histórica em filosofia Francisco de Faria, que atuava no Colégio da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro, e Bento da Fonseca, no Colégio do Maranhão;
[ii] o intelectual estrangeirado egresso do direito, definido pelo transoceanismo, como no caso de Joaquim Nabuco, que dizia que vivia no Brasil e atuava no parlamento com o coração na pátria e a cabeça na Europa, e tendo como instanciação em filosofia Tobias Barreto, que não era um anglófilo como Nabuco, mas um germanófilo;
[iii] o intelectual de métier ou o scholar, definido pelo virtuosismo (trata-se de um virtuose das letras, em analogia com o virtuose da música e de outros ofícios), e a ultraespecialização do conhecimento nas vertentes mais condizentes com a divisão capitalista do trabalho e, por extensão, do conhecimento (divisão em áreas e especialidades), tendo como exemplos em filosofia os normaliens que fundaram a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH da USP e a legião dos especialistas disciplinares nacionais que saíram do Sistema Nacional de Pós-Graduação - SNPG da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes e se espalharam por todo o país;
[iv] o intelectual público engajado na política, cujo ethos entre outros traços de caráter é definido pelo virtuosismo cívico (virtude cívica), na esteira do intelectual republicano francês, com Zola e Sartre na linha de frente, e tendo em nossos meios filosóficos como exemplos emblemáticos Padre Vaz, Giannotti e Marilena Chaui;
[v] e, por fim, o intelectual cosmopolita globalizado, ou simplesmente o pensador, como eu mostro no livro, tendo como ethos o cosmopolitismo e a desterritorialização – um e outra como pendant da atopia da filosofia e do pensamento –, podendo ser citados como exemplos Kant na Alemanha ou Descartes na França e o qual não tem ainda representantes no Brasil em filosofia, havendo porém em outros campos da atividade intelectual, como no caso da literatura, com os exemplos de Machado de Assis e Guimarães Rosa.
IHU On-Line - Qual é o perfil do intelectual brasileiro neste momento, na sua avaliação? Ele é predominantemente um intelectual globalizado ou ainda tem características de períodos anteriores, e pode ser considerado um scholar ou um intelectual público?
Ivan Domingues - Conforme eu mostrei largamente no livro, especialmente no 6º Passo, o nosso período se caracteriza pela clara hegemonia do scholar, ou o especialista disciplinar, que instaurou um novo mandarinato entre nós.
IHU On-Line - O senhor já declarou em alguns momentos que o intelectual scholar se tornou técnico, e essa formação técnica teve como consequência a derrota do pensamento criativo e a vitória do pensamento técnico. Pode nos explicar essa ideia? Qual é a origem disso? Como seria possível manter a tecnicidade juntamente com o pensamento criativo? O que falta ao intelectual brasileiro nesse sentido?
Ivan Domingues - “That's a great question”, como dizem os anglofônicos, e a resposta não caberia numa entrevista. Duas são as ordens de considerações, uma nos levando a Heidegger, a outra nos exigindo ir além, dele e da filosofia. A Heidegger e sua frase mais conhecida, ao dizer que a lógica e a ciência não pensam, nem a filosofia técnica e profissional, poderíamos acrescentar e pelos mesmos motivos, formulação que nos faz pensar em Kant, ao distinguir o pensar e o conhecer.
A Heidegger uma segunda vez e sua filosofia da técnica, mais diretamente a sua obra seminal Ser e tempo, ao longo da qual ele trata de distinguir Zuhanden e o Vorhanden ao se referir à técnica e ao pensar técnico, dizendo que o primeiro recobre aquilo que está à mão e está disponível ou em uso, ao passo que o segundo designa algo que está diante de nós ou está lançado, à distância e ante nossos olhos: ao voltar a Heidegger, tanto ao ensaio A essência da técnica quanto à obra Ser e tempo, eu levei em conta, com a ajuda de outros estudiosos versados na língua alemã, que Heidegger nestas incursões explorou com maestria e sagacidade a raiz “hand” que nucleia os dois vocábulos, que significa “mão”, como aliás em inglês, autorizando-nos a enquadrar a técnica como categoria do artesanato e dos ofícios manuais – coisa que todo mundo sabe, é intuitivo e não choca ninguém, nem mesmo a ideia de relação instrumental que a acompanha. Contudo, Heidegger quer mais ao pensar a essência da técnica, a qual ele pensa em paralelo à essência da arte, ao voltar à techne grega que recobria tanto as belas artes ou as artes liberais quanto as artes úteis ou mecânicas, e dirá que até mesmo a filosofia e o pensamento são uma espécie de artesanato, ou “handwerk”, em alemão.
De minha parte, não sendo eu heideggeriano e não podendo ficar só com ele, frente à necessidade de adicionar à escala artesanal da técnica do ancien régime a megaescala da Big Science e da grande indústria moderna, fui levado, ao pensar a intelligentsia como tipo ideal a Weber, a tomar um outro caminho, mas fazendo um outro uso dessas distinções e expansões, à minha maneira e com outros propósitos. A um tempo desconfiado dos excessos metafísicos do filósofo e, também, dos excessos pedagógicos de Piaget ao pensar a criança criativa, e desde a tenra idade.
Ora, ao passar para o plano do conhecimento e da atividade intelectual, logo eu me dei conta de que a criação que o intelectual endeusa e fetichiza é coisa rara e não se trata de um bem em si ou intrínseco: em regra ela é acompanhada de uma grande entropia ao se ver associada à destruição pura e simples, senão à obsolescência programada, com a ameaça atual de a pressão pelo emprego em larga escala de robôs acarretar a própria obsolescência dos humanos, como alerta um pesquisador do MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts]. Também aqui vige a fórmula de Edmund Burke, segundo a qual se ninguém faz nada e não pratica o bem, o mal infesta e arrasta tudo. Por isso, todo o cuidado é pouco e ética deve vir junto com a técnica desde o início, ainda que não se saiba como e em meio de uma sensação de grande impotência, conforme já tive a oportunidade de mostrar em vários estudos.
Voltando à questão da criação, cujo âmbito de fato é mais vasto do que a pedagogia e a epistemologia piagetianas, bem como vai além da filosofia da técnica heideggeriana com seu empenho metafísico, foi pensando nessas coisas que eu propus em artigo que escrevi com César Sá Barreto em 2012, depois de ruminar por minha conta e risco o papel evolucionário da mímesis ou imitação na natureza e no mundo humano, um diagrama composto por três eixos ortogonais, com o propósito de acomodar todo o escopo ou conjunto do conhecimento, ou seja: o primeiro correspondendo à imitação ou reprodução do conhecimento, o segundo à incrementação ou crescimento do conhecimento e o terceiro à criação ou invenção do conhecimento.
A ideia, na ocasião, assim como em estudo publicado em 2013 com o título “A universidade e o mundo contemporâneo”, era situar a universidade brasileira nos três eixos e evidenciar qual é a nossa realidade e a perspectiva futura, levando-me a concluir o tópico dizendo o seguinte: “(...) na maioria delas prevalece o eixo da mímesis ou da imitação: este é o caso das universidades de ensino; mas há também aquelas em que o eixo da incrementação é significativo: este é o caso das universidades públicas de pesquisa (e poderíamos acrescentar o caso de algumas PUCs e correlatas), cujos pesquisadores desenvolvem pesquisa incremental e o tempo todo põem uma linha a mais no Lattes; em contraste, são pouco ou nada expressivas aquelas universidades em que os pesquisadores criam efetivamente conhecimento novo, e menos ainda conhecimento novo relevante, capaz de credenciá-lo para o prêmio Nobel. Esta é a realidade, a dura realidade, o resto é ilusão e fantasia” (in: Paula, J. A. de [org.]. Forum de estudos contemporâneos. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 2013, p. 121; o diagrama está na p. 122). Ora, abstração feita da universidade e seus modelos, entendo que os três eixos recobrem todo o conjunto do conhecimento e a este título trata-se de um tripé epistemológico, mais do que pedagógico ou coisa parecida.
IHU On-Line - O título da sua palestra na Unisinos é "O intelectual cosmopolita globalizado: para qual universidade?" Na sua avaliação, para qual universidade está se formando esse intelectual cosmopolita globalizado?
Ivan Domingues - Ao longo do livro eu desvinculo o intelectual cosmopolita globalizado da Universidade ou, talvez melhor dizendo, de um modelo específico de universidade. Um exemplo de um intelectual que reuniu numa só pessoa as credenciais de intelectual público com grande engajamento político e de intelectual cosmopolita com raio de ação estendido a todo globo é Sartre, tendo inclusive colocado a Guerra de Vietnam em sua agenda de ativista, e como aliás Bertrand Russell. Numa direção oposta, antes mesmo da era da globalização, um excelente exemplo de intelectual cosmopolita no campo da filosofia é Kant, que nunca saiu de sua cidade natal, Königsberg, e tinha uma carreira de professor totalmente consagrada à universidade de sua cidade, carreira que aliás, no tocante ao ensino, extrapolava a filosofia.
Minha suspeita é que se, passado tanto tempo, Kant tornou-se o filósofo globalizado que hoje ele é, integrando, nos quatro cantos do globo, a lista dos 10 filósofos canônicos, não foi graças à plataforma global de uma universidade, como a dele, que nunca foi globalizada. Neste sentido, o intelectual cosmopolita globalizado, cujo outro nome é o pensador, outra terminologia que eu emprego no livro, é antes de tudo um outsider.
Contudo, a universidade segue sendo importante como plataforma de ação e de pensamento para a maioria da intelectualidade, mas não a única e exclusiva, havendo outras. Um ponto a ser considerado ainda é o possível vínculo entre o pensador ou o intelectual cosmopolita globalizado e a chamada universidade globalizada, que os norte-americanos chamam de universidade de excelência de classe mundial. Na conferência que proferir na Unisinos, por ocasião desta minha nova visita, vou mostrar que o vínculo é antes com o scholar, que venceu por toda parte e se globalizou.
IHU On-Line - Considerando a história da intelectualidade brasileira, apresentada em seu livro, quais diria que são hoje os principais desafios e perspectivas postos ao intelectual cosmopolita globalizado no atual momento da história brasileira?
Ivan Domingues - Penso que o intelectual cosmopolita globalizado é o ideal da experiência intelectual e, portanto, o máximo que podemos almejar e ser atingido. O outro nome desta figura intelectual é o pensador e este em princípio pode surgir em qualquer canto do globo, não apenas nas grandes universidades mundiais e no interior dos países centrais. O grande desafio que se coloca para nós, hoje, num momento tão ingrato de nossa história, com o governo federal maltratando as universidades, públicas e privadas, é nos prepararmos para a agenda da globalização do conhecimento e vencermos os gaps históricos, como fez a Coreia desde os anos 60, quando era mais pobre que o Brasil de então, e como vem fazendo a China hoje, com o propósito de instalar suas universidades no seleto grupo das top 10 e trazer para o país os primeiros laureados com o Nobel em ciência. O Brasil não vem fazendo nada disso, donde o meu pessimismo.
Eu, em minhas atividades, continuo fingindo que estou na Suécia, senão eu não suportaria. No meu entendimento, como eu mostro no livro, o país conseguiu vencer gaps importantes ao longo de sua já longa história de 500 anos, colocando suas universidades e outras instituições científicas, como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada - Impa, senão em pé de igualdade, ao menos com boas condições de competitividade no plano mundial. Contudo, seguimos desconfiados de nós mesmos e falta uma agenda positiva em C&T, à qual poderíamos acrescentar um novo C, de cultura, ou um H, de humanidades, levando à implantação de políticas públicas em C&T&H ou C&T&C.
Como não a temos, continuamos com o complexo de vira-latas e conforme viu o diretor do Scielo, ao comentar a constatação de colegas dos países centrais segundo a qual brasileiro não cita brasileiro, e o resultado é um verdadeiro autoextermínio, acréscimo meu e como venho comentando em diferentes ocasiões. No fundo, a velha máxima de Kant e do iluminismo tem ainda grande atualidade e poderá nos servir de guia, elevando a nossa autoestima: Sapere aude, ousar pensar por nós mesmos e vencer a nossa minoridade intelectual – ontem por causa de nossa condição de colônia; hoje por causa de nós mesmos, livres e independentes, mas com a cabeça ainda colonizada.
IHU On-Line - Em que aspectos o intelectual globalizado brasileiro se aproxima e se diferencia do intelectual globalizado de outras partes do mundo?
Ivan Domingues - No mundo globalizado como o de hoje, no sentido de McLuhan, ao falar da aldeia global, com as TICs [Tecnologias de Informação e Comunicação] no centro de tudo e de nossas vidas, tornando-nos todos conectados e desterritorializados, vivendo num ambiente de um grande presente temporal, em tempo real, como se diz, em princípio tudo se aproxima de tudo e haverá uma agenda global e compartilhada. Porém, o espaço da globalização não é geométrico, mas geopolítico, como mostro no meu livro Filosofia no Brasil, havendo centros, pontos e arestas que contam e pesam mais do que outros na balança do poder mundial, de modo que não podemos ser ingênuos, baixar a guarda e entregar tudo.
Quem faz a globalização, como todo mundo sabe, é os Estados Unidos, sobrepondo a agenda local à global, e o resultado é o que todos conhecem. Por outro lado, no mundo globalizado sempre haverá espaço para a agenda nacional e as cores locais, de modo que devemos nos preparar para uma e outra situação. Ao pensar nessas coisas, lembro-me de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Leon Tolstoi, que viviam nos cafundós do mundo, ou de lá vieram, e no entanto, em meio a seus regionalismos e paroquialismos, fizeram uma literatura universal e cosmopolita.
IHU On-Line - Há quem avalie que o Brasil carece, hoje, de intelectuais públicos, especialmente de um intelectual público que ajude a pensar o atual momento político, econômico e social do país. Concorda com esse tipo de análise? Ainda nesse sentido, como avalia a atuação dos intelectuais brasileiros no atual momento político brasileiro? Eles têm contribuído para a discussão acerca dos rumos do país?
Ivan Domingues - Sim, é verdade, mas esta carência de intelectuais públicos está longe de ser uma exclusividade brasileira. Assim como não é uma exclusividade a falta do pensador universal associado à agenda do intelectual cosmopolita globalizado. Tudo isso é normal e faz parte dos altos e baixos dos países e das culturas em diferentes momentos de sua história. Ontem a França e a Alemanha eram cheias deles; hoje, não mais. Contudo essa situação de normalidade não deve nos desarmar ou nos deixar acomodados. Pensem em Atenas e o que se seguiu depois da idade de ouro, conhecida como o milagre grego, entre os séculos III e V a.C.: depois do ápice foi a decadência, e não houve mais volta nem novo apogeu. Não muito diferente foi o caso de Florença e dos renascentistas italianos, nos quais Gramsci viu os espécimes dos primeiros intelectuais cosmopolitas. Por isso, todo o cuidado é pouco, e podemos estar perdendo de vez o bonde da história. E pior: como notou Lévi-Strauss, podemos estar em plena decadência, antes mesmo de termos chegado ao apogeu.
Sobre a atuação do intelectual brasileiro na atualidade, marcado pela grande polarização política, como todo mundo sente e sabe, venho acompanhando as discussões – ou, antes, a falta de discussão substantiva acerca de nossos problemas e urgências – com grande preocupação e desalento.
Por um lado, noto o fenômeno de cegueira intelectual, devido à ideologia, associado a um certo petismo e mais ainda ao lulismo que hegemonizaram as esquerdas nas últimas décadas, com suas pautas neodesenvolvimentistas bem como neopopulistas que remeteram as discussões acerca do pacto da federação, das alternativas ao neoliberalismo e das urgências estratégicas do país, dominado pela pauta das commodities e do deus mercado, para as calendas. Bem entendido, ao acrescentar-lhes o afixo “neo”, para evidenciar a novidade como agenda supostamente de esquerda, com o PT hegemonizando as esquerdas, e o lulismo hegemonizando o petismo e, por conseguinte, a esquerda brasileira, resultando num sistema de crenças tão avassalador quanto acrítico. Por seu turno, com respeito ao intelectual dito de direita, sabidamente tivemos muitos deles no passado recente, como Gilberto Freyre, que como poucos conseguiu pensar o país; só que hoje não encontramos mais esta estirpe neste lado do espectro político, e a situação é um deserto só: nenhum intelectual desta filiação está pensando ou preocupado em pensar o Brasil; porém, está de olho nas curvas das commodities.
Por outro, noto o esvaziamento da formação humanista em nossos meios intelectuais, digo o esvaziamento do legado das velhas humanidades em que se deve ver a origem da intelligentsia moderna, proporcionando a vitória do especialista disciplinar ou do novo scholar ultraespecializado, fruto da fusão do erudito das humanidades e do expert das ciências duras, e ficando o intelectual das ciências humanas sob sua tutela e com sua agenda, em meio a um produtivismo avassalador, cujo outro nome é taylorismo acadêmico, e desde logo sem tempo para pensar e questionar nada. O resultado é o suicídio do intelecto e o fim do pensamento, com o virtual desaparecimento da figura do pensador em nossos meios, e a prova é que – da economia à sociologia, passando pela política, até chegar à história – não temos mais pensadores do Brasil. Nem, com maior razão ainda, a filosofia, que, rigorosamente, nunca os teve.
Entendo que esta aliança entre a cegueira intelectual, protagonizada pela ideologia, e o taylorismo acadêmico, levando à vitória do pensamento técnico, é o maior dos males da intelligentsia brasileira neste momento tão infeliz e ingrato de nossa história.
IHU On-Line - Nas universidades há várias divergências entre os pesquisadores sobre o modelo de produção acadêmico e o que alguns chamam de ‘homo lattes’. Como o senhor avalia o atual modelo de produção instituído nas universidades brasileiras? Em que aspectos esse modelo favorece ou não o desenvolvimento do intelectual cosmopolita globalizado? Seria o caso de se propor algum modelo alternativo? Se sim, qual seria?
Ivan Domingues - Ao longo do livro, eu mostro que na verdade o modelo que comandou as ações no campo do ensino e da pesquisa, ao considerarmos o ensino superior e as melhores universidades, foi protagonizado pela Capes e o SNPG, secundado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e o sistema PQ, e cujo resultado foi a fusão do Homo Qualis (Capes) e do Homo Lattes (CNPq): ou seja, resultado que não é outro senão a formação do scholar brasileiro ou do scholar autóctone, forjado no campo das ciências duras e depois aclimatado nas ciências humanas e sociais.
Na minha avaliação, o advento desse scholar meio americanizado, que ficou no lugar do virtuose francês que teve um papel de grande relevo na fundação da FFLCH da USP, significou um ganho real na história do ensino superior do país, acarretando o fim da improvisação e do autodidatismo, a exemplo do que já se passara no primeiro mundo desde o início da era moderna, tendo o Brasil chegado bastante tarde ao concerto das nações com universidades completas e o ciclo completo do ensino, do bacharelado ao doutorado.
Contudo, este processo foi acompanhado de um efeito negativo, fazendo lembrar o paradoxo das consequências de Max Weber: ninguém queria e ninguém o procurou de caso pensado, o certo é que a conformação do scholar e sua instalação no centro do sistema superior brasileiro acarretou, como aliás nos países centrais, a instauração de um verdadeiro mandarinato, com o novo scholar ficando no lugar do velho catedrático do ancien régime, levando ao taylorismo acadêmico e ao lema do publish or perish, com todas as consequências que nós conhecemos.
A saída, se é que há, não nos levaria a postular a criação de um novo modelo de universidade. Na minha opinião o modelo já existe e já foi historicamente experimentado, antes de ter sido desvirtuado e piorado, no contexto da universidade de massa, da mercantilização do conhecimento e da chamada ciência “pós-normal”, ao retomar pelo avesso a conhecida expressão de Thomas Kuhn: trata-se do modelo humboldtiano, fundado sobre a aliança entre o ensino e a pesquisa, modelo esse implantado em Berlim, em 1810, como já comentado, seguido por Harvard, Oxford, Cambridge e outras grandes universidades do mundo, e que, no entanto, até hoje ficou longe de nossas terras: daí restar a esperança de, quem sabe um dia, ele ser transferido para essa zona do hemisfério e aclimatar em nossos meios, fazendo por aqui o serviço que já fez, antes de seu desvio recente rumo à taylorização do conhecimento, na parte de cima do Equador, com sua alta excelência e seus nobelizados.
IHU On-Line - Em vários países do mundo os recursos para as humanidades estão diminuindo e muitas universidades estão fechando os departamentos de humanidades. Por que esse fenômeno tem acontecido? É possível estimar quais devem ser as consequências disso? Como os departamentos de humanidades poderiam responder a esse fenômeno?
Ivan Domingues - Venho acompanhando isso com grande inquietação. A universidade nasceu na idade média colocando no centro de suas atividades três faculdades, a saber: Teologia, Medicina e Direito. Este foi o caso da Universidade de Bolonha, a primeira da série e que começou com sua escola de direito famosa. A de Paris durante muito tempo ficou com as Faculdades de Teologia e Letras/Filosofia, a ela se acomodando mais tarde as Faculdades de Medicina e de Direito, tendo esta sido refundada por Luís XIV com o nome de Faculté de Décret, devido ao seu vínculo com o rei e o parlamento, às voltas com o direito civil e penal, e não mais com o direito canônico, que ficou sob a alçada da igreja e do papa.
Não muito diferente foram os casos das duas sumidades inglesas, Oxford e Cambridge, ambas eclesiásticas na origem e mais tarde laicizadas, e ainda a de Salamanca e de Coimbra, com Salamanca e suas três faculdades servindo de modelo para as novas universidades hispânicas das Américas, como as do Peru e do México. Some-se a estas o exemplo de Harvard com todo o seu prestígio e, como as grandes da Europa, com a Faculdade de Letras/Filosofia no seu heartcore e até hoje, com muito prestígio, e como aliás a Faculdade de Direito.
Por fim, há o exemplo da Universidade de Berlim, por obra dos dois irmãos Humboldt que reinventaram a universidade moderna, com o duplo propósito de aliar o ensino e a pesquisa, bem como as humanidades e as ciências. Por isso, com todo esse histórico e com todo esse prestígio acumulado e adensado durante os séculos, tendo o homem no centro de tudo, com a dupla credencial de fonte e ápice na escala dos valores, é difícil entender e aceitar como e por que tudo isso aconteceu, com as humanidades combalidas e em fim de linha.
Você pergunta por que isso aconteceu? Eu não sei a resposta, talvez porque não haja uma só reposta, mas mais de uma e todo um processo. Suspeito que em grande parte essa situação, com as humanidades desprestigiadas e os departamentos de humanas sendo fechados, tem tudo a ver, além da própria humanidade desbussolada, com a mercantilização do conhecimento e a conversão das ideias e dos frutos do conhecimento em goods, acarretando aquilo que eu venho chamando de taylorização do conhecimento, conforme comentei antes: ou seja, a taylorização e a vitória do pensamento técnico com tudo que elas implicam, como o ranqueamento da produção e das performances, em busca do lucro certo e de vantagens competitivas, e por conseguinte deixando as humanidades de lado, pela simples razão que elas não geram riquezas nem tecnologias, e não as geram porque elas não conseguem transformar as ideias em ferramentas e em “goods”.
Porém, haveria bem maior do que o conhecimento como bem da humanidade e patrimônio infungível da civilização, tendo como fim e origem a própria humanidade, da qual tudo provém e para a qual tudo volta e converge, e com mais razão ainda o conhecimento em todas as suas esferas, e não apenas as áreas técnicas? Talvez, à beira do abismo, um dia reconheçamos mais uma vez tudo isso e será a vez de um novo recomeço...
IHU On-Line - O senhor já declarou que resiste a pensar em uma filosofia brasileira, porque filosofia, afinal de contas, é uma atividade universal. O que explica, na sua avaliação, esse desejo expresso por alguns pesquisadores de se criar o que chamam de “filosofia brasileira” ou ainda uma “filosofia latino-americana”?
Ivan Domingues - Ao longo do livro eu discuto extensamente, no 1º Passo, a pertinência de se falar em “filosofia brasileira”, ao examinar o sentido profundo da polaridade filosofia no/do Brasil, juntamente com a questão do “nacional” e das tradições filosóficas nacionais, como as tradições francesa, inglesa e alemã. O leitor interessado nesta matéria poderá consultar diretamente o livro, ao longo do qual encontrará argumentos para justificar a ideia de uma filosofia brasileira, na acepção de filosofia feita no Brasil, como aliás a noção de literatura brasileira ou sociologia brasileira, e mesmo química brasileira, por exemplo no tocante à mineralogia.
Tudo isso faz sentido, e mais ainda, para além das ocorrências numa dada circunscrição geográfica, ao considerarmos as instituições, as escolas de pensamento e as corporações dos filósofos, em sua maioria professores, às quais estão associadas as ideias de produção e difusão da filosofia, bem como de outros campos disciplinares, inclusive a matemática, a biologia e a física. Por outro lado, ao considerarmos que a humanidade é uma só, ainda que seja em sua unidade sumamente diversa e desigual, em termos de indivíduos e etnias, e junto com ela o pensamento e o intelecto, faz todo o sentido falar de uma filosofia universal e de uma matemática universal, como produtos e expressão do pensamento, ele mesmo universal e o mesmo desde a noite dos tempos. Donde o paradoxo: se é verdade que a filosofia, a ciência e o pensamento não têm pátria e transcendem os estados-nações, não é menos verdadeiro que o filósofo, o cientista e o pensador, sim. Compreende-se, então, que ao longo do livro eu tenha procurado levar até o fim a tensão entre as partículas do/no ao pensar as questões do nacional e da filosofia nacional, mostrando por exemplo que a expressão “filosofia brasileira” não tem pertinência no Brasil colônia e passa a ter sentido no período pós-independência no tocante ao intelectual público politicamente engajado, cuja ação pressupõe o estado-nação e o espaço público da polis.
IHU On-Line - Notícias recentes têm demonstrado o seguinte quadro entre estudantes de pós-graduação no Brasil: de um lado, uma parcela dos estudantes sofre de ansiedade e depressão e, de outro, eles mencionam a falta de perspectiva após a conclusão dos cursos de doutorado. Como o senhor avalia esse fenômeno? Quais são as principais dificuldades de inserção de recém-doutores nas universidades?
Ivan Domingues - Esta situação me faz lembrar a resposta dada por Lévi-Strauss a uma pergunta que um jornalista lhe fez quando ele beirava os cem anos de idade e a humanidade avançava para o novo milênio: indagado pelos grandes problemas da humanidade na hora atual, ele respondeu: o problema é que tem gente demais, e nada pode ser feito, com os humanos beirando sete bilhões de habitantes. Poderíamos então dizer, ao fazer a analogia, que esse é o nosso problema atual, o problema do ensino superior brasileiro: antes não tínhamos doutores e estávamos em busca deles, mantendo as portas das universidades abertas; hoje temos doutores sobrando e as portas estão sendo fechadas. Tudo isso é muito triste e, para piorar as coisas, instalamos em nossas universidades um sistema cruel, comandado pela correria da produção a qualquer custo e os ditames do publish or perish, somando-se-lhes o tarefismo que vem tiranizando as federais, de modo que ninguém tem tempo para nada, os colegas transformam-se em rivais, e mesmo em inimigos, e o estudante seja em estorvo, seja em detalhe da maquinaria.
Porém, mais do que a questão antropológica ou da grandeza da população estudantil em nossas universidades, o que está por trás desta situação tão sofrida e de grande desalento são as estruturas, as amarras e os gargalos de um Estado patrimonialístico, e isto desde os tempos coloniais, com sua escala minguada e elitista, um país que funciona para 10% da população, barra a metade dos estudantes antes mesmo de concluir o ensino médio e os deixa fora das universidades, resultando num verdadeiro gargalo. Entendo que a prioridade das prioridades hoje é deixar o ancien régime para trás, e junto com ele o patrimonialismo e os privilégios, instalar o ensino de tempo integral desde a escola elementar até o ensino superior: então, descobriremos que lá onde há diversidade há riqueza e é da mudança de escala das atividades que o mais poderá sair do menos e a qualidade da quantidade, como nos países centrais e do primeiro mundo.
IHU On-Line - Também existe uma crítica de que no Brasil não há espaço para a atuação de pesquisadores em outras instituições que não a universidade. Como vê essa crítica? Por que a pesquisa é restrita às universidades? O que poderia ser feito nesse sentido?
Ivan Domingues - Esta questão se remete à anterior e nos leva de volta ao patrimonialismo, ao ancien régime que nunca vencemos e à escala rala e minguada das coisas. O resultado é conhecido: o gargalo do ensino médio, o desastre do ensino de ciências, a vergonha dos nossos escores do exame Pisa, com o país na rabeira do ranking, e as poucas instituições ou corporações extra-acadêmicas que deram certo sendo ou sucateadas, como a Embrapa, ou vendidas, como a Embraer. Deste jeito, terminaremos o novo milênio como o país das commodities e das elites dos 10%: na colônia com as casas-grandes, o senhor e o açúcar, hoje com o cerrado, o cowboy de 4X4 e o agronegócio.
Tudo somado, a saída não é e não será simples. Passa por pensar em um projeto de país que vá além da visão (neo)colonial que o destino parece nos reservar. Talvez aí possa entrar o intelectual cosmopolita brasileiro: para pensar nossa situação seria necessário também pensar nossos laços com o mundo e a dinâmica mundial como um todo. Aí, talvez, apareceria uma reflexão crítica não apenas local, mas também universal. Porém, esta possibilidade não é uma exclusividade da filosofia, mas aberta a outras áreas das humanidades.
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O intelectual cosmopolita globalizado é um outsider. Entrevista especial com Ivan Domingues - Instituto Humanitas Unisinos - IHU