19 Abril 2018
“Se não acontecer uma surpresa nesta quinta, Miguel Mario Díaz-Canel Bermúdez, aos 57 anos, será nomeado novo presidente do Conselho de Estado e de Ministros de Cuba. Desse modo, tornar-se-á o primeiro homem que, nascido depois do triunfo da Revolução Cubana de 1959, governará a ilha”, escreve Abraham Jiménez Enoa, jornalista cubano, em artigo publicado por The Clinic, Chile, 16-04-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há nos arredores do meu edifício no bairro de Vedado, Havana, um Audi preto estacionado (em Cuba ver um Audi é como ver um cometa espacial). A placa começa com a letra M, o que indica que pertence ao Ministério do Interior. Há também dois homens sérios, de bigodes espessos, que parecem alternar turnos de vigia: enquanto um está dentro do Audi, o outro caminha e vigia o bairro.
À distância, os dois tipos parecem robustos e com cara de poucos amigos. O que agora está fora do Audi observa com receio ao seu redor: as sacadas, as pessoas que vão e vêm, porém, sobretudo, examina sem pudor, de cima a baixo, as pessoas que entram no meu edifício.
Meu edifício é velho e raro. Foi construído ao final da década de 20 do século passado. São dois blocos de três andares que se comunicam através de uma passarela de colunas. Os apartamentos do bloco traseiro, justo onde vivo, têm sacadas que dão às costas dos apartamentos do bloco da frente e a dois pátios interiores que ficam ao costado da passarela. Os dois blocos de apartamentos fazem com que em seu intermédio se geste um eco potente e que o mínimo movimento se torne um estrondo.
De uma das casas do primeiro piso saem vozes misturadas. Vozes fogosas, despreocupadas e alegres. O apartamento tem a porta de trás aberta e, desde o corredor do edifício, passando a vista pelo pátio da esquerda, se pode ver meus vizinhos sentados a uma mesa larga.
Fazem a sobremesa de um almoço de domingo. Em uma das cadeiras, com o cabelo grisalho e a pele um tanto rosada, vestindo uma camiseta cinza sem acabamento e sustentando uma cerveja Presidente na sua mão esquerda está o vice-presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, acompanhado de sua esposa.
O homem, que provavelmente substituirá os irmãos Castro como presidente da ilha depois de 60 anos, está recostado na cadeira e conversa com normalidade sem gesticular demasiado. Díaz-Canel está com a mão livre, a que não segura a cerveja, esticada e escorada em um dos ombros de sua esposa Lis Cuesta.
Um dos meus vizinhos me diria algumas horas depois que o vice-presidente e sua esposa estiveram em sua casa e almoçaram porque sua mãe é amiga de Cuesta. Meu amigo também me dirá que Díaz-Canel é um “cara legal, engraçado”, que “toma seus traguinhos”, que foi ele “quem decidiu em Cuba colocar as partidas de futebol ao vivo” e que “torce para o Barça”.
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Se não acontecer uma surpresa nesta quinta, Miguel Mario Díaz-Canel Bermúdez, aos 57 anos, será nomeado novo presidente do Conselho de Estado e de Ministros de Cuba. Desse modo, tornar-se-á o primeiro homem que, nascido depois do triunfo da Revolução Cubana de 1959, governará a ilha.
Díaz-Canel é engenheiro eletrônico, graduado na universidade da sua província natal Villa Clara, porém sua carreira nunca esteve apegada à ciência, mas sim à política. É um dirigente criado nas entranhas da pirâmide formativa cubana de quadros do Partido Comunista.
Ainda que o vice-presidente cubano não tenha se formado em um ambiente militar como a imensa maioria da cúpula do poder da ilha, já se vestiu de verde-oliva alguma vez. Quando em 1982 terminou seus estudos na Universidade Marta Abreu, passou a trabalhar profissionalmente nas fileiras de uma unidade das Forças Armadas Revolucionárias nas quais esteve por três anos.
Depois Díaz-Canel voltou à universidade como professor e ali foi como começou a gestar sua ascensão na política. Ao final da década de 1980, alternou as aulas com a militância e se converteu em um dos rostos da União de Jovens Comunistas - UJC da província de Villa Clara.
A UJC é a antessala do Partido Comunista - PCC, o laboratório de quadros políticos, o cenário onde os meninos com credenciais demonstram seus dotes para seguir ascendendo na pirâmide institucional partidária.
Nos primeiros anos da década de 1990 em Cuba, quando o colapso do campo socialista fundiu a ilha em uma crise econômica que fez com que o PIB contraísse em 36%, Miguel Díaz-Canel tornou-se o segundo secretário do comitê nacional da UJC.
Em 1994, já nas fileiras do PCC, o comitê central encarregou Díaz-Canel do cargo de primeiro secretário provincial do partido de Villa Clara, uma espécie de prefeitura. E é daí que Cuba conhece aquele então jovem e promissor político.
A imagem de Díaz-Canel rompeu com os estereótipos dos dirigentes cubanos da época. Tinha cabelos longos que lhe davam aspecto de roqueiro, vestia calças jeans e camisas esportivas. A ilha, adaptada à seriedade dos uniformes militares bem passados, se surpreendeu ao presenciar a moda casual do jovem elegante.
“Qualquer um o via por qualquer lado na cidade, era jovem e se interessava por tudo. As mulheres se encantavam”, conta Alfredo Suárez, um villaclarenho, aposentado de 65 anos.
Mercedes Del Monte, 68 anos, que trabalhou no PCC provincial de Villa Clara nos anos que Díaz-Canel foi o primeiro secretário, disse: “É um homem sumamente eficaz e cumpridor, trabalhava até altas horas da noite e se preocupava com todos seus subordinados, inclusive, os de mais baixo escalão”.
Alejandro Almaguer, um pedreiro de 55 anos, recorda as passagens que fizeram Díaz-Canel ganhar muito adeptos em Villa Clara. “Cuba estava passando pela sua pior etapa no período especial, porém os dirigentes seguiam vivendo bem com seus privilégios. Miguel não; o homem andava de bicicleta quando os demais dirigentes iam em carros com chofer”.
Nos anos 1990, a ilha tinha tão pouco petróleo que era suficiente apenas para sustentar umas poucas horas aleatórias de energia elétrica à população durante o dia. Conta Almaguer que “o hospital da província, que era priorizado, um dia ficou sem eletricidade e Díaz-Canel foi, leito por leito, pedir desculpas, inclusive foi onde estava Guillermo Fariñas, um dissidente que estava hospitalizado por greve de fome”.
Durante seu período como dirigente em Villa Clara, Díaz-Canel se destacou por apoiar vários projetos culturais. Entre eles, festivais de música que impulsionaram sobretudo o rock na província, um gênero musical demonizado no país. Em Santa Clara, sob o olhar e aprovação de Díaz-Canel, se celebrou em Cuba, pela primeira vez, um espetáculo de travestismo.
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O Miguel Díaz-Canel que está descansando depois do seu almoço com cervejas e sorrisos largos na casa dos meus vizinhos, se assemelha mais ao Díaz-Canel feliz e enérgico que dirigiu a província de Villa Clara. O Díaz-Canel que hoje sai nos noticiários e nos jornais, o Díaz-Canel que foi se armando com o passar dos anos e sua ascensão política na ilha, é parco e cinza.
Parece que as responsabilidades acabaram tornando-o um homem cumpridor ao extremo. Essa classe de dirigente que se preocupa mais por não ficar mal ante seus superiores que por satisfazer as inquietudes sociais, e que cumpre com suas obrigações por mera obediência.
“É um homem sem matizes. Não desagrada, mas tampouco apaixona. Tem deixado claro que não será o homem da transformação, que chegou onde chegou por ser um cumpridor de ordens por excelência. Não há nada em seus discursos, em sua postura, que nos faça pensar que é um sujeito engenhoso”, disse Francisco Perdomo, professor do Instituto Superior de Relaciones Internacionales “Raúl Roa”.
Ao fim das contas, Díaz-Canel é um filho legítimo da geração de cubanos que nasceu nos primeiros anos da revolução. Aos que o auge e o ambiente revolucionário lhes instilaram manter a boca fechada diante do que está imposto. Uma geração incapaz de alçar a mão e se revelar diante do estabelecido.
Do PCC de Villa Clara, Díaz-Canel passou em 2003, por petição do comitê central e da burocracia política, a dirigir Holguín. Na província do nordeste, o dirigente não teve a transcendência que havia alcançado anteriormente, porém, definitivamente, já estava no radar dos Castro como uma das novas promessas nas quais se poderia confiar para a substituição geracional que biologicamente batia à porta da ilha.
Em 2006, Cuba teve uma reviravolta quando Fidel Castro adoeceu e entregou de maneira forçada seus poderes políticos a seu irmão Raúl.
Depois de um lapso do governo interino, em 2008 Raúl Castro assumiu de maneira oficial a presidência da ilha e em 2009 deu seu primeiro "golpe na mesa" com o qual Díaz-Canel se beneficiou.
Raúl Castro tirou oito ministros dos seus postos e quatro vice-presidentes do Conselho de Estado. Entre eles se encontrava dois pesos pesados da geração de jovens que, como Díaz-Canel, iam pouco a pouco ocupando cargos importantes dentro do aparato governamental: o chanceler Felipe Pérez Roque e Carlos Lage Dávila, vice-presidente e secretário do Conselho de Ministros.
Assim, em 2009 Raúl Castro entregou o Ministério de Educação Superior a Díaz-Canel, quem esteve como ministro até 2012. Nesse período o ministério implementou uma série de reformas impulsionadas por Díaz-Canel, que tinham como propósito elevar a ideologia socialista nas universidades cubanas.
“Por indicação da liderança máxima do país tivemos que desenvolver várias mudanças que estavam dirigidas a realizar um maior trabalho político ideológico entre os jovens. Vários planos docentes foram modificados”, afirma Magalys Almanza, trabalhadora do Ministério de Educação Superior.
Em 24 de fevereiro de 2013, Miguel Díaz-Canel tornou-se o primeiro vice-presidente do Conselho de Estado e de Ministros de Cuba e, pouco tempo depois, o único cubano que ousou sentar-se no escritório político com um tablet em suas mãos.
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No Facebook tem uma conta com o nome de Miguel Díaz-Canel Bermúdez que publica fotos e notícias do político. Provavelmente seja o único membro do Conselho de Estado que tem presença nas redes sociais.
Ainda que seja três décadas mais novo que Raúl Castro, Díaz-Canel não tem dito, nem feito nada que faça pensar que sua ideologia não seja marxista. Seus discursos estão carregados da mesma retórica e das mesmas consignas revolucionárias com que os políticos cubanos têm enchido os palanques desde 1959.
Em 2017, em um vídeo filtrado na internet se pode vê-lo expondo todo seu repertório dogmático em uma reunião com militantes comunistas quando mais forte soavam os rumores que o colocaram como o agente de mudança em Cuba.
Nas imagens se vê um Díaz-Canel zangado, molestado, que ataca os “projetos subversivos” com perfis social-democratas que, segundo ele, se escondem na emergente imprensa independente da ilha e sob o tapete dos pequenos empresários cubanos que estão surgindo com a aplicação da propriedade privada no país.
Em sua ascensão burocrática institucional Díaz-Canel tem deixado claro uma coisa: não se vê militar, mas sua educação é marcial. Esta semana, depois de 60 anos sob a tutela política dos irmãos Castro, Cuba terá um novo presidente. Um dia depois de o Conselho de Estado e de Ministros eleger o homem que guiará a linha política da ilha, se finalmente Díaz-Canel for eleito, poderá abrir uma garrafa de cidra e brindar pela presidência e seus 58 anos.
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Quem é Miguel Díaz-Canel, o substituto dos Castro em Cuba? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU