02 Setembro 2017
Embora sem pretensões políticas, “Últimos dias em Havana”, de Fernando Pérez expõe um país ambíguo, sensual e maroto, quase sempre oculto pelos clichês
O comentário é de José Geraldo Couto, publicado no blog do IMS e reproduzido por Outras Palavras, 27-08-2017.
Em nosso quase monolítico circuito exibidor, a mera presença de um filme cubano é um fato a ser valorizado. Sobretudo quando se trata de um filme muito bom, como Últimos dias em Havana, de Fernando Pérez.
É um daqueles dramas sociais que buscam um equilíbrio delicado entre estudo de personagens concretos e observação crítica do espaço histórico-geográfico em que se movimentam. Não muda o mundo nem o cinema, mas é uma obra íntegra e envolvente, temperada por um humor saboroso. Chega a lembrar o cinema social italiano pós-neorrealismo.
Em seu núcleo dramático está a amizade peculiar entre dois homens de meia-idade que dividem um apartamento num cortiço de Havana: Diego (Jorge Martínez), homossexual soropositivo que, debilitado pela doença, passa seus dias na cama, vendo filmes pornográficos, e Miguel (Patricio Wood), seu amigo de adolescência, que cuida dele e da casa e trabalha numa lanchonete.
Diego, embora próximo da morte, é exuberante, espirituoso, maroto. Miguel, ao contrário, é um homem lacônico e taciturno, que ocupa seu tempo livre tentando aprender inglês com um dicionário e uma versão em prosa de As you like it, de Shakespeare. Sua ideia fixa é migrar para os Estados Unidos, e ele vive à espera do visto que chegará pelo correio.
Em torno dessa relação central gravitam personagens diversos, todos plenos de contraditória humanidade: a tia perua decadente de Diego; sua sobrinha Yusi (Gabriela Ramos), grávida aos 15 anos; a velha negra Fefa (Carmen Solar), uma espécie de síndica informal do cortiço; o garoto de programa P3 (Cristian Jesus Pérez) etc.
Mais do que isso: a narrativa é porosa ao rebuliço da vida cotidiana na Habana Vieja, com suas habitações coletivas, sua algaravia, seus imóveis e automóveis caindo aos pedaços, sua pluralidade étnica, sua mistura inextricável de miséria e energia vital. Em muitos momentos, abstraindo o idioma e certos detalhes (como a presença de bicicletas de entrega, em vez de motoboys), poderíamos pensar que estamos no Brasil – mais precisamente na Bahia.
A decupagem é clássica, sem grandes invenções visuais, mas com algumas sutilezas dignas de nota. Há um aproveitamento sagaz da situação de contiguidade/promiscuidade implicada pelo ambiente de cortiço. Muitas coisas são vistas de passagem, por frestas, portas e janelas entreabertas, corredores parcialmente atulhados de cacarecos. Algo parecido com o desvelamento coletivo do hotel fuleiro de Amarelo manga, de Claudio Assis.
A câmera está sempre à altura do olho. Mas do olho de quem? Essa é a questão. Nas cenas no quarto de Diego, vemos tudo à meia altura, correspondendo ao nível dos olhos do personagem, ainda que sem adotar exatamente o seu ponto de vista. Uma cena, em particular, é admirável nesse aspecto. Começa com o quadro quase todo escuro, com uma única fresta vertical por onde vemos e ouvimos fragmentos de uma conversa de Diego com sua prima. Quando a prima sai do quarto, abre-se a porta do guarda-roupas e de dentro sai a adolescente Yusi, que estava ali escondida da mãe.
Outro ponto admirável é a desenvoltura com que se acompanham as caminhadas de Miguel pelas ruas de Havana, com seu contraste entre o ambiente diurno e o noturno. Compare-se o movimento deslizante das primeiras caminhadas com a última, filmada com uma brusca e dramática câmera na mão, sublinhando visualmente o estado emocional do personagem.
Há um comedimento, quase um pudor, que impede a queda no melodrama. Mesmo as pequenas epifanias suscitadas por música sublime recebem um álibi “realista”: uma ária de Händel sai da TV da lanchonete em que Miguel trabalha; uma sonata de Beethoven, do rádio do táxi-lotação que ele toma (numa das sequências mais belas do filme).
Permeando tudo, implícita ou explicitamente, está o dilema entre sair ou não sair de Cuba, que marca o cinema do país pelo menos desde Memórias do subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea. Vale reparar na diferença de atitude entre os mais velhos, que viveram os primeiros tempos da Revolução e ainda se pautam por suas questões e sua linguagem, e os jovens que se desinteressam da política e tendem a uma atitude pragmática, quase amoral, de viver da maneira mais prazerosa possível o dia a dia, momento a momento.
Últimos dias em Havana
Ficha técnica
Nome Original: Últimos días en la Habana
Cor filmagem: Colorida
Origem: Espanha
Ano de produção: 2017
Gênero: Drama
Duração: 92 min
Classificação: 12 anos
Direção: Fernando Perez
Elenco: Jorge Martinez, Yailene Sierra, Patricio Wood
Diego e Miguel viveram muitas coisas juntos em Cuba, mas neste momento estão num impasse. Diego é doente terminal de AIDS e Miguel, que sobrevive lavando pratos, sonha com um visto para os EUA.
Comentário de Neusa Barbosa, publicado por Cineweb, 09-08-2017.
Vencedor do prêmio de melhor direção no 27º. Cine Ceará para o veterano Fernando Pérez (de Suite Habana e La vida es silbar), o drama Últimos Dias de Havana tematiza o impasse vivido por uma Cuba em vias de transformação social e política, captado numa chave intimista – através da história dos parceiros Miguel (Patricio Wood) e Diego (Jorge Martínez).
Diego, doente de AIDS, é cuidado por Miguel, que trabalha como lavador de pratos num restaurante. O sonho de Miguel é emigrar para os EUA e ele vive à espera de um visto que nunca chega. Ele é introspectivo, num contraste total com Diego que, apesar de não sair da cama, injeta sua energia e imaginação numa verbalidade quase incessante. Ambos vivem confinados pelo limite da morte iminente de Diego e do mutismo de Miguel (uma interpretação introjetada e de alta qualidade do ator Patricio Wood, transmitindo seus sentimentos quase que apenas pelo olhar).
Em torno desse núcleo, somam-se diversos personagens coadjuvantes, como os parentes de Diego – ávidos por herdar seu apartamento (o que é também uma razão para que Diego estimule a partida de Miguel) -, um garoto de programa, as vizinhas de diversas idades, como a velha Fefa (Carmen Solar), e a prima adolescente Yusisleydis (Gabriela Ramos), que faz o contraponto de gerações com Diego. A câmera sempre capta imagens de uma Cuba desvalida, com imóveis desgastados e precariedade de abastecimento de água e luz, com habitantes lutando para levar adiante um cotidiano altamente problemático.
Uma cena emblemática coloca em foco a convivência do passado e do presente em Cuba, quando Miguel toma um táxi compartilhado, num dia de chuva, dirigido por um motorista que guarda no corpo sinais da participação cubana na guerra em Angola. Entre os passageiros, cria-se também um contraste de gerações, a partir de uma sutil discussão em torno de música, que põe em foco a questão da educação.
Nem por todo seu drama o filme deixa de ser impregnado de humor, marcado nas falas de Diego, que sinalizam um tom infiltrado de melancolia e amargura mas que nunca perde de vista um resistente amor por essa Cuba maltratada, contraditória, mas cheia de uma humanidade efervescente, que evoca a solidariedade do espectador, especialmente dos brasileiros, tão parecidos com os cubanos em tantas coisas. Basta olhar para os rostos que a câmera, documentalmente, capta pelas ruas dessa Havana tão visceral.
Partindo de uma história sugerida por um estreante, Abel Rodríguez, Pérez foi criando os meandros de um habilidoso melodrama que, aqui e ali, encontra em alguns excessos a afirmação da própria verdade. A princípio, o diretor pensou em fazer uma espécie de sequência de Morango e Chocolate, tendo mesmo testado para os papeis principais Jorge Perugorría e Vladimir Cruz, intérpretes do premiado filme de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, indicado ao Oscar de filme estrangeiro em 1995. Mas afastou-se deste caminho para dar espaço a uma história que flui procurando construir pontes entre diversas gerações e visões sobre uma Cuba que pulsa na alma daqueles que a conhecem por dentro.
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Um filme com a cara das contradições de Cuba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU