Por: André | 31 Março 2016
Até a incerteza do futuro é exuberante em Cuba. A aproximação com os Estados Unidos, a visita do presidente norte-americano Barack Obama, a paulatina abertura econômica, os gestos de reengate cultural com os representantes mais famosos do capitalismo – Rolling Stones, Chanel, Google – e a inesgotável efervescência de Havana desenham uma frente de transformações cujo alcance é desconhecido.
Poucos entendem melhor Cuba e sua Revolução do que o grande jornalista norte-americano Jon Lee Anderson. Autor da até agora mais completa, rigorosa e memorável biografia de Ernesto Che Guevara (Che Guevara. Uma biografia. Editora Objetiva) Anderson pertence a essa dinastia de cronistas para quem o que conta e pensa é arrancado da vida. Zero jornalismo falso de cadeira, nada desse jornalismo imóvel e pedante cuja fonte é a internet.
Anderson vive e narra. Foi correspondente em Cuba nos anos posteriores à queda do Muro de Berlim (1989) e percorreu depois os conflitos do mundo contemporâneo como poucos. Membro do staff da revista The New Yorker, nestas semanas de delírio que Cuba viveu após a visita do presidente Barack Obama e o concerto dos Rolling Stones, Anderson esteve na capital cubana.
Nesta entrevista exclusiva, Anderson analisa a relação de forças entre os dirigentes cubanos ao mesmo tempo que coloca de relevo a consistência das especificidades culturais históricas de Cuba como elemento chave da resistência e da elaboração de um novo modelo social e econômico. “Em Cuba, não vão abrir McDonald’s como em Praga e Varsóvia”, prognostica o jornalista norte-americano.
A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada por Página/12, 30-03-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Exatamente uma semana depois da visita de Barack Obama a Cuba, Fidel Castro publicou um artigo onde diz, entre outras coisas: “Não necessitamos que o império nos presenteie nada”. Trata-se de uma ruptura com o seu irmão Raúl?
É um pouco o que estávamos vendo por parte de Fidel Castro desde o princípio da negociação com os Estados Unidos que Raúl começou. Fidel Castro manifesta ao mesmo tempo seu receio e seu respeito pelas decisões tomadas por seu irmão. Fidel se expressa desde seu status de líder histórico da Revolução. A população, em Cuba, sabe que é assim: ele não está de acordo com tudo isso. À medida que se sobe na escala do poder há mais matizes. Mas não creio que em nenhum caso isto signifique uma ruptura. Pelo contrário, a crítica tem seu espaço e Raúl avançou com isso.
Não há ruptura no sistema, trata-se antes de uma nova fixação do setor mais doutrinário da Revolução Cubana. Na realidade, o que Fidel está dizendo é justamente de que se trata da Revolução Cubana, ou seja, o orgulho nacional, o espírito soberanista. Este é o país que menos soberania tinha até a chegada da Revolução. Então, no fundo, embora a parte socialista da revolução entre em uma fase minguante, os históricos reivindicam a essência soberanista e dizem: diante de vocês, sempre estaremos em alerta e em vigília. Fidel Castro é mais cético em relação a esse processo.
Você conhece muito bem este país. Para você, a Revolução Cubana tem um destino ou é chamada a desaparecer?
É muito prematuro para que me ponha no plano de oráculo. Eu diria, não obstante, que até o momento a Revolução prevaleceu, embora não seja a mesma revolução. De fato, a Revolução Cubana teve muitas etapas. Se compararmos a etapa de hoje com aquela de 1963, ou com a de 1983, vemos grandes diferenças. Eu vivi aqui logo depois do colapso da União Soviética e vi a revolução em apuros. Isto não se sente hoje em dia.
O fator diferente entre hoje e há 30 anos é o fator da globalização, da qual, parece, ninguém está a salvo. Um país ilha como Cuba eu creio que pode durar mais tempo à margem da grande corrente globalizadora, também por sua história revolucionária independentista. Os cubanos aprenderam a resolver as coisas por si mesmos e creio que isto vai ter grande incidência no futuro. De alguma maneira, Fidel quis dizer que os cubanos não estão aqui de pernas para cima. Há um setor da população cubana que sempre reclama mudanças, muitos querem deixar o país, outros estão voltando. Pela primeira vez, estamos com um fluxo em ambas as direções. Creio que neste momento há uma miscelânea de correntes. Em Cuba há futuro econômico.
Mesmo que seja combatido e é difícil, pela primeira vez vislumbram-se possibilidades de mudança, veem-se possibilidades de futuro material dentro da ilha inclusive para os jovens. O que os revolucionários históricos como Fidel têm que medir é saber até que ponto nos abrimos aos gringos para que nos deem o necessário para continuar mantendo o bote flutuando. A pergunta é: em que momento fica perigoso, em que momento começamos a perder as lealdades da população, em que momento o Estado se retira tanto que há mais cidadãos que dependem mais de si mesmos do que de nós, em que momento perdemos a alma e os corações da população? Este é a grande via-sacra que Cuba e a Revolução têm neste momento.
Mas não devemos esquecer que a teve nos últimos 25 anos. Fidel era um personagem muito forte e muito carismático que conseguiu fazer com que prosseguisse até a chegada de Chávez e substituiu a URSS em termos práticos, em bonança comercial. Com isso conseguimos encobrir muitas das coisas que tinham se deteriorado. Também teve que ir vendo até que ponto o país se abria ao turismo. Embora o turismo traga bens econômicos, também traz consigo uma deterioração cultural não apenas em Cuba, mas em qualquer parte do mundo. Então, o que lhe resta de autóctone? Finalmente, esse é o grande desafio. Agora o enfrentam com os norte-americanos.
A força avassaladora da cultura e da economia norte-americana é tão grande que poucos resistem a ela. O que está acontecendo é muito interessante. Os dois irmãos continuam vivos e Raúl está lidando com tudo isto. Fidel é mais resistente, por razões óbvias. É como o velho sábio, como o avô que diz aos netos para que não aceitem caramelos de estranhos que os abordam na esquina. Cuidado com eles, porque podem levá-los.
Há uma espécie de aposta malsã no capitalismo ocidental com respeito a Cuba. Alguns apostam numa espécie de “capitalismo do Caribe”, outros em um destino semelhante ao que conheceram a Polônia ou a República Checa depois da queda do Muro de Berlim.
Não acredito nisso. Devemos recordar que muito antes da diferença com os Estados Unidos os cubanos brigaram durante décadas contra os espanhóis. Aqui há um espírito duro com o que vem de fora que data do século retrasado. Eles têm um grande espírito nacional e não creio que isto mude, por mais que haja atrativos no grande país do Norte. Na medida em que os cubanos tiverem possibilidades de ir e vir, de tirar o que querem da relação com os Estados Unidos sem ter que mudar tudo em troca dessa mesma relação, tudo isto será saudável para a economia cubana.
Desde que a nomenclatura possa servir como guardiões da cultura cubana, de que estejam conscientes de tudo o que podem perder, eu penso que Cuba tem um grande futuro, inclusive com cultura própria. Eles não têm por que abrir um McDonald’s se não quiserem. Podem entregar porções, como fizeram durante o período especial, a italianos, a espanhóis, a chineses ou a canadenses, menos aos gringos. Tudo isto não tem por que ser tão politizado.
Eles necessitam de ajuda técnica e talvez de gestão em determinadas coisas. Além disso, podem resolver o seu futuro como quiserem. Eu não vejo que isto vá ser uma República Checa ou a Polônia! Há muitas pessoas que estão convencidas de que isto já terminou, mas conhecendo Cuba e os cubanos não creio que seja assim. Não haverá McDonald’s como em Praga ou Varsóvia.
Por acaso, em escala global e particularmente latino-americana, não está sendo jogado em Cuba a elaboração de um novo modelo de desenvolvimento econômico e humano, uma espécie de equilíbrio misto entre um liberalismo menos voraz e um socialismo mais aberto?
Sim, eu creio que sim. Quando se analisa o discurso dos revolucionários cubanos não é muito diferente das reivindicações dos países socialdemocratas da Escandinávia. Quando se referem às conquistas do socialismo estão falando em manter o papel do Estado no que diz respeito à saúde, à educação, à segurança e à moradia para seus cidadãos. Seu grande desafio é então como solucionar isto. O mesmo desafio enfrentam os países social-democratas do norte, que veem como tudo isto está sendo minado. Em Cuba, o futuro será misto. Diria que, em bom cubano, o futuro será sincrético. Haverá um pouco de candomblé e socialismo...
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A Revolução Cubana prevaleceu”. Entrevista com Jon Lee Anderson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU