A “palavra-chave das aspirações chilenas” na elaboração da nova Constituinte “é dignidade”, diz a pesquisadora
A eleição para a elaboração de uma nova Constituinte chilena, realizada no final de semana dos dias 15 e 16 de maio deste ano, indica que "o Chile está prestes a escrever uma das Constituições mais democráticas e populares da história da América Latina", diz Joana Salém Vasconcelos, doutora em História Econômica e professora da Faculdade Cásper Líbero, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
As consequências sociais da Constituição vigente no Chile, "imposta pela ditadura de Augusto Pinochet em 1980", têm intensificado as manifestações que ocorrem no país desde 2006. Segundo Joana, a atual Carta Magna instaurou um "Estado subsidiário", que "não tem nenhuma obrigação de garantir direitos sociais". "Por isso, a saúde é extremamente cara, a educação básica é voucherizada e desigual, a previdência é individualista, compulsória e capitalizada por seis grandes corporações chamadas AFP (Administradoras de Fundos de Pensão). Em consequência das privatizações generalizadas e da escassez de gratuidade, as taxas de endividamento da população chilena são altas e a dívida familiar atua como uma forte pressão no disciplinamento do trabalho", explica.
A seguir, a pesquisadora comenta o resultado das eleições e as 17 cadeiras conquistadas pelos representantes indígenas. A eleição deles, comenta, são "uma ação afirmativa" das lutas sociais em curso no país nos últimos anos. "A bandeira mapuche se tornou um símbolo do estallido, da luta por outro paradigma civilizatório, que não viole os direitos da natureza, não conviva com o etnocídio continuado da colonização em pleno século XXI. Contra isso, será apresentada a criação de um Estado Plurinacional, que considere formalmente todas as nações indígenas do país em sua soberania e autonomia. Mas não basta colocar essas palavras no papel. A única forma de garantir a plurinacionalidade é com a garantia territorial. Então o grande desafio dos indígenas na Constituinte será formar as coalizões com as esquerdas para obter 2/3 na garantia da recuperação das terras usurpadas, a proteção e soberania de seus territórios, o respeito aos seus sistemas de autogoverno, o fim da violação sistemática de suas terras por grandes corporações e por forças repressivas. Esse tema será um dos mais difíceis da nova constituinte, porque o poder econômico, militar e político das grandes madeireiras e dos latifúndios ainda é maior", adverte.
Joana Vasconcelos (Foto: Arquivo pessoal)
Joana Salém Vasconcelos é graduada em História pela Universidade de São Paulo - USP, mestra em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutora em História Econômica pela USP. Especialista em América Latina, investiga a história das reformas agrárias, das esquerdas e das revoluções socialistas latino-americanas, articuladas à história do pensamento marxista, da teoria da dependência e da teoria do desenvolvimento. Entre suas publicações, destacamos História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo na periferia (São Paulo: Alameda, 2016) e Cuba no século XXI: dilemas da revolução (São Paulo: Elefante, 2017).
IHU On-Line - Que avaliação você faz da eleição dos integrantes que irão redigir a nova Constituinte e da divisão das cadeiras entre os diferentes setores da sociedade?
Joana Salém Vasconcelos - Pela primeira vez na história do Chile, pessoas eleitas pelo voto popular vão escrever uma Constituição. A Constituição vigente no país atualmente foi imposta pela ditadura de Augusto Pinochet em 1980. A Constituição anterior, de 1925, foi redigida por um comitê de notáveis. Entre os 155 deputados constituintes eleitos agora, 37% estudaram em escolas públicas e isso diz muito sobre sua origem social. No Chile, como no Brasil, as escolas são marcadores da diferença de classe: as elites se concentram em colégios privados caros. Por isso, a escola pública é um indicador de que muitos dos eleitos vêm de camadas populares. Além disso, 50% das cadeiras estão ocupadas por mulheres (o que é inédito na história do mundo) e 11% por lideranças indígenas, entre eles a machi Francisca Linconao. A machi Linconao é uma liderança histórica na luta pela recuperação das terras usurpadas dos mapuche na Araucanía, que já foi presa injustamente diversas vezes pelo Estado chileno.
Em poucas palavras, o Chile está prestes a escrever uma das Constituições mais democráticas e populares da história da América Latina. Em termos ideológicos, a esquerda partidária tem 18%, o centro partidário tem 16% e a direita partidária tem 24%. As listas de independentes pendem para a esquerda: a Lista del Pueblo, de esquerda, teve 15%; a Lista de Independientes por la Nueva Constitución, de centro-esquerda, teve 7%; e 8% são independentes sem lista, que se candidataram com força local.
IHU On-Line - Em que contexto histórico se deu a eleição da nova Constituinte do Chile?
Joana Salém Vasconcelos - É o contexto do Chile pós estallido social de outubro de 2019. Há um antes e depois definitivo na história do país. Os protestos contra o neoliberalismo sempre existiram no Chile democrático. Cresceram com a luta dos estudantes por educação gratuita em 2006 e 2011, e com o movimento dos aposentados contra a capitalização da previdência, o No+AFP, em 2015 e 2016. Em 2019, todos os movimentos antineoliberais da sociedade chilena confluíram para um único e caudaloso terremoto social. As elites políticas tentaram controlar a situação com repressão e com tanques militares nas ruas, mas diante deles, os protestos só cresceram e as vozes contra a repressão repercutiram pelo mundo inteiro. Um exemplo foi a performance Un violador en tu camino, do coletivo independente Las Tesis, que foi traduzida para mais de dez línguas e representada em mais de 20 países. Na performance, o Estado é acusado de “violador”, ou seja, estuprador e patriarcal.
Em 31 de janeiro de 2020, o Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile contabilizou mais de 22 mil presos; 3.746 feridos em protestos, sendo 282 crianças; 879 denúncias de tortura; 427 pessoas com traumas oculares; 183 denúncias de violência sexual; e 27 mortes. Com o Acordo pela Paz Social, assinado por partidos de direita, centro e esquerda no dia 15 de novembro, se estabeleceu um itinerário constituinte conservador, rejeitado pelas ruas. As esquerdas se dividiram, mas isso não foi suficiente para fragilizá-las na disputa eleitoral de maio. A politização popular avança a passos largos no país e existem chances reais de derrota do modelo pinochetista do neoliberalismo.
IHU On-Line - Que fatores sociais, econômicos e políticos contribuíram para a decisão de se elaborar uma nova Constituinte?
Joana Salém Vasconcelos - O Estado subsidiário é o conceito neoliberal que define a Constituição de 1980, formulada pelos Chicago Boys e por Jaime Guzmán, um jurista de extrema direita. Significa que o Estado chileno não tem nenhuma obrigação de garantir direitos sociais, porque seu caráter é subsidiário, ou seja, vai atuar apenas nas franjas do setor privado, onde não há rentabilidade de negócios. Por isso, a saúde é extremamente cara, a educação básica é voucherizada e desigual, a previdência é individualista, compulsória e capitalizada por seis grandes corporações chamadas AFP (Administradoras de Fundos de Pensão). Em consequência das privatizações generalizadas e da escassez de gratuidade, as taxas de endividamento da população chilena são altas e a dívida familiar atua como uma forte pressão no disciplinamento do trabalho. O direito à greve no país é restrito e os sindicatos foram fragilizados de maneira avassaladora por um mercado de trabalho com predomínio de contratos temporários.
Qualquer tentativa do Estado de assegurar direitos promovendo serviços públicos de qualidade pode ser constitucionalmente bloqueada pelo mercado, alegando que o Estado está ferindo as liberdades de mercado e o direito de concorrência. As liberdades de mercado são sagradas no Estado subsidiário, importam muito mais do que a qualidade de vida das pessoas. Por isso, qualquer confronto ao neoliberalismo chileno é um confronto à Constituição de Pinochet.
IHU On-Line - O que essa eleição expressa acerca dos anseios da sociedade chilena?
Joana Salém Vasconcelos - A sociedade chilena expressa o desejo por bem-estar social, saúde e educação públicas gratuitas e de qualidade, que respeite os idosos com aposentadorias dignas. Uma sociedade que respeite os direitos dos povos indígenas aos seus territórios roubados pelos militares e pelas grandes corporações da madeira, que destruíram a reforma agrária de Salvador Allende. Uma sociedade que retome sua soberania com a nacionalização do cobre, hoje um grande negócio privatizado que não oferece sua riqueza para o conjunto da cidadania, mas sim para um punhado de investidores. Uma sociedade em que a água seja um direito social inalienável, ao contrário do que determina o Código de Águas de Pinochet (ainda vigente), que cria um mercado especulativo de recursos hídricos inimaginável em qualquer lugar do mundo. A palavra-chave das aspirações chilenas é dignidade. Foi o novo nome dado pelos manifestantes de 2019 à praça Itália, no centro de Santiago, que se tornou a praça Dignidade. Por isso o Partido Comunista e a Frente Ampla hoje confluem em um campo político chamado Chile Digno.
IHU On-Line - Uma surpresa da eleição foi o número de cadeiras conquistadas pelos chamados independentes, que obtiveram 48 cadeiras. Como você interpreta essa categoria?
Joana Salém Vasconcelos - Os independentes da Lista del Pueblo (15%) são as “esquerdas das ruas”, insatisfeitas com os partidos de esquerda que assinaram o Acordo pela Paz Social em 15 de novembro. Esse Acordo era problemático porque definia o quórum de 2/3 para aprovação da nova Constituição (o que foi mantido até agora por lei), uma armadilha pinochetista já conhecida dos chilenos. A Constituição de 1980 também tinha um quórum de 2/3 para ser reformada, junto com um sistema eleitoral binomial que criava duopólios e impedia a formação de maiorias reformistas capazes de alterá-la substancialmente. Com o quórum de 2/3, a direita só precisa de 1/3 para vetar a ruptura contra o neoliberalismo. Outro problema do Acordo foi a omissão completa em relação às responsabilidades do governo pela repressão dos manifestantes.
As ruas estavam chorando seus mortos, curando seus feridos, acolhendo mulheres violentadas pelas forças de Estado, enquanto alguns parlamentares da Frente Ampla (agrupamento de partidos originado dos protestos estudantis de 2011) estavam reunidos com Piñera para assinar um pacto que nada dizia sobre violência de Estado. O Partido Comunista não assinou o acordo e apresentou uma acusação constitucional contra Piñera por violação de direitos humanos.
Por isso, os comunistas se tornaram rapidamente o polo reorganizador da credibilidade da esquerda partidária, com Daniel Jadue (alcalde da Recoleta) como presidenciável em novembro de 2021. Já os independentes da Lista de Independientes por La Nueva Constitución (7%) são mais ligados ao centro, bases sociais desapontadas com o PS e com a DC, que resolveram se organizar pela autorrepresentação. Outros independentes sem lista (8%), de perfil local e base comunitária, estão sendo contatados pela Lista del Pueblo para formar uma bancada da esquerda independente. São ativistas autorrepresentados, que deixaram todos os partidos chilenos perplexos, sobretudo a direita, que amargou com 1/4 das cadeiras, não conquistando seu almejado poder de veto.
IHU On-Line - Outra surpresa da eleição foram as 17 cadeiras conquistadas pelos representantes indígenas. Quais devem ser as pautas prioritárias deles e como elas possivelmente entram em convergência e divergência com outros setores da sociedade?
Joana Salém Vasconcelos - Na verdade, não foi uma surpresa. As 17 cadeiras indígenas são uma ação afirmativa, reservadas pela lei nº 21.298, conquistada pelas lutas sociais. A bandeira mapuche se tornou um símbolo do estallido, da luta por outro paradigma civilizatório, que não viole os direitos da natureza, não conviva com o etnocídio continuado da colonização em pleno século XXI. Contra isso, será apresentada a criação de um Estado Plurinacional, que considere formalmente todas as nações indígenas do país em sua soberania e autonomia.
Mas não basta colocar essas palavras no papel. A única forma de garantir a plurinacionalidade é com a garantia territorial. Então o grande desafio dos indígenas na Constituinte será formar as coalizões com as esquerdas para obter 2/3 na garantia da recuperação das terras usurpadas, a proteção e soberania de seus territórios, o respeito aos seus sistemas de autogoverno, o fim da violação sistemática de suas terras por grandes corporações e por forças repressivas. Esse tema será um dos mais difíceis da nova constituinte, porque o poder econômico, militar e político das grandes madeireiras e dos latifúndios ainda é maior.
IHU On-Line - À luz dos protestos de 2019 e da atual situação econômica, política, social e ambiental do país, quais, na sua avaliação, serão as pautas centrais a serem discutidas no processo de elaboração da nova Constituinte?
Joana Salém Vasconcelos - As pautas centrais serão: a Plurinacionalidade do Estado e a recuperação da soberania territorial dos povos indígenas; a nacionalização da água e seu estabelecimento como direito social inalienável; a nacionalização do cobre e destinação do seu excedente para financiar direitos sociais; a criação de um Estado de Bem-Estar social, que assegure os direitos gratuitos à saúde e educação de qualidade; a valorização do trabalho, o fortalecimento dos direitos laborais, incluindo o direito universal à greve, e salários mínimos dignos; e a criação de normativas ecológicas, que criem uma nova relação da sociedade chilena com a natureza. Todos esses assuntos enfrentam poderes constituídos de longa duração. Portanto, o embate será da ruptura com um passado colonial e suas reinvenções modernas.
IHU On-Line - Que avanços são esperados na nova Constituinte em relação à anterior?
Joana Salém Vasconcelos - O fim do Estado subsidiário e neoliberal, estabelecendo o reconhecimento de direitos econômicos, sociais, políticos e territoriais de todas as nações que habitam o Chile. A Constituição anterior é autoritária, feita na ditadura. A ruptura que se almeja é total.
IHU On-Line - Que mudanças vislumbra acerca do sistema previdenciário privado, que é uma herança do governo Pinochet?
Joana Salém Vasconcelos - O movimento No+AFP elegeu representantes, sobretudo na Lista del Pueblo. Eles propõem um sistema previdenciário tripartite (financiado por Estado, empresa e trabalhadores, e não apenas por trabalhadores), solidário (em que a geração jovem financia a previdência dos idosos e é financiada no futuro, eliminando as contas individuais de capitalização, como é hoje) e estatal (eliminando-se completamente as AFP e criando-se um órgão previdenciário sem fins lucrativos). A proposta é guiada pelas garantias de dignidade na velhice, com pensões mínimas suficientes para se viver bem. Isso envolve direitos a medicamentos gratuitos e um sistema de saúde apto a atender idosos de baixa renda sem endividá-los. Para o No+AFP, a previdência não pode ser um negócio, como é no Chile desde 1979. Na ditadura, a capitalização da previdência foi imposta na ponta do fuzil, as pessoas não tiveram escolha. Hoje querem ter escolha.
IHU On-Line - Como você avalia a repercussão da Constituinte Chilena na mídia, mas também nos movimentos sociais e partidos políticos, no Brasil? O processo da Constituinte, desde as manifestações às eleições, pode gerar impactos aqui?
Joana Salém Vasconcelos - A imprensa brasileira não repercute tanto as notícias latino-americanas, e quando o faz, em geral, é de maneira rápida e superficial. O Brasil tem uma crise estrutural de identidade, porque os brasileiros via de regra não se consideram latino-americanos e se interessam pouco pelos vizinhos. Com as redes sociais e os novos meios de comunicação alternativos, as notícias repercutem mais de maneira autônoma. Hoje, se um brasileiro quer entender o que está acontecendo no Chile, não vai recorrer à imprensa tradicional, que não lhe oferecerá muito, mas sim à imprensa alternativa e aos perfis de redes sociais de comunicadores ativos no tema latino-americano. As esquerdas brasileiras vibram com o Chile, com toda razão. Mas é fundamental conhecer as armadilhas no caminho, para não se comemorar de maneira ingênua.
IHU On-Line - A Constituinte traz alguma projeção para as próximas eleições presidenciais, que ocorrem em novembro deste ano? Se sim, quais?
Joana Salém Vasconcelos - Esse é um grande tema. As eleições de novembro podem alterar a correlação de forças da Convenção Constituinte de maneira decisiva. Com uma maior bancada das esquerdas no Congresso, o que é praticamente inevitável em novembro, será possível desarmar algumas blindagens criadas pelo governo Piñera para bloquear as mudanças. Entre elas, leis que supostamente reduzem a soberania total da convenção, restringindo seu poder de ação. Como a lei nº 21.200, que determina que a Convenção não pode violar tratados internacionais assinados pelo Chile. Mas o Chile é signatário de uma porção de tratados no contexto da geopolítica neoliberal, que estabelecem ingerências sobre a política econômica interna, especialmente relacionadas ao extrativismo, ao fluxo de capitais e à prioridade do Estado em salvaguardar as liberdades de mercado.
A construção de um novo paradigma de bem-estar social e da dignidade popular envolve, necessariamente, a ruptura com alguns tratados internacionais. Haverá um choque. Ou a Convenção ignora a lei 21.200 e se autodeclara soberana, ou o projeto popular será bloqueado. Se as esquerdas se desempenharem bem nas eleições parlamentares de novembro, podem desarmar a blindagem de dentro para fora das instituições. Se não, a mobilização popular pode desarmar, de fora para dentro. O conflito será inevitável. Para presidência, Daniel Jadue (PC) e Gabriel Boric (FA) são candidatos nas primárias do campo Chile Digno, com ampla preferência pelo primeiro. Jadue tem grandes chances de ir ao segundo turno e, a depender de quem vai enfrentar, pode ganhar. Um comunista na presidência do Chile é um fato inédito, só comparável à eleição de Allende em 1970, que era socialista.