12 Março 2021
No texto abaixo, o sociólogo chileno Andrés Kogan Valderrama traça um roteiro do protagonismo estudantil no Chile, nos últimos vinte anos, começando pelo mochilaço de 2001 e desembocando na revolta de 2019.
O artigo é publicado por OPLAS, 10-03-2021. A tradução é do Cepat.
No Chile, no próximo mês de abril, não será inédito apenas ser a primeira vez que serão escolhidos governadores/as e constituintes para o país, mas também porque se completarão 20 anos do chamado primeiro mochilaço estudantil do ano 2001.
A importância daquele primeiro mochilaço não só é crucial para o desenvolvimento do movimento estudantil das últimas duas décadas, como também para a futura crítica estrutural ao modelo de sociedade imposto no Chile, durante a ditadura, e aperfeiçoado com a volta à democracia.
Para entender a relevância deste primeiro grande marco estudantil, primeiro é preciso revisar a situação política do Chile nos anos 1990, marcada por um período de consenso neoliberal entre a direita pinochetista e uma social-democracia de mercado (Concertación), que formaram um duopólio político que privatizou praticamente tudo o que existe.
Assim, por meio dos grandes meios de comunicação concentrados do país, se construiu a ideia do “Jaguar da América Latina”, que se sustentará discursivamente graças a altas taxas de crescimento econômico e redução sustentada da pobreza e indigência de renda, acima de outros países vizinhos.
Sendo assim, no campo da educação também se venderá a ideia de um país modelo para a região, onde as altas coberturas nas matrículas escolares e universitárias serão os pilares para defender uma educação de mercado, não vistas em qualquer outro país do mundo.
Parece-me que a figura de José Joaquín Brunner talvez tenha sido a mais importante durante esse período, como grande ideólogo daquela década de consensos, presidindo a “Comissão Nacional para a Modernização da Educação”, em 1994, que assentou as bases de uma política educacional centrada em maior investimento do Estado, mas quase sem nenhum tipo de regulamentação ao negócio com colégios, centros de formação técnica, institutos profissionais e universidades.
Como consequência, embora essas políticas tivessem aumentado consideravelmente as matrículas de estudantes, o custo para a educação pública foi catastrófico e dificilmente será possível reverter com o tempo. Isto foi acompanhado de um aumento no gasto das famílias em educação, que chegou a valores inacreditáveis (41,1% de sua renda), muito diferente de países da região, da OCDE e do próprio Estados Unidos (28%), deixando em evidência o fundamentalismo de mercado implementado no Chile.
Se em 1990, as matrículas escolares chegavam a 70% no Chile, atualmente, não passam de 35%, o que é escandaloso para um Estado que se diz democrático. A mesma situação acontece com a educação universitária, com as matrículas estatais não passando dos 15%, o que demonstra que a intenção política era acabar com a educação pública, por meio de uma retórica de maior cobertura e qualidade, que na prática não significou outra coisa a não ser maior lucro e a mercantilização de um direito tão básico para qualquer país [1].
Mas isso não importou para a elite política do Chile e, a partir dos grandes meios de comunicação, Brunner passou a ser considerado o grande especialista em educação no país, apesar do fato de que era uma pessoa sem nenhum título universitário e de ter falsificado seus antecedentes, durante anos, apresentando-se no mundo político, acadêmico e midiático como sociólogo da Universidade Católica do Chile e doutor pela Universidade de Oxford [2].
Por sorte, iniciará um questionamento a essas políticas de mercado em educação e ao próprio Brunner, bem como às grandes agremiações grupos estudantis dos anos 1990, que eram controladas pelos partidos políticos tradicionais e funcionais às políticas de mercado da época.
A Federação de Estudantes Secundaristas do Chile – FESES, dirigida pelo Partido Comunista, e a Assembleia de Centros de Alunos de Santiago – ACAS, subordinada aos partidos da Concertación (Partido Socialista, Partido pela Democracia, Democracia Cristã e Partido Radical), começaram a ser questionadas por não representar as demandas das e dos estudantes.
Além disso, o chamado Parlamento Juvenil, criado em 1997, também é questionado por ser uma plataforma de cooptação de dirigentes estudantis pelos mesmos partidos políticos que implementaram e administraram um modelo educacional que só via os estudantes como meros meios para continuar aprofundando a mercantilização do escolar.
Foi assim que, no ano 2000, esse descontentamento desembocou na Assembleia Coordenadora de Estudantes Secundaristas – ACES, que não só foi fundamental para o mochilaço do ano 2001, como também para a posterior articulação do Movimento Estudantil entre secundaristas e universitários.
O interessante na ACES, que faz dela uma das organizações críticas mais importantes do Chile, nos últimos 20 anos, é o seu caráter fortemente assembleísta, a partir das bases e horizontal, e questionador tanto do fundamentalismo de mercado como de qualquer tipo de autoritarismo proveniente do mundo da esquerda estadocêntrica.
Não por acaso, sua luta articula visões provenientes do anarquismo, feminismo, ecologismo, animalismo, anticolonialismo e um forte questionamento ao adultocentrismo, que inferiorizou e infantilizou violentamente as diferentes juventudes que quiseram ser sujeitos políticos para a transformação social.
Essas lógicas adultocêntricas foram muito bem estudadas pelo sociólogo chileno Klaudio Duarte Quapper, em trabalhos sobre juventudes, quando mostra como nos anos 1990 se construiu, midiaticamente, a ideia de que os jovens chilenos “não estavam nem aí com nada”, sendo vistos como seres apáticos, indolentes e sem nenhum tipo de motivação ou compromisso com o país.
Assim, durante 2001, inicia-se um processo de organização e articulação do movimento estudantil, liderado pela ACES, que se distancia dos partidos políticos tradicionais e começa a questionar os fundamentos da sociedade de mercado imperante, que se sustentava graças a lógicas gerenciais de gestão escolar (provas padronizadas) e de disciplinamento dos corpos, com as e os estudantes sendo considerados seres passivos, que só precisavam memorizar e receber conteúdos, muitas vezes, completamente descontextualizados.
No caso dessa primeira grande mobilização de abril de 2001, a crítica se deu no marco da chamada modernização do transporte público, quando as empresas privadas eram as encarregadas por produzir e administrar o chamado passe escolar (cartão para o uso nos ônibus), o que evidenciou o abandono do Ministério de Educação no Chile - MINEDUC, que só reproduzia as lógicas subsidiárias do Estados.
Sendo assim, a ACES exigiu que o MINEDUC se encarregasse do passe escolar, para que não existissem mais aumentos arbitrários no custo da passagem. A negativa do governo de Ricardo Lagos Escobar não demorou, o que gerou maior incômodo e organização de parte dos estudantes, gerando uma Frente Contrária aos Aumentos e um chamado à paralisação completa das escolas, no dia 9 de abril de 2001.
Finalmente, as grandes pressões e a manifestação em massa dos estudantes, faz o governo recuar e o MINEDUC passar a administrar o passe escolar, o que sem dúvida se torna um marco fundante de um processo político estudantil que será apenas o início de muitas outras ações cada vez mais articuladas com outros movimentos sociais, como a chamada Revolução dos Pinguins (2006), o Movimento Social pela Educação (2011) e a própria Revolta Popular (2019), em que o salto das catracas realizado pelos secundaristas, no metrô de Santiago, foi fundamental para o que veio depois.
Em síntese, de acordo com o que foi destacado, é possível dizer que o poder constituinte começou a ser construído pelos próprios estudantes secundaristas, a partir do ano 2001, que embora serão excluídos desta nova eleição de candidatos para redigir a nova constituição no Chile, certamente estarão presentes e suas demandas serão sentidas nas escolas, nas ruas, nos bairros, nos conselhos e em todos os espaços possíveis.
Algo que já estão fazendo há muitos anos e que deixa para trás a ideia adultocêntrica de que os jovens são “o futuro do Chile”, como se fossem seres incompletos, irracionais e incapazes de construir politicamente algo no presente. São justamente os secundaristas que deram classe e cátedra política, nestes últimos 20 anos, para muitos adultos cheios de medos e completamente funcionais a estruturas de poder obsoletas e que devem ser destituídas para democratizar o país.
1. Ver o documento “El Desalojo de la Educación Pública”, elaborado pela Fundação Sol. Disponível aqui.
2. Uma denúncia realizada pelo historiador chileno Alfredo Jocelyn Holt, no ano 2007, mas que não foi levada em consideração pelos grandes meios de comunicação da época, apesar da grave acusação, pelo fato de Brunner ser um ex-ministro de governo. De qualquer modo, ainda é possível baixar artigos de Brunner, onde se presenta como sociólogo da Universidade Católica do Chile e doutor pela Universidade de Oxford. Disponível aqui.
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Chile. Estudantes constituintes: a 20 anos do mochilaço no Chile - Instituto Humanitas Unisinos - IHU