23 Novembro 2019
O ditador Augusto Pinochet morreu em 2006, quando acumulava cerca de 300 processos por crimes, desaparecimentos, torturas e violações aos direitos humanos. Pinochet deixou como herança a Constituição chilena de 1980, atualmente em vigor, e um modelo econômico ultraliberal - o dos Chicago Boys - contra o qual tiveram início, em outubro, as revoltas populares. De acordo com o relatório da CEPAL, Panorama Social na América Latina, apresentado em fevereiro de 2019, 1% das famílias mais ricas do Chile concentrava, em 2017, 26,5% da riqueza líquida do país.
O fio que conduz a essa conjuntura pode ser acompanhado no livro de 832 páginas, “Pinochet. Biografia militar y política” (Ediciones B), do jornalista e historiador Mario Amorós (Alicante, 1973). “No último momento - 36 horas após a sublevação -, Pinochet decidiu se juntar à conspiração estabelecida por outros altos oficiais das Forças Armadas, depois que a direita, a direção da Democracia Cristã, as organizações empresariais e o governo de Nixon e Kissinger posicionaram o país à beira do abismo”, recorda o pesquisador.
Mario Amorós também é autor, entre outros livros, de Allende. La biografia (2013), Neruda. El príncipe de los poetas (2015) e Rapa Nui. Una herida en el océano (2018).
A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 22-11-2019. A tradução é do Cepat.
Já são quatro semanas de protestos, marchas e paralisações no Chile, com um saldo de 23 mortos, durante a repressão militar e policial (as autoridades decretaram o toque de recolher), além das denúncias de torturas, milhares de feridos e detidos ...
Uma semana antes de 18 de outubro, a vida no Chile era ‘normal’, as pessoas seguiam suas vidas e o modelo ‘funcionava’. De repente, decidiu-se por um aumento no preço da passagem do metrô de 30 pesos na hora do rush (0,036 euros) e as pessoas começaram a se juntar no metrô de Santiago. Essa foi a faísca que provocou a maior rebelião política e social do Chile, nos últimos 30 anos, desde o final da ditadura. Trata-se de uma rebelião contra o governo da direita e o modelo econômico neoliberal implantado por Pinochet. Mas, daí que seja possível uma alternativa, falta muitíssimo. É muito difícil, porque no Chile há uma despolitização muito grande, embora houve - e existem - movimentos sociais muito fortes e com muito apoio transversal.
No dia 11 de novembro, a Sociedade Chilena de Oftalmologia (SOCHIOF) apelou ao Ministério do Interior e às Forças da Ordem e Segurança para que adotassem “medidas urgentes”, com a finalidade de “deter o uso de balas antidistúrbios, pois estão gerando um número inédito de pacientes com lesões oculares graves e danos visuais severos”. É a marca da direita pinochetista?
Este é o pouso autoritário da direita chilena. A direita no Chile foi tradicional e republicana até os anos 60 do século passado. Uma direita, digamos, democrática, que entrou em crise em 1964, quando não apresentou candidato à eleição presidencial e apoiou Eduardo Frei, dirigente da Democracia Cristã, para que Salvador Allende não vencesse. E foi o que aconteceu. Eduardo Frei Montalva venceu as eleições presidenciais daquele ano. Foi uma direita que se ‘reinventou’ na luta contra o projeto socialista de Allende. Essa direita republicana, democrática, tornou-se uma direita contrarrevolucionária, fascista, que apoiou o golpe de Estado e a ditadura. Durante o regime de Pinochet, também foi uma direita neoliberal.
Destacaria algum exemplo?
O ministro do Interior e Segurança Pública, durante o governo de Piñera, Andrés Chadwik, aplaudia em 1988 o ditador em um comício e gritava o slogan “Mão dura, Pinochet!”. A União Democrática Independente (UDI) é um partido com muitos votos (cerca de um milhão de votos, 16% dos votos nas eleições para a Câmara dos Deputados, em 2017. Nota do entrevistador). A direita, com Sebastián Piñera à frente, venceu as últimas eleições presidenciais com 54% dos votos. O núcleo de ferro que cerca Piñera pertence ao setor mais duro da direita chilena, que foi o setor pinochetista.
Agora, tomaram uma medida completamente incrível, de colocar o Exército nas ruas. “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso”, disse Piñera, em 21 de outubro, nos primeiros dias de mobilizações populares. O general Iturriaga, chefe da Defesa Nacional para a Região Metropolitana, afirmou que não estava em guerra com ninguém. O Exército chileno tomou essa precaução, porque existem muitos membros do Exército condenados a penas de prisão pelos crimes da ditadura.
No Centre La Nau, você recordou episódios da repressão pinochetista, como os 15 camponeses detidos-desaparecidos, cujos cadáveres foram encontrados em um forno em Lonquén, perto de Santiago, em 1978; ou o assassinato em Buenos Aires, em 1974, do general Prats, que havia sido Comandante em Chefe do Exército chileno, antes do golpe militar. Segundo os diferentes relatórios oficiais, 3.200 opositores foram mortos ou desapareceram durante a ditadura (1973-1990) e mais de 30.000 vítimas de prisão política e tortura. No livro, você reúne depoimentos da violência política ...
Um dos casos é o da direção comunista. Em maio de 1976, um setor da DINA - a Brigada Lautaro - sequestrou a direção clandestina do Partido Comunista do Chile. A história do que aconteceu não se conheceu até que se passaram 30 anos, com a declaração perante a justiça de um dos ex-agentes repressores. A Brigada Lautaro tinha um quartel secreto na Rua Simón Bolívar de Santiago, no qual não houve sobreviventes. Segundo a investigação judicial, foi assassinado o subsecretário geral do Partido Comunista e dirigente sindical, Victor Díaz, quando estava detido. Foi diretamente alfinetado por Pinochet: “Buscar exterminar o Partido Comunista é como esvaziar a água do mar com um balde”.
No livro, também dedico algumas páginas ao caso do sacerdote espanhol e dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), Antoni Llidó, sequestrado por agentes da DINA no centro de Santiago, torturado e assassinado em outubro de 1974. Um mês depois, os bispos Fernando Ariztía e Helmut Frenz mostraram a Pinochet uma lista de pessoas desaparecidas, um relatório sobre as torturas aos detidos e uma fotografia de Antoni Llidó, à qual o ditador respondeu: “Esse não é um padre, é um terrorista, é um marxista, é preciso torturá-lo porque de outra maneira não delata”.
Por ocasião dos 45 anos da queda de Allende (setembro de 2018), o presidente Piñera escreveu no jornal El Mercurio: “É bom e necessário recordar que nossa democracia não terminou em morte súbita nesse 11 de setembro de 1973. Vinha gravemente doente desde muito antes e por diferentes razões”. A deputada da Renovação Nacional, Camila Flores, declarou-se, em uma entrevista à CNN Chile (dezembro de 2018), como “pinochetista” e “grata ao governo militar”. Com quais discursos a ditadura foi legitimada?
Por exemplo, com o suposto ‘milagre’ econômico. O ex-ministro e principal economista da ditadura, nos anos 1970, Sergio de Castro, formado na Universidade de Chicago, afirmou que Pinochet foi determinante para a virada neoliberal. Sabiam que o novo modelo dos Chicago Boys teria um grande custo social, que viria o desemprego e a fome e, inclusive, receberia críticas dentro da Igreja Católica e do setor mais nacionalista e estatista das Forças Armadas. O argumento das conquistas econômicas é muito comum no Chile, mas, em fins de janeiro, também Alfonso Guerra, dirigente histórico do PSOE, afirmou que existem ditaduras como a de Pinochet “que ao menos têm eficiência no campo econômico e dos serviços”.
Além disso, há uma tendência em separar a repressão - e a DINA (polícia secreta da ditadura) como um elemento que a simboliza - do esquema econômico, atualmente questionado, mas que permitiu ao Chile ser um ‘exemplo’. Esta separação me parece inaceitável. Em abril de 1975, Pinochet aprovou o chamado Plano de Recuperação Econômica, durante uma reunião no Palácio Cerro Castillo, em Viña del Mar. Estiveram ali, além dos economistas que prepararam o plano, o chefe da DINA, Manuel Contreras, que participou das discussões. O neoliberalismo foi estabelecido nos primeiros meses de 1975, com a esquerda nas catacumbas, centenas de desaparecidos e as torturas mais atrozes.
Por esse motivo, intitula duas seções do seu livro como “Uma ditadura de classe” e “O programa de choque” (com dois ministros de destaque: Jorge Cauas, titular da Fazenda, e Sergio de Castro, na pasta de Economia, além dos economistas chilenos formados nos Estados Unidos)?
Em março de 1974, foi aprovado um documento, a Declaração de Princípios do Governo do Chile, de estilo bastante franco e cuja redação final tem como responsável Jaime Guzmán, um advogado muito de direita e ‘cérebro cinzento’ da ditadura. Em 1975, a situação era muito difícil e a política econômica do regime estava fracassando. Naquele ano, o PIB caiu 13%, os gastos públicos foram reduzidos em 27% e a inflação, no final do ano, aumentou 343%.
Naquele momento, Milton Friedman e Arnold Harberger, economistas da Escola de Chicago, estavam dando palestras no Chile. Pinochet os recebe em 21 de março de 1975 e pede conselhos. Tudo o que lhe disseram está publicado. Aconselharam-lhe um “tratamento de choque” ultraliberal. A política econômica do regime de Pinochet foi um desastre. Após a derrota no plebiscito de 1988, no dia 11 de março de 1990, o ditador entregou um país que tinha 40% da população na mais absoluta pobreza.
E quanto à relação entre Pinochet e Franco? Na apresentação, você se recordou da “mensagem de solidariedade” do ditador chileno - publicada em 3 de outubro de 1975 por La Vanguardia -, “ante a infame campanha internacional que a Espanha enfrenta”, pelos últimos fuzilamentos do franquismo (setembro de 1975) de três militantes da FRAP e dois da ETA.
Pinochet sentia admiração por Franco, um militar de carreira de sucesso, com toda a propaganda que o cercava: o general mais jovem da Europa e o condutor da guerra civil espanhola contra os vermelhos. Além disso, quando Pinochet já é um ditador, bebe nas fontes de um setor muito reacionário da direita chilena, que compartilhava o hispanismo imperialista e franquista, e que admirava Franco por ter esmagado a esquerda. Os dois ditadores lideraram o processo que acabou com duas experiências democráticas e modernizadoras: a II República Espanhola e o governo da Unidade Popular.
Por outro lado, em uma das cartas para sua família, de setembro de 1969, da comuna de Quillota, o sacerdote Antoni Llidó escreve no contexto de uma de suas falas no Instituto do Estado: “Surpresa. Para os chilenos, Franco é um semideus que salvou a Mãe Pátria (eles a chamam assim!) do desastre e a conduziu pelo bom caminho, durante 30 anos (...). Permanece algo de uma peça quando se ouve um cavalheiro dizer com toda a seriedade: “Um Franco é o que necessitamos aqui”.
Os dois autocratas também se assemelham no enriquecimento?
Pinochet morreu em 2006. Em 2004, suas contas secretas nos Estados Unidos foram descobertas e sua imagem desmoronou. Foi o denominado “caso Riggs” (pelo nome do banco americano - Riggs National Bank - onde possuía suas contas secretas). Dizia-se que Pinochet poderia ter - no exterior - uma fortuna avaliada em cerca de 30 milhões de dólares na época. Então, as pessoas que tinham sido muito próximas do ditador se separaram dele pela primeira vez (em agosto de 2018, a Suprema Corte do Chile condenou, pelo “caso Riggs”, três militares aposentados por desvio de recursos públicos e ordenou a apreensão de 1,6 milhão de dólares em bens de Pinochet ou de algumas de suas empresas. Nota do entrevistador).
No entanto, com a atual onda reacionária e a presença de Trump, de Bolsonaro e, na Espanha, do Vox, existe no Chile um líder da extrema direita sem complexos e com um discurso abertamente pinochetista: José Antonio Kast, fundador da Ação Republicana, que nas eleições presidenciais de 2017 conquistou 8% dos votos.
Documentação vazada nos Estados Unidos, em novembro de 2017, confirmou a colaboração da CIA no golpe militar contra Allende. Em 1974, o jornalista do jornal The New York Times, Seymour Hersh, já informou sobre como a CIA financiou a desestabilização do Governo da Unidade Popular. A posição norte-americana mudou em algum momento?
Os Estados Unidos observaram como, em 2 e 3 de julho de 1986, ocorreram grandes jornadas de Protesto Nacional, totalmente transversais, das quais participaram desde a Democracia Cristã ao Partido Comunista e organizações sociais. Os estadunidenses também viram que o Partido Comunista do Chile tinha novamente grande força (em agosto, a ditadura detectou um enorme desembarque de armas dos comunistas chilenos em Carrizal Bajo. Em setembro, houve uma tentativa de assassinato - tiranicídio frustrado - contra Pinochet por parte da Frente Patriótica Manuel Rodríguez). Nesse contexto, em novembro de 1986, Ronald Reagan, seu secretário de Estado, George Shultz, e o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos debatem sobre o Chile: existe um compromisso em forçar Pinochet a não se eternizar no poder.
Contudo, na minha avaliação, isso não foi decisivo. Embora também diria que o embaixador dos Estados Unidos no Chile, Harry Barnes, exerceu um papel positivo já que, por exemplo, acompanhou as vítimas da repressão no funeral do jovem fotógrafo Rodrigo Rojas, morto em julho de 1986 por queimaduras causadas pelos militares. Eu diria, em resumo, que no Chile houve uma transição pactuada - para uma saída não revolucionária da ditadura - com o apoio dos Estados Unidos. Acredito que o mais significativo foi o poderoso ciclo de Protestos Nacionais, que começaram em 11 de maio de 1983 - praticamente todos os meses – e foram até julho de 1986. Esta onda de mobilização é a que conquista a vitória no referendo de 1988 e força a saída de Pinochet.
Por último, o que você destacaria sobre o papel da imprensa?
Por um lado, está clara a condescendência da imprensa oficial e dos grandes meios de comunicação chilenos que apoiaram a ditadura. Esta é uma fonte fundamental para a biografia. Meios de comunicação como El Mercurio e La Tercera apoiaram o golpe militar, mas o interessante é que, a partir de 1978 e especialmente nos anos 1980, surgiu no Chile um jornalismo muito corajoso e democrático, encarnado por revistas como Analysis, APSI, Cauce e Fortín Mapocho.
De fato, quando Pinochet perdeu o referendo em outubro de 1988, Fortín Mapocho - que era um jornal diário naquele momento - publicou uma capa histórica com a seguinte manchete: “Correu sozinho e chegou em segundo!”. Esses meios de comunicação denunciaram os crimes da ditadura, além disso, faziam um jornalismo de muita qualidade, com grandes jornalistas...
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Chile. “É inaceitável separar a repressão do modelo neoliberal imposto por Pinochet”. Entrevista com Mario Amorós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU