13 Julho 2021
“O fato de o setor de biotecnologia de Cuba ter conseguido desenvolver suas próprias vacinas com os recursos limitados do país é simplesmente impressionante. Com o avanço da variante Delta e o aumento dramático das infecções, combinado com a crise alimentar e o mal-estar social, a sociedade cubana está prestes a passar por meses tensos, senão dramáticos. Mas o avanço da vacinação sugere que, no próximo inverno, Cuba será um dos primeiros países da América Latina a entrar na 'era pós-covid'”, escreve Bert Hoffmann, professor da Universidade Livre de Berlim, em artigo publicado por Nueva Sociedad, 12-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Cuba vive momentos tensos. A situação econômica piorou dramaticamente, os alimentos básicos são escassos, a moeda perde valor, a frustração explode nos protestos de rua, e os números de contágio da covid-19 estão disparando. Os casos diários se multiplicaram por quatro em apenas três semanas. Com mais de 6.700 contágios por dia e mais de 25 mil hospitalizados confirmados por covid-19, o sistema de saúde está chegando a seu limite. No entanto, a luta contra a pandemia também traz a maior esperança: as vacinas desenvolvidas na ilha mostram um nível de eficácia muito alto, não apenas nos estudos clínicos, mas também na prática.
O governo de Havana arriscou muito quando, em maio de 2020, decidiu não importar nenhuma vacina, nem da Rússia, nem da China. Tampouco através da participação na plataforma de vacinas Covax. Em vez disso, apostou em desenvolver vacinas próprias. Muitos se mostraram céticos: por que esta ilha caribenha de 11 milhões de habitantes seria exitosa onde fracassaram empórios farmacêuticos multimilionários?
A explicação é o setor biotecnológico que foi construindo-se sistematicamente desde a década de 1980: uma ilha de eficiência em meio à economia socialista do país. Desde o início, se deu ênfase no desenvolvimento de vacinas, não apenas para o consumo interno, mas também para a exportação a países do Sul global. É esta estrutura de pesquisa e produção que permitiu a Cuba criar em pouquíssimo tempo duas vacinas prontas para usar.
Ambas, Abdala e Soberana-2, baseiam-se em uma plataforma de proteína, um método utilizado durante décadas contra a poliomielite, o tétano e outras doenças. Diferente das novas vacinas de RNA mensageiro da BioNTech e Moderna, trata-se de uma tecnologia da “velha escola”. Porém, a vantagem é que essas vacinas podem ser produzidas nas fábricas existentes, a experiência indica um baixo nível de efeitos secundários graves e não necessita de resfriamento extremo. E são vacinas eficazes. Já foram publicados os resultados dos estudos de fase 3, que mostram para a Abdala uma efetividade contra doença sintomática de 92% depois de completar o esquema de três doses, e para Soberana-2, uma eficácia de 91%.
Os críticos questionaram esses números e apontaram falta de transparência e documentação insuficiente nas revistas científicas. É possível que com a aplicação prática tenha que se fazer ajustes. Apesar de que ambos estudos de fase 3 foram feitos sobre mais de 40 mil pessoas, os números absolutos nos quais se baseiam os cálculos de eficácia não são altos; para a Soberana-2 havia cinco casos de doença sintomática no grupo de vacinados contra 51 no grupo placebo.
Porém, mais além dos estudos, para ver que as vacinas sim são eficazes, a campanha de vacinação fala por si. Quando os funcionários da saúde foram vacinados, no início de março, reduziu-se imediatamente o número de contágios entre os empregados do setor sanitário. Isso se observa também desde o começo das vacinações massivas em Havana, no mês de maio.
Já se aplicaram mais de sete milhões de doses em uma campanha que se concentrou na capital do país, originalmente o epicentro do processo infeccioso. Em todas as demais províncias, as incidências estão aumentando fortemente. Na capital, não obstante, onde a metade da população já foi vacinada, os contágios caíram pela metade. Como em outros países com altos níveis de vacinação, se vê um novo aumento com a entrada da agressiva variante Delta. Os estudos de fase 3 das vacinas cubanas foram feitos com a prevalência da cepa Beta. Ainda assim, parece que as vacinas dão boa imunidade contra a Delta também, não se pode excluir que – como se viu com outras vacinas – a efetividade seja algo menor contra essa variante, sobretudo em caso de vacinação incompleta.
Também no Irã foi realizado um estudo de fase 3 para a vacina Soberana-2, com 24 mil participantes, e ali a vacina cubana já obteve a aprovação de emergência. Em Cuba, aprovou-se recentemente a Abdala, enquanto a Soberana-2 se espera nas próximas semanas. É de supor que a autoridade de aprovação cubana espera com a aprovação formal até que se tenha disponível todos os dados requeridos pelos protocolos da Organização Mundial da Saúde – OMS. Porque, ademais de vencer a pandemia em seu próprio território, Cuba também espera exportar suas vacinas. Porém, a produção em escala enfrenta grandes obstáculos. As 100 milhões de doses cuja produção se anunciou alguma vez para este ano ficarão como uma possibilidade teórica. Os insumos necessários se tornaram escassos, porque empresas de todo o mundo apostam o desenvolvimento de vacinas à base de proteínas, seja Novavax, nos EUA, Sanofi/GlaxoSmithKline, na Europa, ou Anhui, na China.
Apesar de Cuba ser “soberana” no desenvolvimento de suas próprias vacinas, tal como sugere o nome de uma delas, isso não é assim em relação ao equipamento e os componentes, que devem ser importados. Aos problemas mencionados, soma-se, como sempre ocorre em Cuba, a marca do embargo estadunidense, que limita as oportunidades de adquirir maquinários e insumos. Ademais, as ameaças de Washington aos bancos internacionais fazem que as transações financeiras com a ilha sejam manobras complexas e custosas. Como resultado, Cuba terá que se concentrar inicialmente em produzir vacinas suficientes para sua própria população. Por certo, como gesto de solidariedade, houve uma primeira entrega de 30 mil doses de Abdala a sua aliada Venezuela, cujas entregas de petróleo a Cuba diminuíram, porém seguem sendo indispensáveis para abastecer a ilha. Foram prometidas outras 12 milhões de doses, porém sem exatidão na data de entrega.
Prevê-se também que poderá negociar opções de exportação, de preferência com pré-financiamento. Outra opção é vender licenças para países como Argentina ou Vietnã, que têm capacidade de produção própria. No passado, a OMS já comprou vacinas cubanas para campanhas de vacinação em países do Sul global e pode fazer novamente na atual pandemia. A médio prazo, as vacinas à base de proteínas, como as cubanas, também são adequadas como vacinas de reforço.
Por mais importantes que sejam essas perspectivas, as vacinas cubanas podem superar a crise sanitária do país, mas não a econômica. Essa continua a ser a tarefa de uma agenda de reforma que deve ter como objetivo reviver toda a economia e não depender do setor de biotecnologia para se tornar a galinha dos ovos de ouro. E mesmo sendo uma conquista do sistema de saúde, as vacinas não podem ser a resposta à longa crise de confiança política que hoje se manifesta nas ruas.
A luta contra a pandemia em Cuba é, como em outros lugares, uma corrida contra o tempo. Entre a rapidez da vacinação, por um lado, e a disseminação do vírus e suas variantes, por outro. Se as coisas correrem bem, a campanha de vacinação pode evitar o colapso de hospitais, gradualmente tirar o país das medidas de bloqueio e permitir que ele reabra suas portas ao turismo internacional a tempo para a importantíssima temporada de inverno. O setor de turismo era a indústria mais importante da ilha antes da pandemia e sua reativação é essencial como fonte de divisas na atual crise.
Mas as vacinas cubanas também devem ser motivo de reflexão fora da ilha. Em tempos de cadeias de suprimentos globais, muitos rapidamente descartaram todas as ideias de “autossuficiência” como obsoletas. Durante a pandemia, entretanto, mesmo os países ricos tiveram que aprender que não se pode contar com a globalização em tempos de emergência. Quer se trate de máscaras faciais ou vacinas, no final das contas, não é apenas o America First, mas todos os outros países cuidam de seus próprios interesses primeiro.
O fato de o setor de biotecnologia de Cuba ter conseguido desenvolver suas próprias vacinas com os recursos limitados do país é simplesmente impressionante. Com o avanço da variante Delta e o aumento dramático das infecções, combinado com a crise alimentar e o mal-estar social, a sociedade cubana está prestes a passar por meses tensos, senão dramáticos. Mas o avanço da vacinação sugere que, no próximo inverno, Cuba será um dos primeiros países da América Latina a entrar na “era pós-covid”.
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Cuba. Entre a vacina e a crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU