26 Março 2024
Antropóloga analisa concepção dos militares acerca dos povos originários à luz de atrocidades e de episódios de extermínio.
A reportagem é de Liana Coll, publicada por Jornal da Unicamp, 18-03-2024.
"Daqui eles nos levaram em gaiola, gaiola mesmo, vieram três gaiolas […] Pelo caminho, dormimos, nos alimentaram, nos davam pãozinho para não morrermos de fome, tampavam da gente a gaiola para não vermos nosso rastro. (Meire da Silva, indígena Kaiowá, em testemunho sobre deslocamento forçado realizado em 1978).
Estou cansado de ser um coveiro de índios. (Sertanista Cotrim, ao se demitir, em 1972)
Em uma das vezes em que eu insistia com o índio Tariri para irmos mais para frente, ele olhou para mim, sentou-se, pôs as duas mãos na cabeça, depois bateu com a mão direita em cima do coração. Nesta altura já estava chorando, olhando para os ossos todos fuçados pelos porcos da mata, lembrando que no meio daqueles ossos estavam os ossos da moça que ia ser sua esposa. E falou as seguintes palavras: “Karaí-tán-aitinnvaine Kre, Kêtt Kue n”, que significa: vocês civilizados mataram todos, tudo acabado. Essas palavras ele falou quando estava em choro. (Sertanista Antonio Campinas, 1971) Depois da estrada, a doença não saiu. A doença ficou no lugar da Camargo Corrêa. Até hoje o governo federal não assumiu a responsabilidade de cuidar da saúde que ele estragou […] As doenças mais frequentes são pneumonia, malária, tuberculose. Não tinha nada disso aqui antes da estrada". (Depoimento de Santarém, indígena Yanomami, à Comissão Nacional da Verdade)
Os relatos acima referem-se a atos de violência cometidos por membros das Forças Armadas durante a ditadura militar (1964-1985). O primeiro, colhido por Meire da Silva, é da indígena Kaiowá Livrada Rodrigues e cita um dos muitos casos de expulsão e violência envolvendo o regime. Por diversas vezes, os Kaiowá do Rancho Jacaré e de Guaimbé, no Mato Grosso do Sul, viram-se retirados à força de suas terras e levados para o Pantanal, para locais distantes até 800 km de onde moravam. A pé, muitos retornavam para sua terra ancestral, cobiçada por fazendeiros e pelo regime militar para a expansão agrícola. Os abusos, parte de um dos períodos mais sangrentos da vida dos indígenas – a ditadura militar –, ainda se repetem, conforme documentou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) graças ao trabalho de Marcelo Zelic. O pesquisador e aliado da causa indígena foi responsável pela descoberta do Relatório Figueiredo, um documento de mais de 7 mil páginas redigido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia entre 1967 e 1968 com denúncias sobre a prática de atos de violência contra os povos originários.
A CNV estima que pelo menos 8 mil indígenas morreram em razão de ações do regime militar, seja em episódios de extermínio direto, em casos de tortura, encarceramento arbitrário e maus-tratos ou por meio de epidemias provocadas por uma política desastrosa de contato. A violência a que foram submetidos os indígenas poderia fazer parte do passado se tivesse havido responsabilização pelos crimes e medidas de reparação, mas continua a ser sistematicamente praticada. Em 2020, o governo Jair Bolsonaro, com uma Instrução Normativa editada pelo órgão supostamente responsável por proteger os direitos dos indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai, antiga Fundação Nacional do Índio), liberou áreas dos Guarani-Kaiowá para fazendeiros, e esses territórios transformaram-se em palco de assassinatos de indígenas e ameaças contra indígenas, tudo ocorrendo no contexto de uma disputa agrária acirrada pela não homologação das terras originárias.
No início de 2023, o governo recém-empossado de Luiz Inácio Lula da Silva iniciou uma operação na Terra Indígena Yanomami, expondo a grave situação sanitária e de conflitos enfrentada pelos indígenas no Estado de Roraima. Assim como na ditadura, quando a construção de uma estrada causou a morte de pelo menos 354 Yanomami devido a epidemias provocadas pela presença na região de brancos, o período mais recente viu-se marcado pela morte. Estima-se que, entre 2019 e 2022, 692 crianças de até 9 anos morreram em consequência de doenças evitáveis. O número de mortes aumentou com a tomada do território pelo garimpo ilegal, um movimento amplamente incentivado sob o governo Bolsonaro, e pela desassistência na área da saúde, um problema em todo o território nacional.
Um ano após o início da operação, o jornalista Rubens Valente, responsável por uma extensa apuração sobre os crimes cometidos pelos militares durante a ditadura, denunciou o fato de as Forças Armadas terem cobrado, ainda em 2023, um adicional de R$ 1,6 bilhão por bimestre do governo federal para promover a retirada de garimpeiros das terras Yanomami e a entrega de cestas básicas para os indígenas que viviam na região, a despeito do orçamento de R$ 124,4 bilhões do Ministério da Defesa. Também em 2023, as Forças Armadas não reagiram quando indígenas e funcionários do Instituo Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foram alvejados por invasores que fecharam um posto de suprimento de combustível em uma das regiões mais cobiçadas pelo garimpo.
Criança Yanomami brinca ao lado de sucata de avião da FAB no aeroporto de Surucucu, em Roraima: militares pediram verba para atuar na região apesar de orçamento bilionário. (Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil)
O comportamento dos militares levou servidores públicos que atuam no meio ambiente e na política indigenista a publicarem uma nota em que repudiavam a forma como as Forças Armadas vinham atuando na operação. Dentre as denúncias, há uma indicando que os militares recusaram-se a sobrevoar o território atingido, outra sobre omissão e/ou quando se tratou de destruir os equipamentos apreendidos, outra sobre a desmobilização de pontos de apoio e uma outra sobre dificuldades para obter informações. “Que outra missão as Forças Armadas estão cumprindo que não poderiam dispor de contingente e equipamento para atender essa operação?”, questionam os funcionários do Ibama.
Para Artionka Capiberibe, professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e membro do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena, o que ocorre hoje caracteriza o processo de formação dos militares brasileiros. Segundo Capiberibe, há uma noção de progresso às custas de vidas humanas e de recursos naturais, amplamente difundida na ditadura, que permanece. “Existe uma ideia ultrapassada de riqueza, de exploração excessiva dos recursos naturais sem prever que eles se esgotarão. Isso faz com que, na cabeça deles, esses indígenas logo não vão ser mais indígenas. Na mentalidade deles, essas populações são simplesmente um estorvo. É uma ideia de país na qual os indígenas não têm espaço. Essa atitude em relação aos Yanomami na verdade é uma velha atitude. É um pensamento que não mudou e que teve em Bolsonaro uma expressão exagerada e explícita”, afirma.
“É bom lembrar que os militares da ditadura resolveram que iam furar a Amazônia por todos os lados, abrindo estradas para o ‘progresso’ chegar lá. Eles queriam ocupar o espaço porque esse espaço ‘vazio’ corria perigo. Existia uma questão de soberania sobre o espaço. Então não poderia ter território não ocupado porque ele poderia vir a ser ocupado por outras nacionalidades. E aí eles resolvem abrir uma BR, a BR-174, cortando a terra indígena Waimiri.”
“Os dados da CNV sobre a redução populacional são absurdos. De uma população de 3 mil em 1972, os Waimiri chegaram em 1983 com 350 pessoas. As denúncias são gravíssimas, porque o Exército entrou para desocupar. É o próprio Exército que vai desocupar e aí ele entra em uma operação de guerra. Os indígenas eram tratados como inimigos da pátria. As denúncias falam até em bombardeios”, diz Capiberibe.
Militares que participaram da repressão aos guerrilheiros posam para foto na região do Araguaia: indígenas foram usados como mateiros. (Foto: Reprodução)
“Há um depoimento de um missionário católico do Cimi [Conselho Indigenista Missionário] segundo o qual, enquanto ocorria uma festa em uma aldeia do povo Kinja [autodenominação dos Waimiri-Atroari], surgiu um helicóptero de repente, se aproximou e jogou um pó branco. Todas as pessoas atingidas pelo pó morreram. O número que ele dá é de 33 pessoas mortas nessa festa que estava acontecendo em uma aldeia em torno de uma maloca. A jornalista Memélia Moreira prestou um depoimento, também na Comissão Nacional da Verdade, sobre os Waimiri-Atroari falando que eles [os militares] jogaram napalm em cima das aldeias.”
Capiberibe prossegue: “Essa visão militarizada de tratar os indígenas como inimigos a serem exterminados fez presente também na região do Araguaia. No começo dos anos 1970, quando o Exército começou a fazer as operações na região do Araguaia para exterminar os guerrilheiros, eles usaram os indígenas Suruí do Pará, os Aikewara, como mateiros. Mas não é que eles pagam os indígenas pelo serviço prestado. Isso por si só seria grave, mas a situação é ainda mais grave. Eles primeiro prenderam as mulheres e as crianças nas casas e depois pegaram os homens da aldeia como mateiros, obrigando-os a andarem na mata para localizar os guerrilheiros”.
“Nos depoimentos que estão lá, os indígenas falam: ‘A gente não sabia o que era terrorista e eles perguntavam: Onde estão os terroristas?’. Imagina a brutalidade. Perguntavam: ‘Onde eles se esconderam? Vocês estão escondendo os terroristas!’. Isso aconteceu com os indígenas e também com os camponeses da região. No entanto, no caso dos indígenas, houve esse agravante. A antropóloga Iara Ferraz fez um estudo muito detalhado sobre o caso Aikewara e, segundo ela, eles ficaram para a história como aqueles que entregaram e levaram à morte os guerrilheiros, porque eles que levavam [os militares] até os locais [onde estavam os guerrilheiros]. Mas os indígenas foram obrigados a fazer isso”, relata Capiberibe.
Segundo a professora, “Tratava-se de um estado de guerra. Os militares decapitaram vários guerrilheiros e botaram os indígenas segurando a cabeça insinuando uma noção de selvageria, sendo que selvagens foram os militares, o Exército. A Iara diz: ‘Olha, os Aikewara sofriam muito porque para eles um morto não pode ser tocado’. Então aquilo era uma tortura, uma forma de tortura. Eles ainda fizeram os indígenas carregarem os corpos dos defuntos para os helicópteros, para jogar nas valas”.
“Existiam também os castigos, que já aconteciam antes do regime ditatorial. Criaram-se prisões específicas – a mais famosa é o reformatório Krenak, uma mistura de prisão com hospício, na terra indígena dos Krenak, em Minas Gerais – nas quais ficaram encarceradas várias pessoas, tudo à revelia da lei. Em um dos relatórios a que eu tive acesso, fala-se de um indígena Krenak preso por vadiagem, por vagabundagem, porque bebia e era, segundo eles, um vagabundo. E aí colocaram ele lá dentro [do reformatório] sem nenhum direito a defesa e sem nenhum processo, nada”, diz a antropóloga.
“Uma vez dentro, esquece-se da pessoa… Nesses regimes, quem gere os sistemas prisionais se torna um uma espécie de rei, de déspota. As leis internas desse sistema são feitas pelo pequeno burocrata, pelo funcionário que está ali. Então há castigos como privação de comida, privação de sono, toda sorte de violências.”
Segundo Capiberibe, “houve ações de deslocamento forçado de populações inteiras, por mais de uma vez. Elas vão sendo tiradas das suas terras em função de algum empreendimento. Tem o caso do Xetá, povo do Paraná expulso por causa de uma frente cafeeira. Esse povo acabou por dispersar-se, seus integrantes acabaram por se perder uns dos outros. O povo foi declarado como extinto pela Funai nos anos 1970. Nos anos 1990, eles reaparecem porque não haviam sido exterminados, mas dispersados. Eles reaparecem, demandaram a retomada de suas terras e contaram como sofreram um processo de inviabilização, que também é um processo de violência”.
Remoção de indígenas no Paraná: deslocamento forçado de populações inteiras. (Foto: Arquivo | Sedoc-Funai [A imagem está no livro “Os fuzis e as flechas”, de Rubens Valente]
“Eles estavam em uma região próxima à Hidrelétrica de Itaipu. Então o governo pensou: ‘Vou tirar esses indígenas daqui, vou criar o parque Sete Quedas e colocar eles lá’. Então não é só que não tinham direitos. É algo mais profundo: tratar seres humanos como se não fossem humanos, como se não tivessem vontade, como se não tivessem relações com os lugares onde eles estavam”, diz a professora.
“Isso aconteceu também com os Xavante e com diversas outras etnias. Bom, vamos lembrar do nome do órgão, né, Serviço de Proteção ao Índio [órgão que antecedeu a Funai]. ‘Índio’ é tudo ali. Não há diversidade linguística, não há diversidade sociocultural, de hábitos, de línguas… Não há nada. Então eles forçam o deslocamento dessas populações e pensam: ‘Ah, vamos botar esse povo Xetá aqui junto com os Kaingang’. Mas não se trata de um mesmo povo. Então é isto: vão jogando os povos de um lado para o outro, expulsando-os, e ocupando os territórios indígenas em função de diferentes interesses. Há os interesses econômicos, há interesses que são empreendimentos do Estado, públicos, como a Itaipu, responsável pelo deslocamento dos povos Guarani que viviam na região. Esses povos viram-se, de repente, enredados em um processo no qual não há espaço para eles. Diz-se simplesmente: ‘Olha, essa terra aqui de vocês vai ser inundada’. É uma lógica que pensa: ‘Ah, vamos mudá-los do apartamento 102 para o 110’. Isso é de uma violência incalculável”, afirma Capiberibe.
Os trabalhos da CNV, para Capiberibe, trouxeram à tona os diversos tipos de violência a que os indígenas foram submetidos durante a ditadura. Apesar da tentativa dos militares de apagar os registros históricos, os testemunhos indicam um padrão de violações. A antropóloga lembra que, ainda antes da ditadura, os militares praticavam abusos em nome de um controle de fronteiras.
Do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, de 1910, ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), de 1927, e posteriormente à Funai, criada em 1967 como resposta às denúncias sobre atos de violência praticados pelo SPI, manteve-se uma visão de “civilizar” os indígenas, inclusive utilizando-se de escalas de civilidade na tentativa de retirar daqueles vistos como “integrados à sociedade” a necessidade de vinculação com a terra.
“O SPI, serviço que antecedeu a Funai, nasce como um órgão de proteção aos índios, como diz a sigla, mas com o ideário de progresso e civilização, como expresso em nossa bandeira. O progresso é visto por esses funcionários, em boa parte militares, como um processo gradativo por meio do qual os indígenas deixariam de ser indígenas. Na ditadura, esse processo acelerou”, explica a professora.
O trabalho da CNV, iniciado em 2011, deveria se aprofundar, defende a antropóloga. “O caminho seria o da compensação, mapeando as terras subtraídas de povos indígenas. Há muita coisa para ser discutida, detalhamentos relacionados às especificidades dos povos indígenas. Esse trabalho poderia ter continuado se não tivesse ocorrido o golpe em 2016, que interrompeu o processo”, analisa.
Retrocessos que desconsideram toda essa história de subtração violenta de terras e de vidas indígenas, argumenta a professora, deveriam dar lugar a um processo de reparação.
Em meio às sistemáticas violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura, o movimento indígena foi se fortalecendo e se organizando. Em 1980 nasceu a União das Nações Indígenas, primeira organização totalmente gerida por indígenas. Esse esforço organizado deixou marcas, por exemplo, na Constituição de 1988, um marco na conquista por direitos.
O bispo dom Pedro Casaldáliga (de óculos) e lideranças Xerente participaram da X Assembleia de Chefes Indígenas, que ocorreu em 1977, em Tapirapé, em Mato Grosso: mobilização contra a repressão. (Foto: Reprodução)
“Eles começam um movimento nacional, cujas lideranças são hoje muito conhecidas, como Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Começam a se reunir um pouco em torno do movimento dos seringueiros no Acre, sob a liderança do Chico Mendes, e nesse diálogo vão se fortalecendo. E lá no final dos anos 70 e começo dos anos 80, os indígenas começam a fazer uma mobilização que se expande para fora do país, onde vão fazer denúncias sobre vários casos de violação de direitos humanos”, conta Capiberibe.
A Constituinte dos anos 80, segundo a professora, é o ápice de um movimento que aos poucos angariou o apoio de diversos outros setores da sociedade. Hoje, reflete, há diversos movimentos dentro do grande movimento indígena: representantes de LGBTs, mulheres e estudantes, dentre outros. “Isso mostra que os povos indígenas são contemporâneos e não nosso passado.”
Para a antropóloga, é preciso agora, em um governo que se mostra favorável às pautas indígenas e ambientais (a atual administração federal criou, por exemplo, o primeiro Ministério dos Povos Indígenas), que se reverta uma mentalidade atrasada de exploração econômica predatória responsável por colocar em risco os povos originários. “Os modos de vida indígena são bons para os povos indígenas e também para o planeta, mas não deve pesar só nas costas dos povos indígenas a segurança do planeta”, diz Capiberibe.
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Ditadura agravou segregação ao tratar indígenas como inimigos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU