"Neste dia 1º de janeiro de 2024, completo 61 anos de luta na causa indígena (...). Destes 61 anos de indigenismo, passei 11 sob a repressão da Ditadura Militar e 36 sob repressão do Programa instalado pela Eletronorte na área do povo Waimiri-Atroari"
"A maldade, a mentira, o colonialismo, o genocídio, a tortura, a opressão não conseguem matar a esperança. Marco Temporal e Integração Nacional nunca! Com lei escrita, sem lei, apesar da lei ou contra a lei, os povos indígenas tem o direito à 'terra apta e suficiente para um crescimento demográfico adequado à sua realidade ecológica, cultural e socioeconômica'. Resistir sempre!"
O artigo é de Egydio Schwade, filósofo, teólogo, indigenista e ativista social brasileiro, membro-fundador do Conselho Indigenista Missionário — Cimi.
Neste dia 1º de janeiro de 2024, completo 61 anos de luta na causa indígena. Foi no dia 1º de janeiro de 1963 que cheguei a Diamantino/MT, após uma longa viagem em ônibus de São Leopoldo/RS até São Paulo e em caminhão de São Paulo até Diamantino/MT. Ali me encontrei com o 1º índio: Edgar Kayabi. Acabara de chegar de caminhão, do meu destino, 500 km adiante: o internato de Utiariti. Ali cheguei no dia 8 de janeiro. Não havia ainda esvaziado minha mochila, quando o Mestre Darci Cordeiro, me passou o apito para comandar o jogo de futebol da meninada. Nem deu tempo para me dar alguma orientação, pois Darci já embarcava no caminhão que me trouxe, rumo a São Leopoldo/RS, para seu Curso de Teologia. Foi o dia mais trágico dos 3 anos que passei como Mestre nos dois internatos da Missão Anchieta. Estava apitando o jogo, quando súbito, um trator invade o campo, dirigido por um índio aprendiz. Sem conseguir controlar a máquina, derrubou e passou sobre um menino Rikbaktsa que na madrugada seguinte deu o seu último suspiro em sua rede, ao meu lado.
Destes 61 anos de indigenismo, passei 11 sob a repressão da Ditadura Militar e 36 sob repressão do Programa instalado pela Eletronorte na área do povo Waimiri-Atroari.
“O Reino de Deus está dentro de vocês!”
(Lc. 17.21)
Fui ao seminário com um desejo íntimo de servir à gente mais carente. Minha mãe e meu pai foram os meus exemplos. E por extensão o padre. Ainda vejo o padre jesuíta austríaco, Francisco Riderer, cavalgando sob o sol causticante rumo às comunidades da paróquia. Padre era um mito, não erra nunca!
O meu primeiro ano de seminário foi um ano muito triste e conturbado. Já nos primeiros meses sofri um interrogatório do orientador espiritual que me acabrunhou muito. Imaginou o padre que a homossexualidade reinava entre os seminaristas. Menino do interior, 13 anos, este assunto me era totalmente estranho. Jamais havia ouvido falar disso. Mas o orientador espiritual me submeteu a um interrogatório tão intenso e repetido que me levou a aceitar ter "feito" uma ação que desconhecia. O resultado foi a minha expulsão do colégio. Mas quando o Reitor me comunicou o veredito definitivo, caí em choro e ele adiou a minha expulsão por um mês. Acontece que ele nunca mais me chamou e o mês se estende até hoje. Mas deixou marcas profundas da tortura e da humilhação sofridas, marcas que ficaram impressas em escrúpulos e timidez, dos quais só me consegui livrar durante o Curso de Teologia, participando de uma terapia de grupo, orientada pelo jesuíta húngaro, Pe. Géza Kévcses.
Neste 1º momento, o mito do padre sábio absoluto que trazia de casa, caiu. Padre também erra. O Egydio precisa se orientar pelo Deus Escondido, cultivando a “sarça ardente” lá dentro dele! Nenhuma estrutura humana deve deter o revolucionário que mora dentro dele.
“Buscai primeiro o Reino dos Céus e tudo o mais vos será dado de acréscimo”
(Mt. 6.33)
Nos amargura perder uma promoção em instituição, no Estado ou o emprego no mercado. Em verdade, são momentos que nos desatam das amarras que nos enlaçam ao mercado, que nos impede o confronto conosco, com o nosso ser solidário e único, vocação do Deus Escondido que nos chama à solidariedade.
Jamais quis ser professor de colégio ou universidade para ricos. Meu objetivo foi conviver com populações pobres. Sonhava ir à África, onde havia muita gente necessitada.
No ano de 1962, último da minha Faculdade de Filosofia, tive um grande amigo, o historiador Pe. Arnaldo Bruxel que descobriu a minha queda pela História. Sabendo disso, sem mais, o Provincial da Ordem, já na metade daquele ano, me destinou para fazer o Curso de História na UFRGS, após a Filosofia. Isto na prática significava a minha ‘condenação’ a ser professor para ricos ou historiador o resto da vida. E eu vi este destino inexorável à minha frente, montado sobre uma obediência religiosa provinciana. E passei horas, dias e semanas, discernindo, com este dilema me atormentando constantemente.
Foi a primeira vez que questionei o voto de obediência perpétuo a um superior religioso. Em cada pessoa humana vive um chamado à "desobediência", a uma obediência mais radical do que esta, uma “Sarça Ardente que não se apaga”. O que me trouxe à Ordem Jesuítica foi o desejo de servir os necessitados. Mas neste assunto fiquei só. Todos ao meu redor eram unânimes: “não perca esta oportunidade, vá fazer o Curso de História, pois se é vontade de Deus que tu vás para alguma missão, Ele dará o seu jeito.” Entretanto, a minha fé não tinha este tamanho. Se obedecer ao Provincial, via-me condenado a ser professor ou historiador para o resto da vida.
Finalmente, para resolver o dilema, o orientador espiritual, Pe. Laufer, SJ, me sugeriu expor o problema ao Geral da Ordem. Foi o que fiz. Mas, ir contra a ordem do superior foi muito forte. E naquele momento estourou uma veia do nariz e uma gota de sangue se cravou até hoje na página da Bíblia da Ave Maria, à minha frente.
Elaborei, então, a minha única carta em latim, para fazer entender o meu problema ao Geral, um irlandês, Pe. Swain, SJ. A resposta dele veio a meu encontro: Missão. Mas com suavidade questionou o meu desejo de ir à África. Sugeriu que considerasse a possibilidade de ir à Missão Indígena de Mato Grosso. Consolado, aceitei a sugestão sem pestanejar. Após alguns meses, lá estava eu na missão indígena em Utiariti, no Rio Papagaio, Noroeste de Mato Grosso. E senti-me envolvido numa causa que sempre desejei. Nunca duvidei disso.
Foi neste contexto que li a história da Companhia de Jesus, escrita por um suíço, cujo nome esqueci, onde descreve ações revolucionárias dos jesuítas mundo afora e a injustiça sofrida por seus missionários junto aos índios, vendo destruído o seu projeto que devolvia ao índio o domínio da terra e a autonomia, mudando o roteiro colonizador europeu. Projeto em pleno andamento em July/Peru, na República Comunista dos 30 povos Guarani, nos Aldeamentos da Amazônia e junto aos Iroqueses, nos Grandes Lagos (Canadá-Estados Unidos). Um gigantesco trabalho destruído com a expulsão dos jesuítas da América e a supressão da Ordem pelo Estado do Vaticano, submisso a estadistas iníquos. No mesmo livro li esta máxima: “Non coarctari máximo, continere autem a mínimo divinum est”. “Não se limitar pelo máximo, mas caber no mínimo, isto é divino.” – que mantive presente nos futuros discernimentos. Foi o slogan dos festejos do 2º Centenário da Ordem.
A adesão à orientação do Geral da Ordem me pôs de escanteio pela direção da Província. Mas me senti liberto da pesada e míope estrutura provincial.
Desde o Concílio de Niceia, as Igrejas Cristãs caminham com os governos ocidentais, na paz e na guerra, buscando a “integração nacional” para tudo e para todos: Pessoas são desviadas de seu chamado íntimo e os povos atropelados em seus princípios originais e em seus territórios. As tentativas de mudança, em especial as coletivas, são reprimidas, arrasadas. Era preciso que os cristãos se reorganizassem a partir do discernimento do Espírito, tendo diante dos olhos a atitude do Cristo em sua vida, do seu gesto antes da Ultima Ceia, de sua encarnação na realidade dos povos oprimidos.
Nos anos 60 se discutia muito o Concílio Vaticano II nos seminários. E este incentivava o missionário a seguir a trilha que leva à Luz dos povos oprimidos. Ali as vocações encontrarão os valores que saciarão a sua sede de solidariedade.
Minha ida à Missão Anchieta/MT (MIA), me livrou do espectro de ser professor para filhos de ricos. Mas, nos 3 anos que passei na MIA, 1963 a 1966, fiquei inserido no sistema de internato. Um modelo doutrinador que objetivava integrar os povos originários à sociedade nacional. De fato os desintegrava. Quando cheguei ignorava a realidade que se escondia atrás dos internatos. E já nos primeiros meses ajudei a criar mais uma dessas estruturas: o 1º Ginásio de Diamantino que se destinava ao prosseguimento do estudo dos indígenas e pobres da Prelazia. É claro, aberto também aos ricos da cidade.
Um bom tempo dos 3 primeiros anos de Missão fiquei a sós com os meninos, sem poder avaliar o meu trabalho. Mas foi ali que comecei a sonhar de forma nova, todo o trabalho indigenista, não só da Prelazia, mas também do país. Por isso, de volta em São Leopoldo, para iniciar a Teologia, manifestei aos colegas que como eu, haviam atuado na MIA, a minha proposta de mudar a ação indigenista da Prelazia de Diamantino. Tornar a Prelazia mais leve, acabando com os internatos e o modelo de paróquia, voltando as forças para a atração dos povos isolados e o conhecimento dos demais, fazendo um levantamento geral da situação do povo da região. A proposta foi acolhida em peso pelos colegas. E no dia 18 de março de 1966, dirigimos uma carta circular a todos os membros da Prelazia, propondo as mudanças. Mas não tivemos nenhuma adesão positiva dos agentes de pastoral da base.
Naquele momento Thomaz de Aquino Lisboa e eu, nos tornamos grandes amigos. Ele também trabalhara na MIA. E não nos rendemos ante a negativa dos companheiros da Prelazia. Continuamos lutando por novos rumos do indigenismo. Na Semana Santa de 1967 fomos conhecer a situação dos índios nos toldos do Rio Grande do Sul. Iniciamos por Nonoai, seguindo para Votouro, Ligeiro, Carreteiro, terminando no Domingo de Páscoa no toldo Cacique Doble.
De volta em São Leopoldo, escrevemos uma série de sete artigos no Correio do Povo, denunciando a situação que vimos. A denúncia provocou em maio de 1967 uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa rio-grandense que por sua vez provocou a CPI-Nacional do relatório Jader Figueiredo que acabou com os Serviços de Proteção ao Índio (SPI) e deu início à FUNAI em dezembro do mesmo ano.
Animados com a perspectiva de mudança da política indigenista brasileira, Thomaz e eu, nos metemos de corpo e alma, nas horas vagas da Teologia, na tarefa de colaborar na mudança. Conseguimos levar o tuxaua do Votouro, Juvencio de Paula à TV, onde fez um pronunciamento marcante. E provocamos a realização do 1º Projeto Rondon Regional, orientado por nós para as populações indígenas do Rio Grande do Sul. Visitamos escolas normais, suscitando vocações de professoras que treinadas pela Secretaria de Educação do RGS, foram lecionar nas escolas dos toldos.
Foi um momento decisivo para a política indigenista da Igreja, até então restrita à Amazônia e voltada para a Integração nacional dos povos indígenas, além de se transformar em forte questionamento da politica indigenista do governo, voltada para a integração nacional e que violava muitas vezes a própria política indigenista oficial.
“O Povo de Deus não é leigo e nem tapa-buraco. Ele é o sujeito da História. A Igreja é o Povo de Deus. Ele é o responsável pelo seu futuro. Celibatário e casado, leigo e religioso, bispo e tuxaua, em todos existe a 'sarça ardente' que chama à solidariedade, à Luz que vem do povo oprimido. Sem fronteiras.”
(Mt. 6.33)
Durante o meu primeiro ano na MIA, ocorreu o Massacre do Paralelo 11, contra os índios Cinta Larga. Os primeiros depoimentos, inclusive, foram gravados no meu pequeno escritório em Utiariti, nas margens do rio Papagaio, afluente do Juruena. A propósito deste massacre o nosso guru, o Pe. Adalberto Pereira, SJ, antropólogo cearense, criticava os limites geográficos das missões e dioceses: “Maldito rio Juruena que nos impede de socorrer este povo” – dizia. É que a margem esquerda desse rio era território da Diocese de Porto Velho, cuja sede distava quase 1000 km do teatro do acontecimento. Enquanto a MIA atuava ali, encostado. Era evidente a necessidade de se superar a visão dos limites ou feudos missionários existentes.
Convencidos de que as mudanças não viriam de cima, Thomaz Lisboa e eu, nos empenhamos em três direções: 1º conhecer a situação dos remanescentes indígenas fora da MIA, como fizemos no Rio Grande do Sul, ampliando a nossa visão sobre a questão; 2º acabar com os internatos; 3º criar uma organização de leigos(as), não para tapa-buracos, mas como companheiros que ajudem a realiza as mudanças. Tomamos contatos com jovens católicos e evangélicos (dentro dos princípios do ecumenismo desejado pelo Vat. II), no Vale do Rio dos Sinos, expondo nosso plano de ação. Obtivemos adesão à ideia, mas não conseguimos concretizar uma organização no período dos estudos em São Leopoldo.
Mas em fevereiro de 1969, em reunião com jovens de Sta. Catarina, criamos a Operação Anchieta (OPAN). Com ela nasceu uma nova visão da missão indígena. 1. Abolição da catequese. 2. Encarnar-se na realidade dos povos indígenas, para sentir o sofrimento causado pelos invasores. 3. Tratar a questão indígena como uma questão nacional. O 1º grupo de voluntários que a OPAN enviou em janeiro de 1970, formado de católicos e evangélicos, já se integrou em aldeias do Mato Grosso e de Rondônia.
As reuniões dos missionários indigenistas das Prelazias da Amazônia, promovidas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), antes de abril de 1972, desde a de Morumbi/02-1968, da qual participei ainda estudante, como o relatório do Pe. Antônio Iasi, SJ, após visita às Prelazias em 1970, urgiam a criação de um instrumento que unificasse e coordenasse a ação indigenista da Igreja. Iasi citava como exemplo, a experiência recém-iniciada da OPAN. Mas a agenda de encontro convocado para Brasília, pelo Secretario do Secretariado Nacional de Atividade Missionária (SNAM) da CNBB, Pe. João Mometti, para 22-24 de abril de 1972, não incluía o assunto. Thomaz Lisboa e eu, recebemos o convite em Diamantino/MT e manifestamos a nossa insatisfação ao Bispo, D. Henrique que estava de saída para reunião dos bispos do Regional Centro-Oeste e pedimos solicitasse aos bispos do Regional mudança na agenda, incluindo a criação do órgão unificador da ação indigenista. Pediu-nos então D. Henrique que o acompanhássemos para expor o problema e conseguir o apoio dos bispos. Estes nos pediram a elaboração da proposta. A proposta foi aprovada e assinada por todos os bispos do Regional, encaminhada ao SNAM e publicada na Rev. SEDOC. Nem assim o Pe. Mometti cedeu.
Em consequência frustrou os participantes da reunião, ao insistir na sua agenda ocupando dois terços dos trabalhos de encontro em discussões vazias. Finalmente, em consequência da insatisfação geral, se retirou amargurado. A pedido da assembleia coordenei então, o restante do evento. Partimos logo ao assunto do interesse da maioria. E então nasceu o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). O Conselho foi assim constituído: presidente Pe. Angelo Venturelli, salesiano/MS, e vice-presidente Pe. José Vicente César, Verbo Divino/Brasília. Os demais conselheiros: Pe. Adalberto Pereira, Pe. Thomaz Lisboa e o Dom Henrique Froehlich, jesuítas de Diamantino/MT, Irmã Silvia Wewering, Serva do Espirito Santo/Tocantins e Pe. Casemiro Beksta, salesiano de Rio Negro/AM.
Após a escolha dos membros do CIMI, nós jesuítas de Diamantino, nos reunimos e questionamos o exagero de conselheiros da nossa Prelazia e sugerimos que D. Henrique, cedesse a sua vaga para D. Tomás Balduino, dominicano, bispo da cidade de Goiás/GO. O que teve a aprovação de D. Henrique. Falamos então com D. Tomás que só aceitaria mediante aprovação da assembleia. Reuniu-se, então, a Assembleia que aprovou a sugestão unanimemente. Assim D. Tomás passou a fazer parte do Conselho. Importante decisão para o futuro do CIMI.
A criação do CIMI foi um momento decisivo, mas o momento mais decisivo da revirada da Política Indigenista da Igreja foi a criação do seu Secretariado em 1973.
O CIMI havia sido criado há um ano e meio e nada de mudanças. Tudo continuava como dantes. Após a eleição cada conselheiro, voltou à rotina de sua base. Ninguém pensava em mudar coisa alguma. E as reclamações se avolumavam na CNBB porque o CIMI não atuava no campo.
Por isso, o Secretário da CNBB, D. Ivo Lorscheiter exigiu uma reunião do Conselho, pedindo mudanças na estrutura do novo órgão. Sugeriu a criação de um Secretariado Executivo. Fui convidado a participar da reunião, da qual sai eleito Secretário Executivo. Com o olhar no Concílio Vat. II, busquei mudar os rumos da política indigenista da Igreja. Parar a doutrinação. Organizar um programa que levasse o missionário às aldeias, para ouvir os índios marginalizados e animá-los a se reunirem em assembleias, onde eles mesmos olhassem os seus problemas e decidissem as soluções. Recorri à OPAN, formada por leigos e leigas, para formar a equipe base do Secretariado. Tratava-se de uma força amiga já encarnada nas aldeias desde 1970, com experiência, colhendo nas aldeias a sua luz e energia.
“O clericalismo é uma das maiores deformações que a Igreja da América Latina deve enfrentar" – Papa Francisco (carta ao cardeal Marc Ouellet, Pres. da Pontifícia Comissão para a América Latina e o Caribe)
O desafio que se punha à Igreja missionária indigenista brasileira nos anos 60 e 70 foi abolir a doutrinação e construir um programa que superasse as “ilhas pastorais” que reinavam na Amazônia e dividia os povos não só por limites territoriais, mas até por linhas pastorais. Fui um dos principais articuladores dessa situação constrangedora que reinava no país. Criador da OPAN e ativo participante na criação do CIMI e da CPT. O principal organizador e executor do programa do Secretariado do CIMI: as primeiras assembleias indígenas que começaram a romper as fronteiras impostas pela “integração nacional” e os encontros de pastoral indigenista por regiões, nos quais nasceram os regionais do CIMI que cobriram o país, transformando a questão indígena em uma questão nacional.
Foram 10 anos de andanças pelo país, como padre celibatário, sem casa, sem carro e sem salário, para ver e vivenciar de perto a situação de pobreza e sofrimento dos povos originários remanescentes. Período em que também vivenciei por dentro a Igreja instituição e, em especial, o clero: a situação dos padres e freiras. Seu heroísmo, sua solidariedade, as suas contradições e sofrimentos provocados pelo isolamento. E senti na própria carne o problema. Por outro lado, nestes 10 anos de andanças, conheci muitas pessoas que me estimularam, carinhosamente, rumo a uma encarnação criativa e radical junto ao Povo de Deus. Entre estas pessoas a Doroti Alice que atuava na Amazônia Ocidental. Doroti, como muitas outras pessoas da OPAN e do CIMI, já comungavam com radicalidade maior do que eu, a sua vida com o povo sofrido, estraçalhado, explorado nos seringais e aniquilado por doenças, como a tuberculose, a malária, a hanseníase, a fome...
A definição de Igreja é diferente para quem vive no meio do Povo de Deus e de quem é funcionário de Estado. Este olha para o alto. As ordens vêm das torres e palácios, das basílicas: Roma, Belém e Tréveris que surgiram na Igreja a partir do ano 326, como iniciativa do Imperador Romano Constantino Magno, nos festejos de seus 20 anos de mandato. Dali foram se alastrando mundo afora. O Concílio Vat. II diz que a Igreja é a Luz dos Povos, Luz que vem do Deus Escondido no meio dos perseguidos, dos esquecidos, dos abandonados, dos fracos, dos pequeninos que não existem, dos ignorados, dos largados ‘à beira da estrada’.
Doroti e eu nos apaixonamos na vocação de nossa vida: o sermos presença mais forte e útil à Igreja, Povo de Deus, junto aos mais necessitados. Foi este objetivo que motivou o nosso casamento e não apenas a constituição de uma família e o prazer do sexo. O problema é que no meu caso de padre casado, isto é proibido na Igreja instituição. Por isso, alguns companheiros e companheiras de luta e trabalho indigenista, leigos e religiosos se chocaram com o anúncio de nosso casamento e pediam que eu encaminhasse a laicização, cedendo às pressões da Instituição. Até fizeram uma reunião em Dourados para tratar do assunto.
De fato, a preocupação do meu superior religioso agora foi me desligar da Ordem. E o meu amigo Secretário da CNBB, ao lhe informar do casamento só me disse esta palavra: “saia”. Sem dizer de onde e nem para onde. Mas convicto de não ter cometido um pecado, não assinei as demissórias, nem da Companhia de Jesus, os jesuítas, e nem do sacerdócio. Entendemos o por que das pressões dos superiores. Os dirigentes das instituições se regem por leis que nem sempre permitem a solidariedade.
E as dificuldades institucionais foram chegando. Inicialmente, sonhávamos continuar o trabalho de Doroti, junto ao povo do rio Purus. Entretanto, o preconceito do bispo local, contra minha situação de padre casado, nos impediu de realizar este sonho. Fomos então à procura de outro povo necessitado: Alto Solimões, Roraima... E estávamos dialogando com pessoas da Prelazia do Xingu, quando D. Tomás Balduíno, presidente do CIMI, nos propôs ir aos Waimiri-Atroari. Ele nos conhecia muito bem. Com ele percorri todo o país, na realização do programa do Secretariado do CIMI. Carinhosamente me apelidou de “Incendiário”.
Os Waimiri-Atroari estavam então dominados por soldados do Exército e funcionários da FUNAI, só machos, responsáveis pelo genocídio que durante a construção da estrada, reduziu o povo Kiñá de 3000 a 332 pessoas. Agora estavam preocupados em ocultar o seu crime.
A nossa presença como casal com filhos pequenos, poderia levar aos Kiña uma outra visão da sociedade nacional: uma vivência familiar solidaria e de repúdio à invasão de seu território e ao crime do genocídio sofrido. O desafio nos foi posto e o abraçamos sem pestanejar. D. Tomás já havia tomado a iniciativa do contato com D. Jorge, bispo de Itacoatiara, para nos receber e apoiar. E em junho de 1980 iniciamos a viagem de ônibus e barco até Itacoatiara. Tínhamos apenas o Marcos Ajuri. O “Ajuri é fruto da paixão indigenista”, dizia D. Tomás.
Inicialmente fomos morar num bairro pobre de Itacoatiara. Eu já estava 5 anos proibido pela Ditadura Militar e penetrar nas áreas indígenas do país. Assim, neste cantinho, como quem não existe mais, Doroti e eu, nos sentimos livres e leves para poder andar com liberdade. Primeiro no entorno da área do povo Kiña-Waimiri-Atroari, apoiando as comunidades eclesiais de base, tanto na Prelazia de Itacoatiara, como de Roraima. Recordo com emoção das “piracaias”, celebradas nas comunidades de base em Itacoatiara e dos Cursos nas comunidades de base, da Perimetral Norte, em Roraima. Ali na família da Ângela, Vicinal 24, com os banhos lá no igarapé, no fim das tardes. Todos nus.
Com o olhar aberto em todas as direções, rumo ao povo sofrido do país e do mundo.
Dom Jorge contatou a Arquidiocese de Manaus e fez a troca da paróquia de Rio Preto da Eva, pela área da futura paróquia dos Santos Mártires e Nossa Sra. Aparecida na BR-174, para onde nos deslocamos em seguida, para ficar mais perto das aldeias Kiñá. Entre os anos de 1980 e 1987 fui o único padre presente na BR-174, entre os KMs 100 e 326 e na AM-240, estrada de Balbina. Todo o povo da região me reconhecia e me chama até hoje, por quem sou: “padre Egydio”. Se não celebrei a Eucaristia, foi porque a Instituição me proibiu.
Para termos acesso ao povo Waimiri-Atroari, tivemos que enfrentar a Ditadura Militar. Já havia 5 anos que o presidente da FUNAI me proibira de entrar em qualquer área indígena do país. Com o apoio de Dom Jorge pelo lado Sul e pelo lado Norte, dos Pe. Nilvo e Vitélio, começamos a marcar presença e conhecer a população envolvente, em especial, os pequenos agricultores. E com paciência descobrimos “furos” no sistema repressor da FUNAI, para chegar às aldeias. E em 1983, pela primeira vez, a família, então com 3 crianças, foi recebida, em aldeia Kiñá. Permanecemos aproximadamente uma hora, clandestinos, na aldeia Taquare.
Em 1985, início da Nova República, já conhecidos em várias aldeias, participamos de um grupo de trabalho que objetivou mudar a conturbada política indigenista da FUNAI junto ao povo Kiña. E ante o pedido dos Kiña de serem alfabetizados, fomos autorizados pelo presidente da FUNAI a morar com eles para realizar o seu desejo. Tarefa que iniciamos em seguida no dia 4 de setembro de 1985 na aldeia Yawara, Sul de Roraima. Mas quando a FUNAI e os empresários perceberam que os Kiñá alfabetizados pelo método Paulo Freire, revelavam os crimes do genocídio sofrido, fomos retirados compulsoriamente da área.
E a política indigenista junto aos Kiñá foi então entregue pela FUNAI à Eletronorte, à revelia da lei, uma empresa envolvida no genocídio e por isso interessada na sua ocultação. Por pressão nacional e internacional, o Banco Mundial que financiou a hidrelétrica de Balbina foi obrigado a financiar a mitigação dos prejuízos causados aos Kiñá pela obra. Com o recurso a Eletronorte criou o Programa Waimiri-Atroari (PWA) que entregou ao comando de um filhote da Ditadura, garantindo assim a ocultação do genocídio por mais 30 anos.
De nossa parte a oportunidade que tivemos de nos encarnar com a família por um ano e meio na realidade desse povo oprimido e excluído, nos trouxe muita riqueza. Ali encontramos as “sementes de Deus ocultas”, uma fonte de valores inestimáveis, tais como: a comunidade, a solidariedade, a partilha dos bens da terra, o encontro diário, o trabalho em mutirão, a segurança na terra, na família e na comunidade. Uma generosidade que sempre encontra algo (fruta, carne moqueada ou beiju) para oferecer e alegrar os visitantes, mesmo em meio à pobreza imposta pela interferência do modelo egoísta invasor. Gente que pratica um sistema de educação libertador, sem discriminação de pessoas que cultiva o dom de cada um no conhecimento e domínio da natureza no seu verdadeiro sentido. Não pelo seu valor mercantil, mas a natureza em sua totalidade, como fonte de sabedoria oferecida à todos, sem distinção.
Impedidos pelos interesses necrófilos de permanecer na aldeia, nos dedicamos com novos instrumentos de luta à libertação desse povo. Reforçamos as atividades do Movimento de Apoio à Resistência Waimiri-ATroari (MAREWA) e criamos a Casa da Cultura do Urubuí (CACUÍ), organizando aqui, próximo às suas aldeias, um acervo documental que pudesse futuramente estar à disposição do povo Kiña e responder-lhes a pergunta: “Por que civilizado matou Kiña?” E através de nossa dedicação às abelhas e à agroecologia, ampliamos a solidariedade aos Kiña para outros povos e populações oprimidas. Em 2011 ajudamos a criar o Comitê pela Memória, Verdade e Justiça do Amazonas que tomou como prioridade integrar na agenda da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o genocídio contra os povos indígenas durante a Ditadura Militar. O Relatório que escrevemos com o Comitê amazonense sobre o Genocídio do povo Waimiri-ATroari, encaminhado em 2012 à CNV, garantiu a inclusão da questão indígena a agenda da Comissão.
Schwade posa ao lado dos Waimiri-Atroari, a quem ajudou a alfabetizar. (Imagem: Casa de Cultura Urubuí)
Embora acusados pela FUNAI e pelo PWA de terem pedido a nossa retirada da área, temos certeza e provas de que isto nunca ocorreu. Sabemos que foram pressionados de varias maneiras a fazê-lo, mas neste particular a FUNAI e o PWA não foram atendidos. No ato de nossa retirada, no escurecer do dia 4 de dezembro de 1986, rapazes e moças, estiveram reunidos conosco, escolhendo 100 desenhos de bichos, desenhados por eles, para comporem o 1º livro que iniciaria a sua literatura. Já haviam dado o título: NUKWA, traduzindo: “Bichos”. Ao me despedir do tuxaua, sentado tristonho na soleira da porta do Posto da Funai. ele me disse: “Egydio, você, Doroti e CIMI, fracos igual nós.” O que considerei o maior elogio que recebi durante todo meu indigenismo. E no momento em que a pick-up desacelerou, para ultrapassar o mata-burro na entrada da BR-174, um grupo de rapazes saltou na pick-up onde estava com meus filhinhos e eles os acolheram nos braços, dando carinho e abrigo contra o vento frio nos 185 Km de estrada de chão entre a aldeia Yawara e nossa casa em Presidente Figueiredo, onde dormiram aquela noite.
Sistematicamente impedidos pelo PWA de frequentar a nossa casa, uma dúzia deles com a ajuda de um funcionário liberal, veio em 1998, fazer um curso sobre criação de abelhas. Pediram para assessorá-los no trabalho das abelhas e para o início marcaram o dia para visitá-los com este fim. Infelizmente, só pudemos atendê-los uma só vez. O funcionário que os apoiava foi afastado e o coordenador do PWA impedir em definitivo a nossa entrada na area. Contudo, daí por diante quando passam em frente a nossa casa, vindo ou indo a Manaus, sem acompanhante do PWA, param conosco para uma conversa amigável.
E recentemente, após 36 anos da nossa expulsão da aldeia Yawara pela FUNAI, recebemos uma visita toda especial de 4 lideranças Kiñá, entre eles 3 ex-alunos da Escola Yawará. Entre eles o Tuxaua da aldeia e Warkaxi, filho de Kianã (Comprido), um dos maiores protagonistas da resistência contra a BR-174. Ansiosos pediram fotos e informações sobre Kianã e os principais líderes da resistência contra a BR-174 e eles mesmos foram pesquisar na CACUÍ.
A visita diferente foi resultado da atitude de Professores da UFPA, a frente Gilberto Marques e do procurador Steven Zwickter do MPF de São Paulo que em visita à área e com base na documentação que levantaram na CACUI, animaram os Kiña a visitar a conhecerem também a Casa onde podem obter a verdade sobre a questão que os preocupa: por que Kamña (= civilizado) matou Kiña (= a nossa gente)? Esperemos que não sejam mais uma vez impedidos pelos dirigentes do PWA.
Morreram os principais opressores: os generais Gentil Paes de Almeida e João Batista Figueiredo, os dirigentes das empresas invasoras, Eletronorte e Parnapanema e o coordenador do Programa Waimiri-Atroari que mantiveram o crime do genocídio oculto, mas os Kiñá vivem e cada dia mais vigorosos, numerosos e plenos de esperança.
A maldade, a mentira, o colonialismo, o genocídio, a tortura, a opressão, não conseguem matar a esperança. Marco Temporal e Integração Nacional nunca!
Com lei escrita, sem lei, apesar da lei ou contra a lei, os povos indígenas tem o direito à “terra apta e suficiente para um crescimento demográfico adequado à sua realidade ecológica, cultural e socioeconômica”. Resistir sempre!
Feliz ano novo!