04 Novembro 2022
"À radical e inculturada inserção aliaram uma sistemática reflexão crítica e uma destemida denúncia profética sobre a estrutural indignidade e cruel injustiça a que estavam submetidos esses povos pelos governos que se sucediam no Brasil. Não se calaram, nem retrocederam diante das muitas resistências e incompreensões sofridas, inclusive por parte de seus coirmãos e superiores dentro das próprias Congregações religiosas", escrevem Gabriel Vilardi1, SJ, e Aloir Pacini2, SJ.
Neste ano de 2022, em que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) completou cinquenta anos de fundação, o cenário de violações dos direitos indígenas é assustadoramente desolador e preocupante. A partir da análise do último relatório anual de Violência Contra os Povos Indígenas (disponível aqui), publicado pela entidade, pode-se afirmar que o Brasil vive sob o pior governo para os povos originários desde a redemocratização. Em artigo publicado no citado documento, os indigenistas Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott denunciam que “sob Bolsonaro, a violência e impunidade contra os povos indígenas foram naturalizadas”:
Sob o governo de Bolsonaro se introduziu, na relação do Estado com os povos indígenas, pelo menos duas concepções de fundo que embasam os crimes e a impunidade: a primeira vincula-se à ideia de que os indígenas não são sujeitos de direitos como os outros humanos, prevalecendo a lógica do “selvagem” que, como tal, pode ser agredido, atacado, expulso ou morto; a segunda vincula-se à ideia nefasta de que os povos não precisam de terra e que tudo que se faz para eles, em termos de políticas públicas, é privilégio; portanto, ignorá-los, integrá-los, violenta-los e até mata-los não são problemas.
Não se compreende a resistência dos Povos Indígenas nos últimos cinquenta anos sem a participação, apoio e assessoria do Conselho Indigenista Missionário que rompeu com uma pastoral de desobriga, eminentemente sacramentalista e voltada para uma catequização cheia de colonialismos. O propósito do CIMI era demarcar suas terras tradicionais, auxiliar na saúde e educação diferenciadas e específicas com o compromisso de respeitar e valorizar suas organizações sociais, crenças e línguas. Ao longo dos anos o CIMI tornou-se um dos maiores aliados das lutas indígenas como sinal do Evangelho, desempenhando um importante papel de fortalecimento do protagonismo dos principais interessados, os próprios indígenas.
É verdade que essa frutífera conversão da Igreja não se deu sem tensões e incompreensões mútuas, confrontos internos e variados graus de adesão à profética posição trazida pelo recém-fundado organismo missionário, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um caminho pontuado por avanços e retrocessos, tendo passado pelo Sínodo para a Amazônia (2019) e chegado aos dias atuais sendo a Igreja, na pessoa do Papa Francisco, bispos e missionários, uma valiosa e confiável aliada.
Também fundamental para a primeira evangelização do Brasil foi o papel da nascente Companhia de Jesus, que apenas nove anos após a sua aprovação papal enviava o primeiro grupo de jesuítas à jovem colônia, em 1549. As missões jesuítas junto aos Povos Indígenas foram objeto de inúmeros estudos e duras críticas por parte dos historiadores e especialistas. Algumas delas talvez mais acertadas e justas do que outras. Aprofundar alguns fatos marcantes que contribuíram com o processo de criação do CIMI e lançar luz sobre a participação relevante dos filhos de Santo Inácio de Loyola nessa ruptura no modo de relacionar-se com os primeiros habitantes dessas terras é determinante para pensar e sonhar os próximos cinquenta anos de luta e resistência.
Em 1929, a Companhia de Jesus assumiu o trabalho missionário de criar a Prelazia de Diamantino (MT) e o grupo de jesuítas e religiosas que trabalhavam com os indígenas organizou-se em torno da denominada Missão Anchieta (MIA), baseada nos métodos de evangelização da época. Para tanto, em 1945 fundou o Centro Educacional de Utiariti, que funcionava em regime de internato, com o fim de educar as crianças e os adolescentes, capacitando-os profissionalmente.
Em encontro celebrativo pelos cinquenta anos do CIMI, realizado em Cuiabá, no último dia 31 de outubro, Sebastião Moreira, conhecido como Tião do CIMI, coordenador do Regional Mato Grosso por vários mandatos, recordou que o grupo maior de internos em Utiariti eram Rikbaktsa transformados em órfãos pela invasão dos seringueiros a seu território e consequentes epidemias que deixaram morta mais da metade de sua população. Não teriam sobrevivido sem essa intervenção do Padre Dornstauder. Os impactos eram avassaladores para essas crianças que se sentiam longe de suas famílias e culturas. Com o envio de jovens jesuítas para a etapa do magistério, entre eles Egydio Schwade e Thomaz Lisbôa, as interpelações não tardaram. De volta a São Leopoldo (RS) para realizarem seus estudos teológicos (1966) e influenciados pelos ares do Concílio Vaticano II (1962-1965), os estudantes escreveram um manifesto com críticas às práticas pastorais e pedindo o encerramento do Internato.
Na Semana Santa de 1967, esses mesmos estudantes de teologia buscaram uma missão entre o povo Kaingang (RS) e encontraram uma situação calamitosa de marginalização e miséria. Indignados, os jesuítas publicaram alguns artigos no jornal Correio do Povo com ampla repercussão que ultrapassou a região Sul e chegou até a capital federal. Diante da pressão, instalou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Federal, o que colaborou para a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no mesmo período.
De fato, a inadequação das respostas dos internatos tornara-se evidente e a Companhia de Jesus não permaneceu inerte: tratava-se de superar a velha e colonial visão de “civilizar” os indígenas e integrá-los à sociedade ocidental. No ano seguinte, sob a direção do já então Padre Thomaz Lisbôa, SJ e com a autorização do Superior Geral da ordem que visitou o local, o Centro Educacional de Utiariti foi fechado e os missionários jesuítas passaram a morar nas comunidades indígenas e encarnarem-se nas culturas desses povos da região, tais como os Nambikwara, Paresí, Manoki, Mỹky, Enawenenawê e os Rikbaktsa, entre outros.
O Padre Pedro Arrupe, SJ teria avisado que esse novo modo de proceder traria mártires, o que foi assumido de forma consciente pelos indigenistas, porque um novo começo era imprescindível. De fato, os martírios não tardaram, o Padre João Bosco Burnier, SJ (12/10/1976), missionário entre o Povo Bakairi e o Ir. Vicente Cañas, SJ (06/04/1987), missionário entre o Povo Enawenenawê, deram a vida pela fidelidade ao Reino de Justiça e Fraternidade anunciado pelo Evangelho da Justiça com suas místicas.
Ainda em 1968, realizou-se, em São Paulo, o 1º Encontro sobre Presença da Igreja nas Populações Indígenas, articulação do jesuíta Egydio Schwade. Alguns meses mais tarde, em Melgar, na Colômbia, aconteceu o primeiro encontro latino-americano sobre o tema, convocado pelo Departamento de Missões do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Em que pese este tenha sido bastante proveitoso, a II Conferência Geral do Episcopado da América Latina, em Medellin, foi pouco influenciada pelo encontro que lhe precedeu.
A partir da inspiração que o Padre João Dornstauder, SJ teve de trazer voluntários da Áustria para auxiliar nos trabalhos da Missão Anchieta e formar a Missão Volante, Egydio Schwade apostou na formação de jovens leigos para fortalecer uma presença missionária renovada e fundou, prioritariamente com jovens das Congregações Marianas, em 1969, a Operação Anchieta (OPAN), posteriormente renomeada como Operação Amazônia Nativa. A organização investiu em cursos específicos de indigenismo aliados a inserções acompanhadas nas comunidades indígenas, o que atraiu muitos jovens, inclusive, estrangeiros. Com o advento do CIMI muitos de seus membros fortaleceram o organismo vindo a ocupar posições de destaque, tais como os secretários-executivos dos períodos de 1983, 1987 e 1991. Destaque para o saudoso Antônio Brand, de Linha Dom Diogo, Salvador do Sul (RS) que também fora jesuíta.
Nessa mesma época, o também jesuíta Padre Adalberto Holanda Pereira, SJ publicou seu livro o “Diretório Indígena”, com intuições fundamentais para a mudança da abordagem missionária. A obra trouxe normas e conselhos para os missionários indigenistas que rompiam com o etnocentrismo então vigente ao pontuar: “Não queremos igualar o índio a nós, mas prepará-lo para viver conosco, permanecendo ele diferente. Não existe o Índio, um igualzinho ao outro. Existem populações indígenas e os índios, pessoas e indivíduos”. Defende ainda uma formação específica para que não se incorresse na irresponsabilidade se “trabalhar com as populações indígenas sem que se tenha pelo menos uma atitude antropológica”.
Também nesse ano outro jesuíta, o Padre Antônio Iasi Jr., SJ, é solicitado pelo presidente da FUNAI, José Queirós Campos, a assessorar o órgão federal. Como o SPI fora extinto, a nova organização prometia avanços significativos no indigenismo oficial. Realizado o 1º Simpósio Indigenista entre Funai e Missões Religiosas, Dom Tomás Balduíno e Padre Ângelo Venturelli serão nomeados como titular e suplente do Conselho Indigenista da entidade. Em âmbito continental realizou-se o segundo encontro em San Antonio de los Altos, na Venezuela, em que se reafirmou a reunião anterior com a necessidade de uma formação consistente, reforçando-se o pedido “para preparar os que pela primeira vez vão trabalhar nas missões; renovar e atualizar os que já trabalham nas regiões missionárias”.
Com o 2º Encontro de Estudos sobre a Presença da Igreja nas Populações Indígenas (1970), decidiu-se pela criação de uma assessoria especializada sobre o tema na CNBB e os primeiros responsáveis foram os Padres Ângelo Ventureli, Antônio Iasi Jr, SJ e José Vicente César. Tendo em vista a saída do presidente da FUNAI e a nomeação de um militar para o seu lugar, percebendo a inexistência de liberdade suficiente para a sua atuação, o Padre Iasi, SJ desligou-se de suas funções no órgão. Era o tempo do “milagre brasileiro”, em que o linha-dura general Médici comandava a ditadura e, com seu plano inescrupuloso, avançava vorazmente sobre a região Amazônia, em nome do tresloucado “desenvolvimento nacional”.
Reconhecido no meio indigenista, o padre jesuíta foi incumbido pela conferência dos bispos de visitar as 20 prelazias amazônicas para levantar a situação da pastoral indigenista na região. No final, produziu o “Relatório da Visita às Prelazias da Amazônia”, em que constatava que “as missões estiveram mais a serviço dos exploradores que dos índios e, hoje, continuam a se ocupar quase que somente daqueles, deixando as ovelhas negras do rebanho de Cristo – os índios – no mais completo abandono”.
Na esteira dos encontros latino-americanos dois deles merecem destaque, o de Xicotepec, no México e o de Iquitos, no Peru (1971). Naquele os membros da Pastoral Indigenista proclamaram que “Deus fala no próprio coração das culturas indígenas. (...) E se a missão da Igreja é precisamente descobrir Cristo nas culturas, realizar nelas a plenitude da palavra, sua tarefa é simultaneamente levá-las à plenitude de seu desenvolvimento cultural”. Enquanto este último encontro, apesar da ausência de representantes do Brasil, propôs a criação da Conferência Episcopal da Amazônia, o que só se concretizou quase cinquenta anos depois, em 2020, com a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA).
Outro valoroso defensor da causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga, lançou sua carta pastoral “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” (10 de outubro de 1971). De forma corajosa, o bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia denunciou o injusto latifúndio que expulsava os posseiros e os indígenas de suas terras, além da agressiva política oficial de integração dos povos originários na sociedade não-indígena.
No mesmo período, um grupo de quinze antropólogos, dos quais quatro brasileiros, entre eles Darcy Ribeiro, aprovou a Declaração de Barbados I que, apesar de reconhecer que “elementos dissidentes dentro da Igreja estão tomando uma posição clara de autocrítica radical”, pedia a saída dos missionários dos territórios indígenas por perpetuar a “situação colonial imperante”, com a consequente “imposição de critérios e padrões alheios às sociedades indígenas dominadas”.
Ainda nesta época, em razão do perigo a que estavam expostos pelo avanço impiedoso da fronteira agrícola, os missionários Thomaz Lisbôa e Vicente Cañas lideraram uma expedição para estabelecer os primeiros contatos com o Povo Mỹky, o que aconteceu em 13 de junho de 1971. Infelizmente, restavam apenas 23 membros dessa etnia, com sérios riscos de ser extinta. O principal objetivo era protegê-los dos invasores de seus territórios. A empreitada teve o cuidado de não transmitir nenhuma doença e a integridade física de todos foi preservada. Começava assim a longa e frutuosa história de inserção de Thomaz Lisbôa entre seus novos amigos, a quem serviu pelo resto de seus dias.
Mais uma profunda e bela história de amor entre os missionários jesuítas e um Povo Indígena, aconteceu com os Rikbaktsa. O Padre João Dornstauder, SJ, ousando-se inserir-se no meio da guerra que acontecia entre essa etnia e os seringueiros, realizou os primeiros contatos pacíficos, em 31 de julho de 1958. Vítimas de permanentes ataques daqueles que cobiçavam suas terras, o padre jesuíta agiu para evitar uma tragédia maior. Tristemente, muitos pereceram em virtude das epidemias transmitidas por contatos inadequados e violentos. Cerca de 70 crianças órfãs foram levadas para o internato de Utiariti e, após o seu fechamento, o jovem Balduino Loebens, SJ fez o caminho inverso e foi morar com eles, em 1971. Até o fim permaneceu fiel, quando fez sua Páscoa, em 2014, no mesmo Rio Juruena que tantas vezes navegou.
Reunidos em Assunção, no começo de 1972, os missionários indigenistas reconheceram que “nossas Igrejas, mais de uma vez, têm sido coniventes ou instrumentalizadas por ideologias e práticas opressivas do homem” e que “a Igreja não tem sido alheia a estas práticas nas quais os critérios racistas substituíram o critério do Evangelho”. Todavia, rejeitaram a proposta de suspensão das atividades missionárias e instaram a Igreja a “apoiar decididamente a formação de organizações propriamente indígenas”.
Finalmente, com o intuito de dar uma coesão maior ao trabalho missionário, a CNBB convocou o 3º Encontro de Estudos sobre a Pastoral Indígena, a ser realizado em Brasília onde apareceriam reações contrárias ao golpe militar no Brasil. O historiador Benedito Prezia publica no livro “Caminhando na luta e na esperança” (Ed. Loyola, 2003), que muitos estavam insatisfeitos com os encaminhamentos realizados pelo Padre João Mommetti, responsável pelo Secretariado Nacional de Atividade Missionária (SNAM): “um grupo de jesuítas de Diamantino propôs uma nova pauta, que incluía, entre outros temas, ‘a formação de um instituto dinâmico e representativo para a formação da política indigenista no país’ (Schwade, Cronologia)”.
Assim, em 23 de abril de 1972 era criado, como dizia Pedro Casaldáliga, as quatro letrinhas que iriam incomodar governos, latifundiários e grileiros inimigos dos Povos Indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), com a clareza de que o importante era assegurar seus territórios tradicionais e o protagonismo dos povos indígenas sobre seus processos históricos. No grupo fundador estavam, dentre outros, os jesuítas Dom Henrique Froehlich, SJ (Diamantino-MT) e os Padres Thomaz Aquino Lisbôa, SJ, Egydio Schwade, SJ e Adalberto Pereira, SJ.
No já citado encontro celebrativo entre indigenistas do Regional Mato Grosso, acontecido recentemente, a irmã salesiana Ada Gambarotto, uma das poucas pessoas ainda vivas que assinou o documento de criação do CIMI, disse que na ocasião pensou ser o fim das Missões com os indígenas, mas resolveu apoiar para não se indispor com os demais missionários. Como se percebe, foi uma aposta ousada daquele primeiro grupo de indigenistas!
Dos seis membros do primeiro conselho da entidade, dois eram jesuítas, além do próprio Thomaz Lisbôa, que futuramente ocuparia a sua vice-presidência, o Adalberto Pereira, SJ também foi escolhido para fazer parte. Ademais, aquele que será o primeiro regional, Mato Grosso, era onde tinham sua sede a Missão Anchieta e a OPAN. Alguns meses mais tarde, em novembro, Egydio Schwade, SJ tornou-se o primeiro secretário-executivo do CIMI, sendo o responsável pela implementação dos Regionais, a partir de 1974. Função que também seria ocupada pelo Pe. Antônio Iasi, SJ algum tempo depois.
Essa fase inicial pode ser dividida em dois períodos distintos. O primeiro, que vai até junho 1975, chamado de oficialista, é marcado por uma ala mais conservadora que desejava manter o colaboracionismo com o Estado. Enquanto o momento profético, que vai até julho 1979, apesar da quase inexistente estrutura organizacional, foi povoado de denúncias e críticas às missões tradicionais. As reações contra essa ousadia dos indígenas e missionários não demoraram a chegar de muitas formas, dentro e fora da Igreja Católica. E, em Merure (MT), o salesiano Rodolfo Lunkenbein foi morto com o Bóe Simão Bororo em 16/07/1976. Alguns meses mais tarde, o então Coordenador do Regional do CIMI-MT, João Bosco Burnier, SJ, também será martirizado no local que se transformará no Santuário dos Mártires da Caminhada.
Em meio às disputas internas sobre as posições do organismo, um grupo de missionários e bispos, sob a coordenação do Padre Iasi, SJ, produziu um documento-denúncia chamado “Y-Juca-Pirama. O índio: aquele que deve morrer”, publicado em março de 1974. Inicialmente previsto para o 25º aniversário da Declaração de Direitos Humanos da ONU, o atraso se deu em razão da dificuldade de se encontrar uma gráfica ou editora que o imprimisse. Entre os dozes signatários, além do já citado Pe. Iasi, SJ estava o Pe. Thomaz Lisbôa, SJ. A análise da conjuntura dos Povos Indígenas é estarrecedora, com incontáveis denúncias de extermínios e da lógica assimilacionista da ditadura em vigor:
Aí está uma interpelação que suscita uma indispensável pergunta, em sentido contrário: o que seria o Brasil, se contasse positivamente com o índio? É bem possível que muitas autoridades e brasileiros de mentalidade capitalista e imperialista tremam diante desta pergunta, o que mostra que, consciente ou inconscientemente, apoiam a extinção dessas populações que constituem, por seus valores positivos, uma contestação viva do sistema capitalista assim como dos tais ‘valores’ da pretensa’ civilização cristã’. Diante de outra pergunta (o que seria a nossa Igreja, se contasse positivamente com o índio?), talvez a atitude de muitos irmãos de fé seria igualmente de embaraço. Se olhássemos positivamente para os valores vividos pelos índios ao criticarem nossos valores, ficaria evidente um incômodo julgamento.
Os impactos foram tão grandes que obscureceram a repercussão do recém-aprovado Estatuto do Índio, em dezembro de 1973. O governo militar revidou e proibiu que o bispo Pedro Casaldáliga e os padres jesuítas Iasi e Edydio entrassem nos territórios indígenas. O Pe. Iasi, SJ também teve que ficar detido por algumas horas no Posto Indígena em Apucarana, no Paraná. Essa brutalidade contra os Povos Indígenas, tão presente nos anos de chumbo, nunca desapareceu, de fato, mesmo com a Constituição Cidadã de 1988 e o restabelecimento da democracia. Como se não bastasse, infelizmente, houve um inegável recrudescimento da violência contra os povos originários desde a eleição do seu autodeclarado inimigo, Jair Bolsonaro.
Um sinal de grande esperança surgido naquela época e que continua reverberando até os presentes dias foi o nascimento do movimento indígena organizado. O gérmen esteve nas Assembleias de Chefes Indígenas promovidas pelo CIMI, sendo a primeira delas em Diamantino, na sede da Missão Anchieta, em 19 de abril de 1974. Conforme anotou o Pe. Iasi, SJ, “o resultado foi surpreendente: os índios redescobriram que eles devem ser os sujeitos de seus destinos; não é a Funai, nem são as Missões os que resolverão os problemas deles”.
No período de dez anos após a primeira assembleia, foram realizadas mais de vinte reuniões sendo que dessas, dezesseis contaram com o apoio do CIMI. A 7ª Assembleia, que aconteceu no Surumu, Roraima, em 1977, teve a presença do presidente do CIMI, Dom Tomás Balduíno e de seu secretário-executivo, Pe. Edydio Schwade, SJ. Em razão das denúncias que vinham sendo realizadas pela entidade missionária, a reunião foi interrompida pelo governo dando-se como justificativa a falta de autorização da FUNAI. Ao contrário de inibir as lideranças indígenas, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) se fortaleceu e se tornou uma das organizações mais fortes e articuladas do movimento indígena nacional, tendo elegido em 2018 a primeira parlamentar indígena da história do país, Deputada Joenia Wapichana (2019-2023).
E muitos foram os companheiros e as companheiras desse grupo tão diverso de amigos no Senhor que, apaixonados pelos Povos Indígenas, deram seus melhores anos ao seu lado. À radical e inculturada inserção aliaram uma sistemática reflexão crítica e uma destemida denúncia profética sobre a estrutural indignidade e cruel injustiça a que estavam submetidos esses povos pelos governos que se sucediam no Brasil. Não se calaram, nem retrocederam diante das muitas resistências e incompreensões sofridas, inclusive por parte de seus coirmãos e superiores dentro das próprias Congregações religiosas.
Na rebelde fidelidade souberam discernir os sinais dos tempos e saíram do “próprio amor, querer e interesse”, fazendo-se pobres com o Cristo pobre, desprezados com Cristo desprezado e loucos com Cristo que primeiro foi tido por louco, como ensina Santo Inácio de Loyola, nos números 189 e 167 dos Exercícios Espirituais. Por graça Daquele que os chamou para o despojamento de coração, fizeram-se Paresí com os Paresí, Kurâ-Bakairi com os Kurâ-Bakairi, Rikbaktsa com os Rikbaktsa, Mỹky com os Mỹky, Enawenenawê com os Enawenenawê...
Mesmo depois de tanto bem recebido e compartilhado por esses companheiros indigenistas, as perseguições permanecem e abandonar essa aliança com os povos da floresta não é uma opção. O sangue indígena clama por justiça! As palavras do atual presidente do CIMI, Dom Roque Paloschi, no último relatório anual são de uma clareza incômoda:
No Brasil, desde então esse cenário desolador só se aprofundou. Nos últimos anos, o governo federal estimulou com desembaraço incomparável a ação dos grupos econômicos e criminosos que avançam sobre os territórios indígenas, devastam biomas e ecossistemas – e destroem -, com omissão ativa do Estado, a fonte de Vida desses povos.
Oxalá o Deus que se fez indígena desperte outros amigos da causa como João Bosco Burnier, Vicente Cañas, João Dornstauder, Adalberto Holanda Pereira, Antônio Iasi, Balduino Loebens, Thomaz Lisbôa e Egydio Schwade. Que Nossa Senhora da Amazônia, Mãe dos Injustiçados, ajude a derrotar os dragões que ameaçam o seu bem-viver, na certeza de que os próximos cinquenta anos de luta e caminhada que virão sejam junto aos Povos Indígenas!
1 Jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região da Serra da Lua.
2 Aloir Pacini é antropólogo e jesuíta que atua na UFMT com os povos indígenas no Mato Grosso.
3 CIMI, Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021, pág. 17.
4 Entre os dias 7 a 11/11/2022 acontecerão os festejos de 50 anos do CIMI de todo o Brasil no Centro de Formação Vicente Cañas (Brasília).
5 PACINI, Aloir; LARA, Marina Garcia. Revisitando a Missa da Terra sem Males em tempos do Papa Francisco. [Revisiting the Terra sem Males’ Mass in Pope Francis’ times]. Tellus, Campo Grande, MS, ano 22, n. 47, p. 165-196, jan./abr. 2022. Disponível aqui.
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A contribuição jesuíta para o nascimento do CIMI no Mato Grosso. Artigo de Gabriel Vilardi e Aloir Pacini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU