07 Julho 2025
Celebrar os 90 anos tão intensos e frutíferos de Egydio Schwade significa celebrar a vitória da resistência indígena, porque muitos acreditaram, trabalharam e colaboraram na construção da luta pela libertação das comunidades originárias. O que teria acontecido sem a teimosa rebeldia de tantas companheiras e companheiros que junto com Egydio insistiram, transformaram e criaram novos modos de estar e apoiar os povos do Bem Viver? Com seu jeito simples, apaixonado e visionário, Egydio encantou e continua inspirando gerações de indigenistas e militantes da causa indígena.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Vivemos sob o signo da morte-ressurreição do Senhor. Nossas populações indígenas, ao longo do tempo, já pagaram à morte o seu doloroso tributo. Chegou o momento de anunciar, na esperança, que aquele que deveria morrer é aquele que deve viver”[1], consignou o documento-denúncia “Y-Juca-Pirama. O índio: aquele que deve morrer”, publicado em 1974. Se em 1971 as estimativas contabilizavam cerca de 97.000 indígenas, o Censo de 2022 constatou que hoje são 1.700.000. Se existe um aliado comprometido e fiel nessa luta de resistência, certamente é o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nessa história de mais de 50 anos, muitos missionários e missionárias construíram a utopia dessa profunda aliança com causa indígena e, entre eles, está Egydio Schwade.
Muito já foi escrito sobre e pelo próprio Egydio em relação à história do indigenismo nos últimos 60 anos e a sua fundamental participação nela. E tanto mais ainda precisa ser feito para narrar as rupturas e as revoluções iniciadas por ele, juntamente com muitos outros companheiros e companheiras de caminhada. Testemunha ocular privilegiada, o indigenista foi protagonista de fatos marcantes na luta contra o extermínio indígena e pelos direitos das comunidades originárias, no país e na América Latina.
Como bom conhecedor da espiritualidade inaciana, o missionário gaúcho assumiu o desejo do “bem mais universal” e intuiu que Jesus lhe aguardava nas fronteiras desconhecidas e abandonadas pelo Estado e pela Igreja. Junto aos povos desprezados por um etnocentrismo preconceituosamente entranhado na sociedade e nas estruturas de poder, Egydio esteve à frente de seu tempo e experimentou a encarnação de sua vocação alinhado à melhor tradição jesuítica:
“Junto com um enorme crescimento da riqueza e do poder no mundo, verifica-se um enorme e contínuo crescimento da desigualdade. Os atuais modelos dominantes de desenvolvimento deixam milhões de pessoas, especialmente jovens e pessoas vulneráveis, sem oportunidades para integrar-se na sociedade. Os povos e as comunidades indígenas [...] representam um caso paradigmático deste tipo de grupos. [...] Estamos chamados a apoiar estas comunidades em suas lutas, reconhecendo que temos muito que aprender de seus valores e sua coragem. A defesa e promoção dos direitos humanos e de uma ecologia integral constituem um horizonte ético que compartilhamos com muitas outras pessoas de boa vontade, que também buscam responder a este apelo”.[2]
Perspicaz, sensível, despojado, observador atento da pluridiversidade cultural, muitos são os adjetivos que poderiam ser atribuídos ao fascinante nonagenário. Mas, para fazer justiça às suas inúmeras contribuições e legados, uma característica em especial nunca é devidamente destacada: a fidelidade criativa e apaixonada com que cumpriu, e cumpre, a vontade de Deus em sua vida. Egydio se fez um incansável missionário da causa indígena e contra os poderes colonizadores.
Natural de Feliz, no Rio Grande do Sul, pertence a uma família de migrantes alemães, ligados ao cultivo da terra. Nascido em 7 de julho de 1935, o menino Egydio foi criado em um ambiente bastante religioso, tendo ido estudar com os jesuítas e, posteriormente, ingressado na Vida Religiosa Consagrada. Seu amor pelos Povos Indígenas, contudo, já não tinha raízes tão evidentes. Como destaca Gilson Camargo e Dominga Menezes, “a história que vem sendo contada e que aparece nos livros é a história do colonizador”[3], mantendo as comunidades originárias invisibilizadas:
“Desde os primeiros anos após o desembarque da primeira leva de imigrantes na Vila de São Leopoldo e à medida que a ocupação das colônias avançava em direção à Serra, a história da imigração está repleta de encontros sangrentos entre imigrantes e indígenas das etnias Kaingang e Guarani. Uma guerra desigual, em que a matança de indígenas parece não importar muito diante dos ideais da imigração. Não existe uma versão documentada do lado desses povos sobre esses episódios que, no seu conjunto, assumem uma proporção de genocídio”.[4]
Mesmo vivendo em ambientes pouco simpáticos aos indígenas, típicos da cultura a que estava inserido, o jovem Schwade trazia em si um instigante gérmen missionário. Se o jovem Bergoglio – e futuro Papa – sonhava em ir para o Japão quando era um estudante jesuíta, aquele que seria um dos futuros fundadores do Cimi desejava ir para a África. Tal qual Santo Inácio de Loyola, Egydio sempre foi alguém inquieto e que buscou o magis ao longo de toda a sua vida.
Por isso, quando estava no último ano de Filosofia (1962), em São Leopoldo, e recebeu a comunicação do provincial jesuíta de que iria estudar História, durante o período seguinte de formação, Egydio não se conformou. Isso o tornaria um professor, em um apostolado fixo e estável, afastando-o de missões mais inseridas e que exigissem maior mobilidade. A partir do conselho de seu orientador espiritual, escreveu àquele que fazia as vezes de Superior Geral da Companhia de Jesus, o Pe. Swain, SJ, que lhe confirmou no caminho missionário e lhe sugeriu que considerasse ir para a Missão Anchieta (MIA), trabalhar com os Povos Indígenas. Consolado, aceitou e foi para o Mato Grosso.
Não fosse a sua convicção interior aliada a uma corajosa teimosia, certamente nunca teria cruzado com aqueles que mudariam de forma radical a sua vida: os Povos Indígenas. Em razão de sua fidelidade ao Reino, Egydio viveu em profunda comunhão com os marginalizados deste mundo, nos exatos termos do decreto 1 da Congregação Geral 36:
“É vital sublinhar a constante importância que os Primeiros Companheiros davam à proximidade real com os pobres. Os pobres nos desafiam a voltar constantemente ao que é essencial no Evangelho, ao que realmente dá vida, e a reconhecer o que é meramente uma carga para nós. O Papa Francisco nos recorda que estamos chamados a encontrar a Cristo nos pobres, a emprestar-lhes nossa voz em suas causas, mas também a sermos seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus quer comunicar-nos através deles. Esta atitude vai contra a corrente do que é usual no mundo, no qual, como diz Qohelet, ‘a sabedoria do pobre é desprezada e suas palavras não são ouvidas’. Com os pobres podemos aprender o que significam esperança e coragem”.[5]
Certamente o indigenista é um homem de grande coragem, arraigado na rebelde Esperança, que só pode brotar de um coração generoso e fundado em uma provada fé. Para ser capaz de questionar e exercer uma crítica que desinstale é preciso compromisso e verdadeiro amor ao caminho de vida que se vive. Do contrário, o risco de se cair em uma obediência medíocre, desinteressada e apática é grande. Egydio optou pela paixão ardente e desestabilizadora do Evangelho da Vida.
Esses três anos (1963-1966) em que esteve na Prelazia de Diamantino, mais especificamente no internato de Utiariti, pôde se aproximar de uma realidade diversa e desafiadora. Ali tomou consciência da beleza e da força dos Povos Indígenas, na mesma medida em que conheceu de perto a crueldade da perseguição e toda sorte de crimes cometidos contra as comunidades originárias. Nessa época pôde presenciar o terrível Massacre do Paralelo 11, em que milhares de indígenas Cinta-Larga foram envenenados por arsênico pelos fazendeiros da região, com a conivência de funcionários públicos.
Atento às mudanças promovidas pelo Concílio Vaticano II, constatou com lucidez que o modelo de pastoral outrora desenvolvido entre os indígenas fracassara e precisava ser repensado com urgência e ousadia. Nesse sentido, para estar com as comunidades originárias de forma evangélica é imprescindível renunciar à arrogância das rígidas certezas:
“O cristão só será sinal universal da salvação e revelador do amor do Pai do Céu, em toda parte e, em particular, para os povos indígenas, se for uma presença respeitosa e paciente e esperançosa que possa perceber, assumir, viver e revelar os legítimos valores desses povos em que se exprime a milenar ação de Deus em sua vida. Eis o que seria uma prática correta da continuidade da encarnação de Cristo. [...] É preciso o despojamento da cultura para entender o indígena, nosso irmão”.[6]
De volta a São Leopoldo para realizar seus estudos teológicos, Egydio não descansou enquanto não partilhou seus sonhos e planos com outros companheiros jesuítas. Com entusiasmo, alguns vibraram com suas propostas e foi então que a amizade com outro grande indigenista se consolidaria, o futuro vice-presidente do Cimi Thomaz Aquino Lisboa – um parceiro para toda vida.
Não eram só as estruturas governamentais que não lidavam bem com as comunidades originárias, como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e as sanguinárias Forças Armadas. Mas também as estruturas eclesiais e religiosas não compreendiam toda a complexidade e a dramaticidade da situação. O jovem missionário encontrou dureza por parte das instâncias de governo, provincial e da própria Missão, mas não desistiu. Mais uma vez escreveu a Roma e novamente foi acolhido, agora por aquele que iria marcar a vida da Companhia de Jesus também pela sua profecia e sensibilidade aos empobrecidos, o Padre Pedro Arrupe, SJ.
Egydio pagou o preço pela fidelidade aos Povos Indígenas porque ousou imaginar novas estruturas e novos modos de proceder, contrariando vários interesses internos e externos. Trata-se das mesmas consequências pela radicalidade evangélica apontadas pelo Padre Arturo Sosa, atual Prepósito-Geral dos jesuítas:
“Quando assinou a famosa Carta do Rio sobre o apostolado social em 1978, o profeta Arrupe já advertiu o risco de que, ao nos colocarmos nesse caminho, íamos pagar um preço e perder o favor de alguns, inclusive de gente que até então tinha estado ligada à Companhia. Esse é o custo de ser fiéis ao chamado da nossa missão na Igreja. Houve pessoas que apoiavam muito generosamente as nossas obras e que deixaram de fazê-lo ao verem que defendíamos aspectos sociais ou meio ambientais. Há pessoas das elites econômicas que não compartilham com a análise que o Papa faz em Laudato Si´ e em Fratelli Tutti, e não querem que haja uma mudança nas estruturas de poder. Os mártires do trabalho social vêm precisamente dessa tensão”.[7]
O missionário indigenista foi incansável na batalha pela conversão de mentes e organismos. Graças a uma série de artigos com denúncias publicados por alguns jovens jesuítas, inclusive Egydio, desencadeou-se a Comissão Parlamentar de Inquérito e o Relatório Figueiredo que levariam à extinção do SPI e à criação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (1967). Dois anos depois (1969), apostando na potência dos jovens leigos, criaria a Operação Anchieta (OPAN), organização fundamental no apoio da causa indígena e do próprio Cimi.
De volta às realidades indígenas – com o fechamento do internato de Utiariti por Thomaz Lisboa – a inserção se intensifica e os apelos por novas estruturas e apoio crescem. Assim, em 1972, juntamente com outros religiosos e religiosas, bem como de alguns bispos, se criou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Menos de dois anos depois se criava o Secretariado Executivo e Egydio era nomeado seu primeiro responsável. Nessa mesma época se preparou e publicou o famoso relatório “Y-Juca-Pirama. O índio: aquele que deve morrer”, que também contou com a sua dedicada colaboração.
Se não teve sua vida ceifada pelo martírio, não era alheio às pressões, ameaças e graves riscos que corria. Acompanhou os assassinatos de companheiros como o Padre João Bosco Burnier (1976) e o Irmão Vicente Cañas (1987), além dos muitos abusos perpetrados contra as comunidades e lideranças indígenas. Um exemplo terrível foi a carnificina promovida pelos militares contra os Waimiri-Atroari, em plena ditadura civil-militar. Mais de 2.500 membros desse povo foram exterminados por uma política genocida das Forças Armadas. Enviado pelo Cimi, conviveu alguns anos na década de 1980 com esse povo massacrado, até ser expulso pelo arbítrio dos inimigos dos povos originários.
Egydio, um apaixonado pelo povo sofrido e amigo fiel dos indígenas, também se apaixonou pela sua esposa, Doroti Alice Müller Schwade (1948-2010), com quem se casou em 1978 e teve cinco filhos. Reconhecendo-se como padre casado, nunca deixou de se sentir companheiro de Jesus e continuou abnegadamente sua missão em meio aos excluídos desse mundo. Afinal, como já se escrevia há mais de 50 anos:
“Transmitir o Evangelho é instaurar um processo de revelação libertadora e, antes de tudo, vive-lo no seu dinamismo. Muitos apelos da presença e da ação do Senhor, sementes do Evangelho, há de receber o evangelizador que real e lealmente se encarne no mundo dos indígenas. Sentir e decifrar tais apelos será condição preliminar da missão. Juntamente com os indígenas, é preciso identificar, na vida deles, os rastros de um Deus solícito que percorre e orienta os caminhos de todos os Humanos, ontem como hoje, para a plenitude dos tempos que é Jesus Cristo, o Homem Novo, cuja ressureição radicaliza na história o pioneiro da transformação da humanidade”.[8]
Celebrar os 90 anos tão intensos e frutíferos de Egydio Schwade significa celebrar a vitória da resistência indígena, porque muitos acreditaram, trabalharam e colaboraram na construção da luta pela libertação das comunidades originárias. O que teria acontecido sem a teimosa rebeldia de tantas companheiras e companheiros que junto com Egydio insistiram, transformaram e criaram novos modos de estar e apoiar os povos do Bem Viver? Com seu jeito simples, apaixonado e visionário, Egydio encantou e continua inspirando gerações de indigenistas e militantes da causa indígena.
Obrigado querido companheiro e mestre pelos teus sins, mas também pela tua persistência que nos deixou o inestimável Cimi – casa e bandeira de tantos seguidores e seguidoras do Deus de Rosto Indígena. Egydio de tantas lutas e resistências, tua vida entre nós é pura graça e dom. Continue testemunhando com sua generosidade inigualável o seu amor pelos últimos, pela pluralidade das culturas, pela missão encarnada que liberta, pela autodeterminação dos povos!
Outrora apelidado carinhosamente de “Incendiário” pelo bispo-profeta Tomás Balduíno, sua vida-missão, Egydio, é um “fogo que acende outros fogos”. Você colocou-se à serviço, sem reservas nem pudores, dando-se todo inteiro. Diante da opressão jamais silenciou covardemente, mas gritou forte contra as injustiças cometidas em desfavor de seus amigos preferidos, os povos originários.
Como o Peregrino de Loyola você também peregrinou por aldeias, florestas, rios e montanhas para testemunhar que o Deus da Libertação veio trazer vida em abundância para as comunidades indígenas. Vida longa ao peregrino indigenista, fundador do Cimi, companheiro de Jesus e amigo dos Povos Indígenas! Que sejamos herdeiros e herdeiras da tua fidelidade criativa e do teu ardor missionário! Viva Egydio Schwade e os seus 90 anos de compromisso com o Bem Viver!
[1] Y-Juca-Pirama. O índio: aquele que deve morrer. In: PREZIA, Benedito (Org.). Caminhando na luta e na esperança: retrospectiva dos últimos 60 anos da pastoral indigenistas e dos 30 anos do CIMI. P. 144.
[2] Ibidem, nº 27, p. 48.
[3] CAMARGO, Gilson; MENEZES, Domingas. Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã. São Leopoldo: Carta Editora & Comunicação, 2024. p. 158.
[4] Ibidem, p. 27.
[5] Congregação Geral 36, Decreto 1, nº 15. São Paulo: Loyola, 20147. p. 42-43.
[6] Y-Juca-Pirama. O índio: aquele que deve morrer, op. cit., p. 143.
[7] SOSA, Arturo. A caminho com Inácio. São Paulo: Loyola, 2021. p. 175.
[8] Ibidem, p. 143-144.