01 Março 2025
Se Gilmar Mendes deixar que seu espírito de ruralista fale mais alto do que seus longos anos de constitucionalista, passará para a história como o Juiz-Algoz dos Povos Indígenas. Tingindo sua toga de sangue indígena inocente, será conhecido como aquele que vendeu 305 povos distintos por algumas toneladas de minério – o ministro-Minerador. Em alguns anos os Povos do Bem Viver se tornarão os povos amaldiçoados, escravos do capital neoextrativista e habitantes de necroterritórios completamente contaminados e sem vida.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Como reconhece Angohó Pataxó Hã-hã-hãe “o Brasil é um país semicolonial”, “nossa independência é uma farsa”. Para a liderança da comunidade NaôXohã, “somos uma república de mentira há 129 anos”. “Como se pode qualificar crimes tão horrendos em série e premeditados?”, indaga sobre os crimes das mineradoras em Mariana e em Brumadinho. “As barragens de rejeitos são bombas montadas e crimes premeditados”, insiste a indígena para afastar qualquer ilação sobre uma suposta “tragédia ambiental”, tão divulgada pela mídia. “Seu rompimento é um verdadeiro atentado terrorista contra nosso povo e nosso meio natural” [1], brada a liderança do povo Pataxó Hã-hã-hãe, vítima do devastador neoextrativismo.
No dia 14 de fevereiro, o Ministro Gilmar Mendes revelou sua estratégia para reescrever o capítulo VIII da Constituição Federal, que trata sobre os Povos Indígenas. O relator das ações diretas de inconstitucionalidade contra a Lei 14.701/23 – que uma semana após o Supremo derrubar o Marco Temporal, tratorou a decisão e reinstituiu o ardiloso artifício para retirar os direitos indígenas –, apresentou sua minuta de proposta legislativa, para ser discutida na Mesa de Conciliação. Dentre as tais previsões legais, está a liberação de mineração em Terras Indígenas!
Felipe Milanez ao tratar sobre o neoextrativismo depredatório, fundado no mito do progresso, fala na colonialidade da natureza. Uma relação de séculos de exploração e destruição do meio ambiente. Nesse sentido aponta Milanez:
“A extração de recursos naturais para exploração, quase sem ou com muito pouco processamento, foi alçada a fundamento do crescimento econômico e justificada como pilar da almejada distribuição de renda. Fazendo ecoar períodos anteriores na história político-econômica, em que a ideia de uma construção nacional se baseava em um ‘destino manifesto’ da dominação do Homem sobre a Natureza, o neodesenvolvimentismo também teve como pilar exacerbar a dicotomia entre sociedade e natureza, desprezando possibilidades alternativas de relação e interdependência. Essa orientação funcionou tal como a ‘regra da diferença colonial’ aplicada nas relações com a natureza, segundo a qual as proposições universais têm exceções nas colônias como uma fronteira moral, excluindo os sujeitos colonizados dos benefícios alcançados por esse projeto civilizatório. O que expõe, como mostra Hector Alimonda (2011, p. 22), ‘a persistente colonialidade que afeta a natureza latino-americana em condição de inferioridade e como recurso a ser explorado”.[2]
O Decano da Corte acolheu a sugestão do advogado do Partido Progressista (PP) na Mesa de “Imposição”, Luís Inácio Lucena Adams. Coincidentemente, trata-se do também representante da mineradora canadense Potássio do Brasil, interessada na exploração de potássio no território do Povo Mura, no Amazonas. Essas comunidades indígenas vêm sofrendo violento assédio e divisão interna de suas lideranças, em razão das imorais investidas da empresa estrangeira e dos políticos estaduais, ávidos por receberem suas comissões no lucrativo negócio.
A proteção dos indígenas afetados? Pouco importa. No caso em tela o real “interesse nacional” é extrair o minério para fazer fertilizantes. Afinal, o robusto mercado agrícola interno necessita cada vez mais de substanciais doses de agrotóxicos e adubos químicos para despejar no tão maltratado e extenuado solo pátrio. Porque o “agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo”. E se para manter o “tudo” for necessário sacrificar os direitos humanos de alguns milhares de indígenas, estas intercorrências devem ser contabilizadas como “parte dos negócios”.
Na reunião de 10 de fevereiro passado, o advogado justificou a extração de minério para as “atividades que tenham por objetivo garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Advogado-Geral da União (AGU) de 2009 a 2016, nos governos do PT, Adams atuou nos processos de licenciamento ambiental da desastrosa hidrelétrica de Belo “Monstro” (PA) e do acordo entre as mineradoras Vale e BHP e as vítimas do crime ambiental de Mariana.
No fundo o onipresente racismo encharca não só o ogro-negócio – aquela parcela de fazendeiros que se valem do trabalho escravo e atacam as comunidades indígenas –, mas também os funcionários públicos e os operadores do Direito. Ainda no Judiciário prevalece uma perspectiva bastante limitada e estereotipada da pluridiversidade dos povos originários. Nesta esteira denuncia Iara Bonin:
“O racismo, mobilizado a partir de uma racionalidade iluminista ávida por classificações, solidificou as noções de superioridade e inferioridade da raça, operando-as sob o pretexto de regenerar a espécie para torná-la supostamente forte, produtiva e ajustada. Conforme argumenta Foucault (1999, p. 304), ‘quase não há funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo’”.[3]
Talvez o Ex-Advogado-Geral da União pudesse responder quanto desenvolvimento a mina Onça-Puma trouxe às comunidades da Terra Indígena Xikrin do Cateté, no Pará? Recentemente, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação contra a mineradora Vale e os governos estadual e federal pela contaminação dos rios Cateté e Itacaiúnas, com perigosos metais pesados. De acordo com os exames médicos realizados pela Universidade Federal do Pará (UFPA), foram constatadas a presença de chumbo, mercúrio, bário, lítio e manganês nos organismos dos indígenas.
Segundo o procurador da república Rafael Martins da Silva se está diante de uma crise humanitária comparada àquela enfrentada pelo Povo Yanomami. E aqui, nem se está diante de uma mega invasão garimpeira, como aconteceu na Terra Indígena Yanomami. Ou seja, absolutamente ilegal e não fiscalizada pelo poder público. Nesta situação, o Povo Xikrin está sofrendo as terríveis consequências da mineração legal, regulamentada e autorizada pelo Estado, promovida por uma das maiores mineradoras do mundo.
Assim como no caso da exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas (AP), as justificativas são perversamente ilusórias. Desenvolvimento para quem, doutor advogado? Não para os Povos Indígenas ou as comunidades tradicionais! Assim alerta Milanez:
“O imperativo do extrativismo e do avanço do capital ganhou, portanto, tal como indica a oitava tese de Gudynas (2009) sobre o neoextrativismo, uma narrativa social em busca de legitimação. Extrair, exportar e crescer se tornou a única possibilidade de se ter investimento em infraestruturas básicas como água e esgoto, educação, saúde e segurança”.[4]
Como se vê, valendo-se de estratégias cruéis, as autoridades públicas transferem as responsabilidades do Estado para a iniciativa privada, condicionando a melhora no atendimento da população local no que se refere à saúde, educação e moradia à aprovação das iniciativas econômicas que colocam a vida da população em risco. E o pior é que as lideranças e as comunidades que resistem ao pseudodesenvolvimento são estigmatizadas como os impedimentos para o “crescimento do país” e as “representantes do atraso”.
Essa tacanha visão político-econômica não perpassa apenas a direita inescrupulosa, como se constatou, com revolta, nos anos do desgoverno bolsonarista. Inúmeras Terras Indígenas foram invadidas por garimpeiros e madeireiros, lideranças indígenas perderam suas vidas defendendo suas comunidades e territórios. O crime organizado se alastrou e se fortaleceu na Amazônia. Mas, surpreendente e infelizmente, uma parte considerável da esquerda continua acreditando nessa balela desenvolvimentista e segue seduzida pelo “canto da sereia”.
Muitos militantes saíram em defesa da exploração de petróleo na Amazônica, fundado em um ufanismo ultrapassado e alegando um suposto perigo de invasão estrangeira, caso o país não o fizesse. Ou seja, o mal inevitável. De outro modo, pouco importam os Direitos Humanos e o Direito da Natureza de milhares de brasileiros. Quer dizer, “diferentemente da direita fascista somos amigos dos indígenas, mas respeitar o direito à consulta prévia e a integridade de suas terras ancestrais têm limite”. Qual é? A alegada “produção de riquezas nacionais”, ou a primazia do velho deus-dinheiro e a nem tão assim combatida força do capital.
Nada pode ser obstáculo ao imparável “progresso do capital”! Por isso, a proposta do Ministro Gilmar Mendes de escancarar as Terras Indígenas para a mineração significa dizer que os territórios indígenas estão à venda e suas vidas são disponíveis, ou melhor, descartáveis. Milanez desenvolve no trecho abaixo:
“Esta é a percepção teórica aportada por Elmar Altvater (1989): a aceleração da circulação faz com que o capital remova os obstáculos. (...) Tempo e espaço são construções sociais, assim como lugar, que é condicionado de forma a comprimir o tempo. Essa compressão provocada pela expansão do capital reduz o intervalo de tempo de rotação do capital, submetendo a quantidade e a qualidade do espaço ao princípio da aceleração a serviço do crescimento. Nessa lógica econômica-ecológica da compressão do tempo-espaço descrita por Altvater (1989), o tempo é apenas um impedimento, e o processo de circulação do capital destrói os obstáculos ao crescimento. Nesse sentido, o processo de compressão do espaço pelo tempo não ocorre sem ocasionar conflitos e provocar resistências de grupos sociais, devido às consequências negativas para as condições de vida e de trabalho das populações atingidas pelo crescimento”.[5]
Alguns vão dizer que esta argumentação é exagerada ou até “terrorista”. Ora, o que se defende é “explorar com responsabilidade”. Caso contrário, o próximo governo – talvez da direita raivosa – o fará de forma pior. É preciso deixar de lado toda e qualquer perspectiva romanceada. Não existe mineração ecológica ou sustentável! Logo, atingir as terras ancestrais, rasgando-as com as crateras para extrair o minério e contaminando-as com os rejeitos tóxicos, é o mesmo que exterminar os povos que nelas vivem desde os tempos imemoriais. Os impactos serão avassaladores!
Cabe a qualquer Estado Democrático de Direito estabelecer os limites ao poder, especialmente, no tocante aos direitos básicos das minorias, para que estejam devidamente assegurados. Por isso, essa ideologia do desenvolvimento econômico não está acima da Constituição da República. Alberto Acosta e Enrique Viale reforçam que inexiste crescimento infinito:
“Kenneth Boulding, um economista que via a Terra como uma nave espacial, também em sintonia com Georgescu-Roegen, é responsável por exclamar que “qualquer pessoa que acredite que o crescimento exponencial pode durar para sempre num mundo finito é um louco ou um economista”. Uma afirmação que carrega uma grande verdade: nenhuma economia pode crescer permanentemente violando os limites biofísicos e muito menos violando a vida dos seres humanos”.[6]
Mas por que os indígenas não devem ser considerados como os demais casos previstos em legislação ordinária? Quer dizer que são melhores do que os outros? Não, são simplesmente diferentes. Um dos princípios basilares do Direito estatui: “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua diferença”. Esta é uma máxima que vem da filosofia desde a Grécia Antiga e remonta a Aristóteles.
Se alguém entende a importância e defende as políticas afirmativas, como as cotas para a população negra, por exemplo, certamente não terá dificuldade de compreender a especificidade dos povos originários. Ademais, o território indígena não é mais um pedaço de terra, como uma mercadoria qualquer. Ou seja, a comunidade indígena não se relaciona com a terra, como se fosse uma fazenda passível de ser negociada. Isto é tão difícil de ser aceito pelos não indígenas!
Além da relação com o território ser existencial, existe, ainda, uma dignidade própria da terra. E esta, deve-se frisar mais uma vez, não pode ser monetizada. Nesse sentido explica Isaque Guarani Kaiowá sobre a sabedoria ancestral de seu povo:
“A filosofia e a ciência indígenas, ao contrário do que muitos pensam, não são pensamentos fantasiosos nem apenas empíricos. A ciência ocidental tem muitas vezes uma interpretação oposta à ciência indígena, deslegitimando-a. A palavra ‘mito’ nem sequer existe na língua Kaiowá; para nós, esses são conhecimentos que se originam das narrativas do tempo-espaço da origem e, por isso, são nossa filosofia e não podem ser reduzidos a um pensamento imaginário. Felizmente, há estudos que tomam como ponto de partida os conhecimentos milenares dos povos indígenas e que mostram que interagimos de forma recíproca com a diversidade de seres, construindo harmonia e convivência de maneira conjunta”.[7]
E conforme o caput do art. 231 do Texto Constitucional, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Trata-se aqui de um direito fundamental e este como cláusula pétrea não pode ser alterado, nem mesmo relativizado seja pelo Congresso, seja pelo próprio Supremo. Diante disso, o que pretende o constitucionalista Gilmar Mendes com sua proposta inconstitucional? Pretende desprezar as cosmovisões indígenas e enfraquecer seu direito à autodeterminação?
O que é o desenvolvimento? Destruir o território sagrado: com o desmatamento da área minerada; a retirada de milhares de toneladas de minérios e as imensas crateras deixadas para trás; a criação de estrutura rodoviária, ferroviária ou até portuária necessária para o escoamento da produção; a atração desordenada de um contingente populacional de fora da região, com mais pressão sobre o meio ambiente; o risco de contaminação dos rios e lençóis freáticos; a possibilidade de acidentes como o de Brumadinho e de Mariana etc.? É este padrão civilizacional que está prestes a fazer o planeta colapsar que se quer impor aos Povos Indígenas?
Pretende-se tirar as comunidades indígenas da “pobreza” da floresta e dos rios para estoca-las nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos? Depois de todos esses séculos de colonização, como é possível manter esse discurso etnocêntrico e racista de superioridade sobre os modos de vida tradicionais dos povos originários? Tudo está autorizado em nome da riqueza do 1% mais rico da humanidade?
O Papa Francisco diz claramente que não e em sua encíclica Laudato Si recorda sobre os custos desse sistema econômico selvagem e incivilizado:
“O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se possa obter. No caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental”.[8]
O pontífice vem defendendo com firmeza que se deve combater a idolatria do mercado que promove a globalização da indiferença. A cultura do descarte e a primazia da tecnocracia precisam dar lugar para a revolução da amizade social e o paradigma ecocêntrico. Da dominação prepotente do ser humano que se acha a medida de todas as coisas, deve-se passar a contemplação da beleza da Natureza e das culturas ancestrais.
Enquanto uma maioria razoável da sociedade não se convencer de que esse modelo econômico falhou, os políticos, os juízes e os empresários continuarão se articulando para a maximização dos lucros, em detrimento da dignidade humana e da Natureza. “Nosso sonho é recuperar esta terra”, confidenciam Isael e Sueli Maxakali. Pois “a terra é viva, ela fala, nos olha e grita, porque ela precisa ser curada, precisa de tratamento”. “Mas os fazendeiros não escutam a terra gritando, seus pedidos de socorro”[9], apontam os indígenas.
É preciso apostar naquilo que Acosta e Viale chamam de “pluriverso – um mundo onde caibam outros mundos – segundo a fórmula zapatista”[10].
“Uma nova civilização não surgirá por geração espontânea nem será o resultado da gestão de um grupo de seres iluminados. É uma construção e reconstrução paciente e determinada, especialmente a partir das esferas comunitárias, que desmantelará vários fetiches, a começar pelos do dinheiro, do lucro e do crescimento econômico, entre outros assumidos como verdades indiscutíveis. Só assim poderão ser provocadas mudanças radicais, que surgirão especialmente das experiências existentes. Não há lugar para “vanguardas” que assumem lideranças privilegiadas. Nem é uma tarefa que possa ser resolvida exclusivamente no espaço nacional ou local. A conclusão é óbvia: a ação passa por todas as áreas estratégicas possíveis, sem descurar o nível regional e global. Para a América Latina, é cada vez mais urgente um regionalismo autônomo expresso em formas inovadoras de integração, que deve ser pensado de forma contra-hegemônica, multidimensional, solidária e egocêntrica, e não simplesmente centrado no mercado mundial”.[11]
Como se não bastasse, existem muitos outros retrocessos na proposta do relator. Apenas para citar um, o anteprojeto de Mendes estabelece a previsão de remoção das comunidades originárias para outras terras. Esta decisão caberá ao Ministério da Justiça quando houver a “impossibilidade de demarcação” e com o fim de se buscar a “paz social”. Paz social para quem? Para os latifundiários e coronéis que controlam os interiores do país? Este dispositivo apenas aprofundará o poder do lado mais forte – o ogro-negócio fascista – e intensificará o extermínio dos Povos Indígenas, como os Guarani Kaiowá e os Avá-Guarani.
Essa absurda Mesa de “Imposição” já foi longe demais. Ela jamais deveria ter sido instalada sem antes suspender a inconstitucional Lei 14.701/23, o que até o momento não ocorreu. Com a saída do movimento indígena representado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a negociação deveria ter sido imediatamente encerrada. Como conciliar, se uma das partes está ausente? Uma ausência legítima, deve-se frisar. Afinal, como negociar sob ameaça e em disparidade de condições? As organizações indígenas sabiam que a correlação de forças lhes era desfavorável e que no final perderiam.
Hayò, o cacique Pataxó Hã-hã-hãe de Brumadinho desabafou: “parecia algo cíclico, que tinha sempre uma tendência a se repetir na história”. “Assim como seus antepassados tiveram seus rios e matas explorados pelos portugueses, sentia que o mesmo estava sendo feito ali naquele momento na sua região”.[12] Os Povos Indígenas não querem mais esta ameaça ao seu território, a destruição da mineração.
Diante disso, o que pretende o constitucionalista Gilmar Mendes com sua proposta inconstitucional? Pretende desprezar as cosmovisões indígenas e enfraquecer seu direito à autodeterminação?
Se Gilmar Mendes deixar que seu espírito de ruralista fale mais alto do que seus longos anos de constitucionalista, passará para a história como o Juiz-Algoz dos Povos Indígenas. Tingindo sua toga de sangue indígena inocente, será conhecido como aquele que vendeu 305 povos distintos por algumas toneladas de minério – o ministro-Minerador. Em alguns anos os Povos do Bem Viver se tornarão os povos amaldiçoados, escravos do capital neoextrativista e habitantes de necroterritórios completamente contaminados e sem vida.
Mais uma vez, se exige do governo federal firmeza no seu posicionamento. Depois de colaborar desastrosamente com o engodo da Mesa de “Imposição”, nomeando alguns indígenas para substituir a APIB e dar um ar de legitimidade ao processo, a Ministra dos Povos Indígenas parece ter despertado de sua letargia profunda. Após a anti-proposta pró-mineração, finalmente, Sônia Guajajara veio a público se posicionar contrária ao absurdo. Mas isso já não parece suficiente.
Neste interregno em que as reuniões foram suspensas para análise dos membros da comissão, se mobilizará efetivamente o governo Lula pelos Povos Indígenas? Ou cederá mais uma vez ao interesse dos ruralistas e das mineradoras? Porque pelo que se tem visto, os ministros de Minas e Energia e da Agricultura parecem ter mais prestígio junto ao presidente do que as ministras do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Cumprirá Lula sua promessa de campanha aos povos originários de que seria diferente de Bolsonaro ou não conseguirá ir além de meros atos performáticos?
As perguntas brotam desconcertantemente. Depois de anos de perigosos ataques ao Estado Democrático de Direito, romper-se-á a Constituição Federal em nome da ganância sem fim daqueles que só veem cifras ao olharem para os territórios indígenas? Ou já é tempo de se fazer cumprir os deveres constitucionais da sociedade brasileira, que cansada do autoritarismo acolheu a diversidade em seu seio, na Constituinte de 1987/1988? E, assim, com os Maxakali dizer sem medo: “nós queremos reflorestar esta terra e fazer dela a Aldeia-Escola-Floresta” [13] de um Brasil plural, em que a vida vale mais do que um punhado de minério.
[1] GOULART, Júlia Castello. Memórias de Brumadinho: Vidas que não se apagam. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 67.
[2] MILANEZ, Felipe. Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia. São Paulo: Elefante, 2024. p. 140.
[3] BONIN, Iara Tatiana. Racismo de Estado: o indígena, aquele que deve morrer. p. 31. In: Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil-Dados de 2023. Conselho Indigenista Missionário. 21 ed. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2024.
[4] MILANEZ, Felipe. Op. cit., p. 145.
[5] MILANEZ, Felipe. Op. cit., p. 146-147.
[6] ACOSTA, Alberto; VIALE, Enrique. La naturaleza sí tiene derechos: aunque algunos no lo crean. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2024. p. 182.
[7] JOÃO, Izaque. Língua vegetal Guarani. In: CARNEVALLi, Felipe; REGALDO, Fernanda; LOBATO, Paula; MARQUEZ, Renata e CANÇADO, Wellington (org.). Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023. p. 114-115.
[8] FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si. nº 36.
[9] MAXAKALI, Isael e MAXAKALI, Sueli. Aldeia-Escola-Floresta. In: CARNEVALLi, Felipe; (org.) et al. Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023. p. 315.
[10] ACOSTA, Alberto; VIALE, Enrique. op. cit., p. 185.
[11] Ibidem.
[12] GOULART, Júlia Castello. Op. cit., p. 65.
[13] MAXAKALI, Isael e MAXAKALI, Sueli. Aldeia-Escola-Floresta. In: CARNEVALLi, Felipe; (org.) et al. Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023. p. 315.