26 Novembro 2024
Enquanto os eventos climáticos extremos impactam com dura crueza o modo de vida das populações mais empobrecidas, como se constata com a forte estiagem na Amazônia e no Pantanal, o camaleônico e hipócrita capitalismo exploratório trata de se adaptar, com mudanças superficiais, para permanecer o mesmo e velho de sempre. Utilizando-se de um verniz verde ilusório, investe em um discurso mais moderno e palatável para convencer os governos das preocupações socioambientais – inexistentes, por óbvio – dos argutos donos do capital.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos-IHU. Originalmente publicado em espanhol, na Revista Accíon, na edição de novembro.
“Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede”, “(...) carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças”, já recordava o Cacique Seattle. “Se lhe vendermos a terra”, alertava preocupado, “vocês devem lembrar e ensinar seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também”. “E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão”[1], arrematava há mais de cento e cinquenta anos o sábio indígena. Todavia, não lhe escutaram e a destruição trazida pelo capitalismo parece ter triunfado, transformando os Estados Unidos no maior e mais mortífero centro econômico do planeta. A Amazônia, uma das últimas fronteiras preservadas do mundo, encontra-se a um passo do seu ponto de não retorno.
Enfrentando uma das piores crises da história, o território brasileiro vive uma severa seca somada às intensas queimadas, na sua grande maioria criminosas, com preocupantes impactos econômicos, ecológicos e sérias consequências para a saúde de milhões de pessoas. Os níveis dos caudalosos rios amazônicos atingiram as mínimas históricas, tornando-se inavegáveis e deixando milhares de ribeirinhos e indígenas completamente isolados. Considerando que se trata do principal modo de deslocamento da região, a situação desenhada possui tons caóticos.
Por séculos a Amazônia foi vista como um depósito inesgotável de recursos naturais, utilitariamente monetizados e transformados em meras fontes de enriquecimento de uma antiga, reduzida e mesquinha elite nacional e, cada vez mais, transnacional. Como no resto do continente latino-americano, a riqueza e o poder político sempre estiveram concentrados nas mãos dos mesmos e poucos exploradores, donos do capital extrativista. Nesse sentido ensina a filósofa Nancy Fraser, delineando os contornos da crise socioambiental há muito instalada:
“Ao contrário das alegações de terra nullius, as parcelas de natureza que o capital apropria são quase sempre as condições de vida de algum grupo humano: seu habitat e espaço de interação social carregado de sentido; seus meios de vida e a base material de sua reprodução social. Além disso, os grupos humanos na mira do capital são quase sempre aqueles que foram privados do poder de se defender e muitas vezes aqueles relegados ao lado errado da linha de cor global. Esse aspecto foi evidenciado inúmeras vezes ao longo da sequência de regimes e mostra, por um lado, que as questões ecológicas não podem ser separadas das questões de poder político e, por outro, daquelas que se referem a opressão racial, dominação imperial e despossessão e genocídio indígena”.[2]
Historicamente cortada por faraônicos projetos governamentais de infraestrutura, a região sofreu a violência cruel da aliança entre os militares e os empresários que sustentaram o arbítrio por mais de vinte anos, durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Dentre os inúmeros povos indígenas perseguidos e afetados pela cobiça do capital pode-se destacar os Waimiri-Atroari e os Yanomami, que sofreram os impactos devastadores do impiedoso “desenvolvimento nacional”. Os exemplos dos crimes bárbaros perpetrados contra esses dois povos demonstram os projetos de morte que exterminaram e continuam ameaçando gravemente as comunidades originárias.
Os primeiros tiveram seu território cortado pela BR-174, rodovia que conectou as capitais Manaus (AM) e Boa Vista (RR), além da construção da hidrelétrica de Balbina e a instalação de mineradoras. Na época, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) calculou a existência de cerca de 3.000 indígenas, reduzidos a apenas 350 após o genocídio. Como se não bastasse, os Waimiri-Atroari continuaram sendo assediados para que concordassem com a implantação de uma linha de transmissão de energia em suas terras, conhecida como Linhão de Tucuruí. Depois de anos de resistência, terminaram cedendo ao governo.
Na mesma década de 1970, os Yanomami também foram vítimas de uma megalomaníaca estrada projetada pelos militares, a mortífera Perimetral Norte. Ao rasgar seu território, a via da morte trouxe consigo doenças e hordas crescentes de garimpeiros em busca de ouro. A partir de então, as comunidades locais nunca mais tiveram paz. Assim como seus parentes acima citados, os invasores continuam levando destruição, contaminação e toda sorte de abusos para suas terras ancestrais.
Conforme a estudiosa Fraser, não se pode desconsiderar a perigosa face antidemocrática do capitalismo, que em nome do lucro não mede esforços para conseguir seu objetivo:
“Delegando amplos aspectos da vida social ao domínio do ‘mercado’ (na verdade, de grandes corporações), tal separação declara que esses aspectos estão fora dos limites da tomada de decisões democráticas, da ação coletiva e do controle público. O arranjo nos priva da capacidade de decidir coletivamente o que e quanto queremos produzir, com qual base energética e por meio de quais tipos de relações sociais. Também nos priva da capacidade de determinar como queremos utilizar o excedente social que produzimos coletivamente; como queremos nos relacionar com a natureza e as futuras gerações; como queremos organizar o trabalho da reprodução social e sua relação com aquela da produção. Assim, graças a sua estrutura inerente, o capitalismo é fundamentalmente antidemocrático. Mesmo no melhor dos casos, a democracia em uma sociedade capitalista deve ser forçosamente fraca e limitada”.[3]
Ora, após um governo (2019-2022) declaradamente anti-ecológico, com rasgos autoritários e que desrespeitava frontalmente os direitos indígenas, ainda que tenha havido avanços importantes nesses quase dois anos, a Amazônia e seus povos, principalmente, as comunidades originárias e as ribeirinhas, continuam em situação de extrema vulnerabilidade. Dentre as principais ameaças estão o garimpo ilegal, a pesca e a caça predatórias, o desmatamento, o tráfico de drogas e de pessoas controlado pelo crime organizado e o avanço tresloucado da fronteira agropecuária.
Os primeiros governos populares do Partido dos Trabalhadores (PT) já haviam promovido projetos com altos e inaceitáveis custos socioambientais, sendo o mais terrível deles a monstruosa hidrelétrica de Belo Monte, no estado do Pará. Entretanto, o presidente Lula, durante a campanha eleitoral de 2022, prometeu que dessa vez teria um outro olhar sobre a Amazônia e que iria lidar com o grande passível histórico para com os povos indígenas ao demarcar todos os seus territórios tradicionais.
Tristemente, o governo federal vem insistindo na pressão para liberar a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Além de contrariar o seu discurso de transição energética, tal fato põe em risco o equilíbrio ecológico de um rico e frágil ecossistema de relevância ímpar. Por outro lado, as tão aguardadas demarcações de terras indígenas têm acontecido em um ritmo decepcionante, com muito pouco a se comemorar.
Mesmo com uma das maiores e mais respeitadas ambientalistas à frente do Ministério do Meio Ambiente e com a criação de um inédito Ministério dos Povos Indígenas comandado por uma mulher indígena, a sensação de que a proteção ecológica e dos direitos humanos dessas comunidades não é prioridade cresce a cada dia. Diante de um Congresso conservador, a atual administração federal prefere negociar e ceder em pontos intoleráveis. Falta vontade política e empenho pessoal do próprio mandatário presidencial para encampar as pautas ambientais e indígenas constantemente atacadas por todos os lados.
Especialistas insistem que seria necessário um robusto incremento orçamentário, bem como a contratação de mais alguns milhares de servidores públicos, para reforçar os enfraquecidos órgãos ambientais e de atendimento aos povos originários. As reposições autorizadas até o momento pelo governo são insuficientes para alterar o quadro de deterioração da capacidade fiscalizatória do Estado, agravado nos últimos anos. Como justificativa estão os intermináveis ajustes fiscais impostos pelo mercado e o sistema neoliberal, que invariavelmente marginalizam os mais vulneráveis. Nessa esteira corrobora Clara Mattei ao apontar os nefastos efeitos da sempre seletiva austeridade fiscal:
“Sob o pretexto de reduzir a inflação e equilibrar o orçamento – temas de debate que continuam sendo os pilares da retórica especializada hoje –, os economistas trabalharam, antes e agora, a serviço de um objetivo mais essencial: a subordinação da maioria a uma ordem econômica vigente. Em outras palavras, quando os economistas vendem austeridade como meio de ‘consertar a economia’, seu objetivo é algo mais insidioso. (...) Longe de ser irracional, a austeridade foi uma arguta contraofensiva que protegeu o capitalismo e suas relações de produção contra as incursões da democracia. Sem dúvida, a austeridade foi bem-sucedida em enfraquecer a maioria”.[4]
Enquanto os eventos climáticos extremos impactam com dura crueza o modo de vida das populações mais empobrecidas, como se constata com a forte estiagem na Amazônia e no Pantanal, o camaleônico e hipócrita capitalismo exploratório trata de se adaptar, com mudanças superficiais, para permanecer o mesmo e velho de sempre. Utilizando-se de um verniz verde ilusório, investe em um discurso mais moderno e palatável para convencer os governos das preocupações socioambientais – inexistentes, por óbvio – dos argutos donos do capital.
Todavia, em que pese o difícil cenário que se desenrola no horizonte brasileiro, a resistência acontece por meio dos movimentos sociais e das comunidades afetadas. E as vozes insistentes que clamam com profecia e desobediência, quase sempre pertencem às mulheres. Quando outros capitulam vencidos pela sedução do dinheiro ou caem pela violência das armas, elas permanecem vigilantes na luta. Pelo futuro da floresta e de seus filhos, se levantam rebeldemente desafiadoras.
As quebradeiras de coco babaçu e as seringueiras na defesa da floresta em pé, as líderes indígenas e quilombolas na exigência do reconhecimento de seus territórios ancestrais, as mães e avós agricultoras na oposição ao latifúndio monocultor. As artesãs comunitárias na batalha pela economia solidária, as parteiras e as curandeiras na preservação dos conhecimentos tradicionais. Seja aonde for, elas estão lá: altivas, sábias, incansáveis. Desde os tempos da Colônia lá estavam as matriarcas de Abya Yala, como recorda Silvia Federici:
“De fato, graças, em grande medida, à resistência das mulheres, as antigas crenças puderam ser preservadas. (...) Segundo a obra de Antonio García de León, Resistencia y utopia (1985), as mulheres ‘dirigiram ou guiaram todas as grandes revoltas anticoloniais’ (De León, 1985, p. 31) ocorridas na região a partir da Conquista”.[5]
Essas mulheres nunca esqueceram a velha advertência do Cacique Seattle, de “que o homem branco não compreende nossos costumes”. Afinal, “uma porção da terra para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo que necessita”. Tecedoras de fraternidade insubmissa ao patriarcado do capital aprenderam que “a terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue o seu caminho”. Absolutamente insensível e estéril.
Viram que o inimigo da floresta “deixa para traz os túmulos de seus antepassados e não se incomoda”, “rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa”.[6] Ainda assim elas se colocam contra a devastação de sua Mãe Terra, a casa de seus pais e o alimento de seus filhos. Com seus corpos também violentados, não se poupam e vão até o fim. O fim de um sistema. O colapso da tecnocrática Era do Capitaloceno se aproxima. Às filhas da Amazônia ressequida só cabe a poderosa insurgência desestabilizadora. Por isso, com a grandeza que só os simples possuem, elas erguem as últimas trincheiras do Bem Viver.
[1] SEATTLE, Cacique. Carta do Cacique Seattle ao Presidente dos EUA. In: BARRETO, Vicente de Paulo; BRAGATO, Fernanda Frizzo; LEMOS, Walter Gustavo. Das tradições ortodoxas e heterodoxas nos direitos humanos: uma antologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 316.
[2] FRASER, Nancy. Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso. São Paulo: Autonomia Literária, 2024, p. 165.
[3] Idem, p. 182.
[4] MATTEI, Clara. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 398/399.
[5] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2023, p. 412.
[6] SEATTLE, Cacique. Carta do Cacique Seattle ao Presidente dos EUA. In: BARRETO, Vicente de Paulo; BRAGATO, Fernanda Frizzo; LEMOS, Walter Gustavo. Das tradições ortodoxas e heterodoxas nos direitos humanos: uma antologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 316.
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Os rios secam e a floresta queima: a Amazônia e seus povos à beira da exaustão. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU