07 Fevereiro 2024
"Lamentavelmente Wome morreu sem ter esta resposta. Mas permanecem as suas denúncias, em desenhos, escritos e falas, contra o genocídio sofrido por seu povo, sob o Comando Militar da Amazônia, da FUNAI, da Eletronorte e da Paranapanema", escreve Egydio Schwade, membro-fundador do Conselho Indigenista Missionário — Cimi, em artigo publicado por Blog Casa da Cultura do Urubuí, 29-01-2024.
No dia 19-01-24 recebi a triste noticia da morte de Wome Viana, líder do povo Kiña ou Waimiri-Atroari que viveu o período mais doloroso que este povo passou: o genocídio sofrido durante a construção da BR-174, Manaus-Boa Vista e a ocupação ou colonização de grande parte do seu território que reduziu o seu povo de 3.000 para 332 sobreviventes.
Sem saber o por que de toda a violência sofrida, o povo Kiña se pergunta até hoje: Apiyeme? Apiyemiyekî? Por que? Por que Kamña=civilizado matou Kiña=a nossa gente? Pergunta que repetiam de viva voz, por escrito e em seus desenhos, durante o processo de alfabetização que coordenamos na aldeia Yawara, no final da Ditadura Militar. E foi nos desenhos e falas de Wome que este tema mais apareceu.
Ainda menino, durante o período de ocupação armada pela FUNAI-Exército, Wome foi desviado do seu povo por funcionários da FUNAI e durante longo período obrigado a conviver no regime destes funcionários em Manaus. Sem oportunidade de contato e convívio normal com a sociedade que lhe pudesse abrir o horizonte sobre outras visões e talvez até esclarece-lo sobre o genocídio sofrido e demonstrar solidariedade para com o seu povo.
Já bem integrado ao esquema e doutrinado, inclusive, para esquecer e até condenar os atos de resistência dos seus pais contra a BR-174, os funcionários o devolveram a seu povo. Certamente com muita confusão na cabeça. E o apresentaram como “tuxaua geral” do povo Waimiri-Atroari. Autoridade desconhecida do seu povo. Mais uma manobra para pressioná-lo a assumir a posição do Exército-FUNAI e das empresas invasoras, Paranapanema e Eletronorte, para colaborar na ocultação do genocídio e manter afastadas as pessoas “indesejáveis” ao Regime e que lhes pudessem abrir os olhos sobre os crimes acontecidos.
Foi esta a situação que Wome viveu durante boa parte do Regime Militar. Ao final do qual um dirigente da FUNAI de horizontes abertos, Ezequias Heringer – o Xará – organizou um Grupo de Trabalho-GT para mudar os rumos da política indigenista da FUNAI na área. Convocou conhecidos lutadores da causa indígena, especialistas, advogado e integrantes da OPAN-CIMI que já atuavam na causa, afim de que com o auxílio das lideranças Waimiri-Atroari, construíssem um novo tipo de presença junto a esse povo. Wome foi um dos integrantes Kiña no GT.
Foi o primeiro ano da Nova República. Infelizmente os indigenistas do GT pertenciam a duas linhas políticas diferentes. A primeira formada por remanescentes do Regime Militar, como o ex-coordenador da COAMA, órgão que fornecia as armas aos funcionários da FUNAI na área e o Superintendente da FUNAI no Amazonas, aquele que ao ser nomeado coordenador do NAWA-Núcleo de Apoio Waimiri-Atroari, afirmou em entrevista ao jornal O Globo de 05-01-75 que usaria a violência contra os rebeldes Waimiri-Atroari: metralhadora, granadas e deportação de líderes renitentes. A 2ª linha era formada por antropólogos de universidades e indigenistas de conhecidas entidades pró-indio e conhecedores da situação. Doroti e eu, então com 3 crianças pequenas, integramos o GT. Creio que foi pela primeira vez que os Kiña sentiram uma presença assim. Uma sociedade diferente pertinho deles, viajando de aldeia em aldeia e conversando de igual para igual, sobre os seus problemas. Ate então eram só machos do Exército e da FUNAI, julgando-se “gente superior”.
A reunião para definir os novos rumos da programação foi realizada na aldeia de Wome, Yawará. E Wome foi quem colocou a primeira proposta: queremos aprender a ler e escrever. Sua aldeia já possuía escola há dois anos, sem um sinal de efetivação de um programa de aulas.
Como pessoas já experientes na área, Doroti e eu, nos oferecemos para enfrentar a tarefa. E fomos aceitos com alegria. E no mês seguinte, dia 4 de setembro de 1985, iniciamos o processo no método Paulo Freire.
Mas, como o poder foi mantido sob o comando dos filhotes da Ditadura, não demorou e os indigenistas que não pertenciam à velha guarda, começaram a ser pressionados. O 1º Presidente da FUNAI da Nova República que autorizou a criação do GT foi afastado por Sarney. E em seu lugar colocou Romero Jucá, um inimigo da causa indígena que à revelia da lei, entregou a política junto aos Waimiri-Atroari à empresa Eletronorte. Esta criou o Programa Waimiri-Atroari-PWA e colocou seu comando, de forma vitalícia, a um conhecido filhote da Ditadura.
Jucá e seus assessores procuraram logo motivos para nos expulsarem. Já nos primeiros meses de sua gestão, designou um linguista da FUNAI, para fiscalizar o nosso trabalho. Este acompanhou durante um mês as aulas e acabou fazendo um relatório que com certeza, não agradou a Jucá. Entre suas observações e recomendações se lê o seguinte:
“A disposição (dos Waimiri-Atroari) é a mesma tanto para caçar, pescar, trabalhar no roçado como para estudar. Percebe-se que há uma satisfação com a escola, sobretudo porque estão percebendo os primeiros frutos desse empreendimento: já leem palavras e frases; já escrevem palavras e frases novas. Esse processo educacional que foi introduzido e que está sendo implantado pelo casal Doroti e Egídio Schwade não poderá sofrer solução de continuidade dado que os resultados até agora obtidos são alentadores e promissores. (...) A experiência que está sendo levada avante no PV Terraplanagem deverá ser estendida aos outros grupos Atroaris (Xeri, Baixo e Alto Alalaú) e Waimiris se possível sob orientação dos professores da escola Yauará, porque são pessoas comprometidas vitalmente com a causa desse povo. Cumpre-me enfatizar que não percebi qualquer forma de proselitismo religioso ou interferência cultural por parte dos professores. Estão, sim, empenhados em recuperar e valorizar os costumes, crenças e festas típicas desse povo através de sua ação pedagógica. O processo pedagógico demanda um tempo prolongado, assim sendo, é necessário que os atuais professores do PV Terraplanagem sejam apoiados e que se se necessitar de um convênio com o CIMI para garantir sua presença, que o mesmo seja assinado. Assim a FUNAI estará prestando um serviço a causa dos Waimiri-Atroari.”
Alguns meses depois, Wome e seu Irmão Parwe, foram chamados a Brasília, onde foram pressionados a pedir a nossa retirada da escola. Mas eles voltaram sem atender os dirigentes da FUNAI. Aproveitaram sua ida para deixar uma denúncia para Sarney sobre as invasões da Paranapanema.
Como as pressões sobre Wome e Parwe, para pedirem a nossa retirada da área, não surtiu efeito, os dirigentes da FUNAI decidiram nos retirar de surdina. No escurecer, do dia 4 de dezembro de 1986, chegou à aldeia o coordenador do NAWA e mandou que colocássemos a nossa bagagem na pick-up da FUNAI. Contudo a maioria dos Kiña, inclusive Wome, ainda estava conosco. Rapazes e moças nos rodeavam. Estavam separando 100 desenhos de bichos, feitos por eles, para compor o 1º livro em Kiñayara, elaborado por eles, dando início á sua literatura. Seu título seria: NUKWA, traduzindo: “Bichos”.
Enquanto Doroti e eu recolhíamos os nossos pertences, um grupo de mulheres Kiña rodeava Doroti, com lagrimas nos olhos, dava colo ao nosso bebê Tiago Maiká. O tuxaua Wome, tristonho, de olhos baixos, sentado na porta do Posto da FUNAI, ao me despedir dele disse apenas: “Egydio, você, Doroti, CIMI, fraco igual nós!” Foi o maior elogio que recebi durante toda minha vida. Nos acomodamos na pick-up. Doroti com o bebê sentou na cabine. Eu, os meninos e a filha Mayá na pick-up aberta. Quando o motorista diminuiu a velocidade para ultrapassar o ‘mata-burro’, na entrada da BR-174, provavelmente a pedido de Wome, um grupo de rapazes saltou na pick-up. E tomaram nos braços as crianças, dando carinho e abrigo contra o vento frio noturno, durante os 185 Km de estrada de chão, entre a aldeia Yawara e nossa casa em Presidente Figueiredo, onde dormiram naquela noite.
Wome normalmente de feições tristonhas, na aldeia sempre foi um homem carinhoso para com todos. Com rapidez, agilidade e competência dominava todo o tipo de atividade na aldeia e fora dela. Era o “faz tudo”. Não rejeitava nenhum serviço, do concerto das roupas de todo o mundo da aldeia, inclusive, de nossa família, quando vivemos com eles, até o de caçador e operador de motosserra para a abertura de roçados novos ou de um tronco para a transferência de um enxame de abelhas.
Com a sua participação intensa nas aulas de alfabetização, Wome começou a respirar novos ares. Ele se aproximou bastante de nós, apesar da pressão que sofria dos dirigentes da FUNAI, das empresas Eletronorte e Paranapanema para pedir nossa expulsão. Nunca manteve distancia de nós.
Com a nossa retirada compulsória da aldeia e interrupção das aulas de alfabetização, os Kiña foram sistematicamente proibidos de frequentar a nossa casa pelo dirigente do Programa Waimiri-Atroari-PWA.
Em 1998 com o apoio de um funcionário mais aberto, Wome, veio com 12 jovens fazer um curso de criação de abelhas conosco. Ao final pediu que os assessorássemos na instalação de colmeias na reserva. Marcaram um dia para o início. Meu filho Mauricio Adu e eu os atendemos pontualmente. Foi uma festa geral! As caixinhas que lhes demos aqui já estavam todas ocupadas por enxames. E noite adentro, nos mostraram filmes de suas festas, filmados por Wome, assunto que também dominava muito bem.
Infelizmente, só pudemos atende-los uma vez. O funcionário que os apoiava foi afastado e o coordenador do PWA impediu em definitivo a nossa entrada na área. Contudo, quando passam em frente a nossa casa, vindo ou indo a Manaus, sem acompanhante do PWA, sempre param conosco para uma conversa amigável.
Desenho de Wome: ao lado escreveu: “Maika morava na sua maloca no Rio Monawa quando civilizado chegou e para matar”
Há mais ou menos dois meses, Wome acompanhado de mais 3 Kiña, entre os quais Warkaxi, filho de Kiyanã, apelidado de ‘Comprido’ pela FUNAI, um dos principais lideres da resistência contra a BR-174, apareceram, desta vez bem a vontade. Wome estava fora do comum, alegre, radiante e junto com Warkaxi pediram logo para ir à Casa da Cultura do Urubuí, pesquisar fotos e referencias sobre o seu grande líder Kiyanã.
É que alguns meses antes haviam recebido visita de um procurador do Ministério Público Federal de São Paulo e de professores da UFPA-Univ. Federal do Pará que os animaram a pesquisar sobre a sua História na Casa da Cultura do Urubuí. Esperamos que o PWA, não os impeça de novo de prosseguir este estudo que com certeza lhes trará a resposta à pergunta que os atormenta e que está sendo ocultada pelos seus algozes: Por que Kamña matou Kiñá?
Lamentavelmente Wome morreu sem ter esta resposta. Mas permanecem as suas denúncias, em desenhos, escritos e falas, contra o genocídio sofrido por seu povo, sob o Comando Militar da Amazônia, da FUNAI, da Eletronorte e da Paranapanema. Esperamos que estes um dia reconheçam, qualifiquem, peçam perdão e reparem, no que ainda for possível, o crime de genocídio.
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WOME VIANA: Por que Kamña matou Kiña? Apiyemiyeke? Por que? Artigo de Egydio Schwade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU