01 Mai 2024
Coletivo elenca políticas que agravaram destruição socioambiental no Brasil entre 2019 e 2022 e evidenciam importância dos “lançadores de alerta” e das Ciências Sociais para evitar tragédias.
A entrevista é de Fernanda Couzemenco, publicada por ((o))eco, 29-04-2024.
São muitos os números, relatos e análises que evidenciam as ações políticas executadas no Executivo e no Legislativo que permitiram às gigantes da indústria minerária intensificarem a destruição socioambiental, característica do setor, durante o último governo federal. E uma reunião robusta desses dados é encontrada em duas publicações lançadas pelo Coletivo de Pesquisa Desigualdade Ambiental, Economia e Política, formado por professores, pesquisadores e estudantes das universidades federais do Rio de Janeiro, Fluminense, Rural do Rio de Janeiro, do Recôncavo da Bahia e de Alagoas (UFRJ, UFF, UFRRJ, UFRB e UFAL).
Em “Capitalismo extrativista e Estado de intimidação – Brasil, 2019-2022” e “A contribuição das Ciências Sociais à prevenção de desastres ambientais”, o Coletivo traz um compilado de informações disponíveis em artigos científicos, relatórios de entidades não governamentais e reportagens investigativas, pontuando projetos de lei, decretos, resoluções e outros atos normativos, no Palácio do Planalto e do Congresso, que esvaziaram profundamente a participação social e a capacidade e efetividade do próprio Estado em aplicar as ferramentas de controle ambiental que regulam as atividades de mineração no país.
As publicações são resultado de pesquisas realizadas no âmbito do Projeto “O papel das Universidades e dos movimentos sociais na prevenção de desastres com barragens e no respeito aos direitos humanos em áreas atingidas por grandes projetos de mineração no Brasil”, que teve apoio de recursos da Fundação Ford.
Ao longo de dezenas de páginas, os autores elencam, com muitas tabelas descritivas e gráficos, os atos das diversas instâncias do governo federal, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), que vulnerabilizaram ainda mais os grupos populacionais que historicamente são mais invisibilizados, criminalizados e violentados, por ocuparem territórios visados pelo neoextrativismo, e que, ao mesmo tempo, favoreceram o crescimento dos lucros já bilionários das gigantes do setor. Os pesquisadores evidenciam que esse contexto constitui “a vigência do que se tem chamado de ‘capitalismo parlamentar’, sistema em que grandes corporações empresariais se fazem representar de forma quase imediata no âmbito do Legislativo”.
As publicações apontam também como os danos sociais e ambientais dessa dinâmica predatória são mascarados para a sociedade por meio de investimentos maciços em publicidade na mídia hegemônica, prática que é facilitada pelo próprio fato de que, entre os maiores beneficiários da desregulamentação do sistema de normatização, licenciamento e fiscalização dessas atividades econômicas, estão empresas que lideram o mercado da tecnologia da informação e da comunicação, como Google e Microsoft.
Entre os inúmeros dados explicitados nas publicações, estão, por exemplo, o fato de que o Brasil é “o país mais letal para os defensores da terra e do meio ambiente, com o maior número documentado de assassinatos” desde 2012 e que, durante a gestão de Bolsonaro, “a Política de Proteção [a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos] foi desestruturada, sofrendo cortes orçamentários, restrição na participação social e na transparência e redução da equipe e infraestrutura”. O principal alvo dessa violência em busca do controle dos territórios, sublinham, ainda é o corpo humano, principalmente de pessoas indígenas e negras (um terço das vítimas) moradoras da Amazônia (85% das mortes).
Considerando os episódios de violência no campo em todos os biomas, o caderno Conflitos no Campo, publicada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2022 “mostra um crescimento de cerca de 54% dos conflitos após o golpe de 2016”, 97% deles promovida pelo capital, devido à redução no número de ocupações feitas por movimentos sociais no período. “Como principais agentes [da violência no campo], aparecem os empresários e fazendeiros; na sequência, grileiros, madeireiros e garimpeiros”.
As publicações mostram também que, atualmente o país é “um dos que mais violam o direito à liberdade de expressão no mundo”, com uma média de 11 episódios por semana durante o ano de 2022 e com o maior patamar de ataques a esses profissionais desde a década de 1990.
Em meio a esse acirramento do que já era acima da média, o Congresso Federal ainda se esquivou de ratificar o “Acordo de Escazú”, relativo ao “Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe”, considerado “o primeiro tratado regional de direitos humanos e ambientais na América Latina e no Caribe e o primeiro instrumento juridicamente vinculante do mundo a incluir disposições sobre defensores do meio ambiente, direito de acesso à informação ambiental e de participação na tomada de decisões ambientais”.
Nas páginas dos relatórios do Coletivo, estão diversas tabelas elencando centenas de medidas tomadas pelo governo federal e o Congresso – parlamentares integrantes das Frentes Parlamentares da Agropecuária (FPA) e da Mineração (FPM), especialmente – que visam facilitar a usurpação dos territórios de interesse pela indústria minerária neoextrativista e sua impunidade diante dos crimes socioambientais cometidos.
Entre elas, a “extinção de mais de 700 Conselhos (“Revogaço”); dizimação de “´programas finalísticos de reforma agrária”, com redução de 99% das verbas; corte de mais de 90% também nas “ações de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, concessão de crédito às famílias assentadas”; e de mais de 80% nos “programas de monitoramento de conflitos agrários e de pacificação no campo”.
Por outro lado, as publicações mostram o contraponto protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que exerceu “um papel importante no refreamento de algumas das medidas abusivas”, chegando a “instaurar a chamada ‘Pauta verde’ para apreciação e julgamento de um conjunto de processos ajuizados por partidos políticos que questionavam o esvaziamento das políticas ambientais”. E que, com a chegada do novo governo federal, boa parte dessas ações inconstitucionais, agrupadas na chamada Pauta Verde, teve pedido, junto ao STF, de perda total ou parcial, por parte da Advocacia Geral da União (AGU) e Ministério do Meio Ambiente, visto que não interessavam mais à nova presidência da República.
A importância das pesquisas feitas pelas Ciências Sociais para evitar tragédias evidencia a atuação permanente de personagens chamados, pela Sociologia Pragmática do risco, de “lançadores de alerta” – pessoas que denunciam os perigos e violações sofridas pelas comunidades de territórios visados pelo neoextrativismo e exigem as tomadas de providências necessárias por parte do poder público e da justiça.
“Diferentemente da figura do delator, o lançador de alerta não se posiciona numa lógica de acusação, mas pretende divulgar um estado de fato, uma ameaça danosa para o que se estima ser o bem comum, o interesse público ou geral. Eles podem despertar consciências a respeito de irregularidades em curso, bem como se antecipar ao advento de um fato indesejável, orientando sua mensagem para o futuro. As vítimas presumidas dos riscos são frequentemente coletivas, reais ou potenciais. A emissão de um alerta é, por sua vez, um processo tortuoso, situado entre dois limites: o do pedido de socorro e o da previsão de um mal, podendo tanto ser levado a sério, como ser rejeitado, denunciado, ser posto em banho-maria ou suscitar uma controvérsia entre peritos”, explicam os autores.
O maior crime socioambiental da mineração mundial, eclodido em novembro de 2015 em Mariana/MG, com o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, é uma das dez tragédias estudadas pelos pesquisadores, que inclui ainda os seguintes casos: Mineração Paragominas em Jambuaçu; TKCSA; Serra do Gandarela; Estrada de Ferro Carajás; Projeto S11D; Onça Puma; Salobo; Sossego; e Brumadinho.
Da análise, foram identificadas 15 categorias de danos presentes nos dez casos: Poluição atmosférica; Poluição de recurso hídrico; Poluição do solo; Poluição sonora; Alteração do regime tradicional de uso e ocupação do território; Ausência ou irregularidade na autorização ou no licenciamento ambiental; Assoreamento de recurso hídrico; Erosão do solo; Desmatamento e/ou queimada; Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas; Alteração do ciclo reprodutivo da fauna; Invasão e danos causados em área protegida ou unidade de conservação; Implicações raciais nos impactos; Ausência de Consulta Prévia, Livre e Informada (Convenção nº 169 OIT); e Alagamento/Inundação.
Ao longo da publicação, os pesquisadores organizam uma série de dados que mostram o aspecto inquestionável de “tragédia anunciada” presente em cada um dos casos analisados. Sobre a Samarco, por exemplo, informações públicas já davam conta de que “entre 2011 e 2014, uma elevação em 260% do número de acidentes de trabalhos, indicando uma tendência de deterioração ampliada das condições de trabalho”.
Há ainda os dados de racismo ambiental, como o fato de que, “entre 2013 e 2014, a Samarco aumentou em 50% seu consumo de água” e de que “no mesmo período, o município de Mariana viveu uma situação crítica de escassez hídrica, que culminou no estabelecimento e intensificação de uma política de rodízio de abastecimento, o que demonstra um privilégio ao uso industrial em detrimento do consumo humano”.
Ou a percepção de que a população negra foi a mais afetada pelo desastrem como ilustram artigos referenciados na publicação, informando percentuais acima de 60% de população negra em algumas das comunidades mais próximas da barragem rompida e, consequentemente, mais imediata e drasticamente atingidas pela lama, como Bento Rodrigues (população 85% negra, a 6km da barragem); Paracatu de Baixo (80% e 40 km); Gesteira (70,4% e 62 km); e Barra Longa (60,3% e 76 km).
A reportagem de ((o))eco conversou com o coordenador geral do projeto, Henri Acselrad, professor colaborador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR/UFRJ), e com Juliana Neves Barros, professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias da UFRB, sobre os caminhos que as publicações apontam para qualificar a luta para tornar a mineração uma atividade econômica menos predatória, a partir da aplicação efetiva da legislação e das políticas públicas. Confira trechos das entrevistas a seguir:
O caso Samarco mostra que antes de Bolsonaro já havia desleixo do governo federal com fiscalização de barragens. O que mudou e o que permanece, a partir de 2023, com a terceira gestão de Lula?
Henri Acselrad - O modelo de desenvolvimento que se estabeleceu no Brasil desde o início dos anos 2000 reflete uma articulação entre processos de reprimarização e de financeirização da economia. Costumamos chamar de neoextratista ao modo de inserção internacional subordinado de economias da periferia do capitalismo global caracterizado pela especialização exportadora em bens intensivos e recursos naturais e a apropriação de rendas extraordinárias por grandes corporações extrativas e financeiras. Este modelo se constitui no contexto de relações internacionais que reservam aos países da periferia do capitalismo global – como o Brasil – o papel de utilizar seu território para produzir bens exportáveis que contribuem para degradar seus recursos em água, fertilidade do solo e biodiversidade. No entanto, ao mesmo tempo, pretende-se que estes países criem áreas protegidas que possam compensar as emissões de gases-estufa dos países mais industrializados.
Ora, sabemos que o governo brasileiro do período 2019-2022 se esmerou em estimular a função exportadora e degradante, ao mesmo tempo em que desmontou as agências de proteção ao meio ambiente, paralisando também os projetos de reconhecimento e demarcação de terras indígenas, quilombolas e de criação de unidades de conservação. O governo eleito em 2022 tem buscado reconstituir o sistema institucional de proteção ambiental e melhorar suas performances em termos de imagem internacional. Tem investido em ações de contenção do desmatamento na Amazônia, embora não tenha conseguido limitar o avanço das atividades degradantes no Cerrado. Ele age, por certo, no sentido de melhorar a imagem ambiental do país, mas não parece abrir mão do apoio à ocupação do território por monoculturas de exportação e à expansão da fronteira da grande mineração. O modo de inserção do Brasil na economia internacional em nada mudou, consagrando uma divisão internacional desigual das atividades poluidoras que se apoia numa distribuição mais que proporcional de riscos – como o de barragens, contaminação de rios, grilagem de terras públicas e invasão de terras indígenas – sobre os grupos sociais de baixa renda, em particular populações não brancas de países do Sul global como o Brasil. A resistência a este modelo passa por proteger as terras e territórios de pequenos produtores agroecológicos, povos indígenas e tradicionais, de modo a que possamos aprender com eles meios de substituir o modelo agroquímico monocultural e abandonar as dinâmicas extrativas que reproduzem velhas relações coloniais.
Entre esses mestres populares com que a ciência, juristas, legisladores e gestores públicos precisam aprender formas mais inteligentes e sustentáveis de viver em sociedade, estão os “lançadores de alerta”, figuras que, historicamente, sempre cumpriram seu papel de de denúncia e anúncio, dentro de um contexto ideal de respeito ao princípio da prevenção e precaução, mas que, afora as pesquisas e publicações das ciências sociais e do jornalismo independente, são sistematicamente silenciados pelo capital. Como é possível fazer com seus alertas serem considerados nas tomadas de decisões e definições de políticas públicas?
Henri Acselrad - Sim, as práticas portadoras de risco, que ameaçam a estabilidade ecológica das atividades de terceiros, podem e devem ser alteradas em função da denúncia dos danos que elas geram quando estes danos são percebidos e denunciados pelos grupos que são por elas atingidos. Mesmo antes de qualquer estudo técnico sobre riscos e danos das práticas de transformação do meio ambiente em grande escala – como monoculturas, grandes projetos industriais, barragens, oleodutos, minas, polos eólicos etc. – o princípio de precaução indica que se ouça as populações potencialmente atingidas. Se isto tivesse sido feito, não teria havido o desastre da Samarco no Rio Doce. Se se tivesse apreendido com este desastre, teriam sido ouvidos os alertas que apontavam o risco de rompimento da barragem I do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, que ocorreu quatro anos depois do da Samarco. O saber ecológico espontâneo das populações que vivem e trabalham nos espaços afetados por estes projetos deve ser considerado e legitimado como indicador primeiro da possibilidade de ocorrência de danos e desastres. Toda a proteção da integridade de uma bacia como a do Rio Doce, por exemplo, depende de que se dê atenção à vigilância localizada dos moradores de Bento Rodrigues, que foram os primeiros a terem suas vidas viradas pelo avesso em razão do que certos autores chamam de “irresponsabilidade organizada” – própria ao modelo neoextratista.
Depois de um curto tempo com três grandes desastres de alcance mundial – Samarco/Vale no Rio Doce; Vale em Brumadinho; e Braskem em Maceió – há um terreno mais propício para que os alertas consigam “constranger” as empresas e os governos a mudarem de postura?
Henri Acselrad - Após quase uma década desde o desastre ocasionado pela Samarco, Vale e BHP na bacia do Rio Doce, persistem inúmeros problemas relacionados à segurança e fiscalização das atividades de mineração, assim como aos impactos contínuos nas comunidades atingidas. Do ponto de vista legislativo, diversas medidas foram propostas, a partir da mobilização popular, mas nem todas se materializaram. Destacam-se, no âmbito nacional, a aprovação da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei nº14.066/2023) e a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Lei nº14.755/2023), além das legislações estaduais, em Minas Gerais, como a Lei Mar de Lama Nunca Mais (Lei nº. 23.291/2019) e a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (Lei nº 23.795/2021), todas surgidas após o desastre em Brumadinho.
No entanto, o PL 2985/2019, que define normas gerais para o licenciamento ambiental de empreendimentos minerários, e que poderia garantir maior participação, controle social e segurança às atividades minerárias, ainda não foi votado. No que diz respeito à responsabilização e à reparação dos danos provocados por esses desastres, cabe assinalar que as estratégias empresariais foram variadas. No caso do desastre na bacia do Rio Doce, houve uma espécie de empresariamento da gestão da reparação a partir da criação e da atuação da Fundação Renova. Essa entidade, criada para executar os programas ao longo da bacia, não garantiu participação da população atingida, bem como atuou em diversos momentos prioritariamente de forma a reduzir os custos do processo de reparação para as empresas que causaram os danos, bem como buscou proteger essas empresas dos possíveis prejuízos à sua imagem, por meio de grandes investimentos em marketing e publicidade.
Em Brumadinho, ainda que a solução encontrada tenha sido distinta, o Acordo assinado pelas instituições de justiça e pelo governo do Estado não garantiu mecanismos concretos de participação popular, e, como denunciado por organizações e movimentos sociais, parece ter atendido a interesses eleitorais, mantendo diversas comunidades e territórios à margem do processo de reparação. Como dizem representantes dos atingidos, “é nos silêncios que as barragens rompem”. A “sirene social” – decorrente da percepção coletiva da sociedade – deve, portanto, tocar o alerta e fazer barulho suficiente para chamar governos e empresas à responsabilidade.
Há outros caminhos possíveis de compensação dos danos provocados e para evitar que novos avanços autoritários ocorram no país, ainda sob o jugo do capitalismo extratista?
Juliana Neves Barros - Primeiro, é preciso dizer que quando nos referimos, na pesquisa, à associação entre autoritarismo político e de mercado como uma dinâmica de poder própria do capitalismo extrativista, entendemos que essa dinâmica atravessa governos, conjunturas, ainda que com graus diferenciados de força. Basta nos lembrarmos aqui do que foi o processo de votação do Código Florestal em 2012, de flexibilização do licenciamento ambiental que já se observa há mais de uma década, do histórico de implantação autoritária de grandes empreendimentos sobre os territórios de populações locais, do enraizamento dos mecanismos de grilagem de terras, da ação de milícias e da impunidade da violência no campo que faz com que o Brasil ocupe o topo no ranking de assassinato de defensores de direitos humanos ligados à luta pela terra e à defesa do ambiente, conforme apresentado em vários relatórios anuais, mas cito aqui pesquisa publicada recentemente pela Global Witness com dados referentes à última década. Então, o que chamamos de capitalismo extrativista pressupõe uma lógica de reprodução e acumulação de capital baseada numa divisão de papéis dentro do sistema-mundo, organizada a partir da hierarquização racializada de corpos, territórios, ambientes humanos e não humanos, que passam a ter sua existência subordinada aos interesses daqueles colocados em posição superior; essa estrutura é um legado da condição colonial e pauta a relação entre países chamados centrais e periféricos, bem como se reproduz internamente na relação entre regiões, populações brancas e não-brancas, que mobilizam categorias de raça, etnia, gênero, origem, classe, para naturalizar desigualdades e opressões.
Isso é importante para assentar a complexidade e profundidade do desafio em termos de mudança, de alcance da justiça, mas não para afastar o poder de agência das pessoas, dos coletivos, das organizações e movimentos que almejam transformar esse estado de coisas. A ação política é capaz de mudar a direção e a força dos ventos e é interessante observar como cada vez mais essas vozes críticas percebem que é necessário a atuação e reflexão articulada contra um conjunto de opressões que se interligam; é preciso ser multidimensional no discurso e na prática, falar de degradação ambiental, racismo, heteropatriarcado, privilégio branco, pobreza, colonialismo, do modo que se co-constituem no capitalismo; ser interseccional nas lutas, como nos propõe Ângela Davis. Claro que há o outro lado: o crescimento da extrema direita no mundo, ancorada por forças ligadas ao liberalismo econômico, e essa ambiência de intimidação em relação àqueles que lutam por liberdades e justiça. Isso sinaliza senão o acirramento dos conflitos. No caso do Brasil, e que é o contexto de nosso relatório de pesquisa, tratamos de buscar as conexões entre um governo de inspiração autocrática, como foi o governo Bolsonaro, com um discurso escancaradamente antiambientalista, e que empreendeu um mandato destrutivo em termos de direitos e políticas públicas, com os interesses de um capital extrativo que quer mascarar suas práticas por meio da propaganda do desenvolvimento sustentável e do compromisso social. A eleição de Lula em 2022 retoma outros espaços de participação, debate, significa uma abertura maior do que chamamos esfera pública, mas a responsabilização dessas empresas guarda desafios grandes, tendo em vista a articulação e a sofisticação das estratégias que lançam mão para ocultar/negar os danos que produzem, que vão desde o lobby junto à opinião pública e veículos de mídia, aos 3 poderes, destacando-se o financiamento indireto de bancadas parlamentares como a ruralista, por exemplo, até à autorepresentação de seus interesses na ocupação da máquina estatal.
Onde você entende que residem as maiores dificuldades para a responsabilização efetiva das empresas em relação aos seus crimes?
Juliana Neves Barros - Acho que um dos principais aspectos a serem denunciados é a retórica da legalidade assumida pelas empresas, baseada em diversas práticas que visam a legalização do ilegal. A síntese dessas práticas encontra-se bem resumidas nas conclusões do relatório: “Ao lado de TACs [Termos de Ajustamento de Conduta], moratórias, compromissos internacionais em não obter produtos de áreas desmatadas, o levantamento de dados aponta a persistência renovada de mecanismos que buscam dar ares de legalidade a práticas criminosas, estimuladas pelas relações comerciais no mercado global de commodities, como a grilagem verde, amplamente utilizada na cadeia da soja, a lavagem de gado ou boi-pirata, presente na cadeia de fornecimento e exportação da carne, a atuação dos petroleiros piratas, que dificulta a identificação e responsabilização nas situações de vazamento e em diversos outros crimes ambientais praticados pela indústria petroleira, a lavagem de ouro no garimpo ilegal, que camufla a origem do produto a partir da invasão de terras indígenas e unidades de conservação, as práticas de arrendamentos em terras indígenas disfarçadas de cooperação agrícola”, a contratação terceirizada de milícias para atuarem no controle do território, entre outras práticas.
Além disso, as corporações investem em estratégias variadas de ocultação dos passivos sociais e ambientais, que passam pelo controle sobre informações técnicas especializadas, pela disseminação da dúvida e desqualificação das denúncias com argumentos pseudocientíficos, além de impulsionarem a expulsão de comunidades e grupos a partir da manipulação do discurso da segurança e das condições ambientais inadequadas, como vem ocorrendo com as contaminações químicas em áreas pesqueiras e áreas contíguas às barragens de mineradoras. A fragilização das ações de controle e fiscalização corroborou também o quadro de normalização da impunidade corporativa”.
Constranger as empresas e governos é uma forma de mudar um pouco o estado das coisas?
Juliana Neves Barros - Mesmo com todas as denúncias já realizadas, o testemunho recente de tragédias como o que a Vale fez em Brumadinho e Mariana, a Braskem em Maceió, a indústria petroleira no litoral do Nordeste, o crime organizado do latifúndio no território Pataxó Hã-Hã-Hãe e em tantos outros territórios tradicionais, ainda se insiste em difundir o imaginário desses agentes como heróis nacionais, que sustentam nossa economia e não podem sofrer qualquer tipo de freio. Então, sem dúvida, voltando à sua pergunta, os caminhos possíveis passam por essa mudança na relação entre Estado e empresas violadoras, garantindo mais regulamentação, mais controle e fiscalização, mais seriedade e responsabilidade com os direitos da população ameaçada ou atingida. A segurança jurídica nos territórios também é uma frente importante, assim demarcação e homologação dos territórios indígenas, quilombolas, pesqueiros, das áreas de assentamento, é uma pauta prioritária para a proteção dos povos e da biodiversidade. Tudo isso é que vai contribuir tanto para uma perspectiva de prevenção, no sentido de evitar os tais danos, quanto de reparação, no caso daqueles já ocorridos. Mostrar que aqui, ao contrário do que propagaram os portugueses no início da colonização, não é terra nuliuus, ou seja, não é terra de ninguém para satisfazer a cobiça sem limites dos agentes econômicos.
Outro caminho é a mobilização política através de campanhas internacionais, como bem fazem os povos indígenas, capazes de constranger possíveis financiadores da cadeia global de destruição, como também o Estado brasileiro. Por fim, esse Estado só vai assumir uma face mais regulamentadora da ação das empresas na medida em que for constrangido a tanto pela atuação dos grupos sociais, pela mobilização e disputa que se faz nas mobilizações de rua, nas ações diretas, nos espaços institucionais de participação, na disputa da opinião pública, nas articulações nacionais e transnacionais das lutas. Surpreendeu-nos, cabe dizer, a capacidade de mobilização e produção de informação de coletivos, redes e organizações não-governamentais no Brasil durante o governo Bolsonaro, mesmo com toda a censura e fechamento da esfera pública que o período representou. Existe uma tradição de resistências no nosso país que a gente tem o dever de lembrar, reconhecer e acionar para imaginar e construir futuros.
De que forma a academia e a imprensa podem colaborar para construir um cenário para saudável e justo daqui para frente?
Juliana Neves Barros - A academia e a imprensa são espaços privilegiados de produção de informação e, ainda mais a imprensa, de circulação e formação de opinião pública. A produção científica na academia é pauta de disputas, claro: às empresas interessam interferir na produção das Universidades de modo a esvaziar críticas e contestações aos possíveis efeitos negativos de seus projetos. E tentam fazê-lo sobretudo através da pauta do financiamento privado de pesquisas. Mas há um outro lado, representativo de uma produção cientifica mais autônoma, que tem realizado estudos e pesquisas muito consistentes que nos alertam sobre os riscos de determinados empreendimentos e processos produtivos à saúde, ao ambiente, à qualidade de vida das populações. Esses pesquisadores infelizmente têm sofrido várias formas de constrangimento e assédio processual. Assim, do ponto de vista da academia, entendo que prezar pela autonomia da produção cientifica, pela liberdade de pesquisa, é um primeiro ponto, que passa inclusive pela garantia do financiamento público. A outra é a popularização do conhecimento cientifico, a circulação do que é produzido e numa linguagem mais acessível, despida dos jargões tecnicistas e empolados que tradicionalmente marcam o confinamento da linguagem acadêmica.
Já a imprensa, a grande imprensa, precisa estar mais comprometida com a qualidade da informação e o debate público de assuntos que tem camadas complexas de abordagem. Normalmente, os temas são simplificados ao extremo e enviesados em torno de polarizações que passam longe da realidade; há muito mascaramento. Basta ver como o agronegócio é blindado na grande mídia, como é abordado nas novelas, como nas situações de crimes ambientais a identificação/o nome das corporações sequer é mencionado, como ainda é forte a perspectiva de desqualificação e criminalização da ação dos movimentos sociais, como os fatos são comunicados numa avalanche de associações informacionais e emocionais que nos compele ao automatismo, à recepção irrefletida, à desafetação pelo que se passa, como as situações de violência e violações, quando retratadas, são tratadas como um evento excepcional… Penso que, sim, é preciso democratizar a mídia televisiva, quebrar monopólios, porque essa “desinformação” em massa não acontece à toa, está atrelada à concentração de poderes e articulação de interesses: o grupo que é proprietário da rede de TV também é proprietário de imensas extensões de terras e está ocupando cargos estratégicos na máquina pública; recebe recursos vultosos por publicidade de empresas cujas práticas jamais serão questionadas… Cabe ainda reconhecer o papel que a imprensa chamada de alternativa vem cumprindo, o jornalismo investigativo que muitos veículos vêm se propondo a fazer, cujos resultados são disponibilizados nas redes sociais; o alcance ainda infelizmente é pequeno se comparado à mídia televisiva, mas muita informação boa, consistente, fruto de reportagens investigativas muito corajosas, tem sido produzida. E vem contribuído para fazer avançar a crítica e democratizar o acesso à informação, dar mais visibilidade a perspectiva daqueles grupos recorrentemente silenciados nos espaços de poder. Cito o trabalho de sites como De Olho nos Ruralistas, Agencia Pública, O Eco, Observatório da Mineração, Repórter Brasil, entre tantos outros.
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Como proteger os territórios do neoextrativismo, do “capitalismo parlamentar” e do “Estado de intimidação”? Entrevista com Henri Acselrad e Juliana Neves Barros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU