Os Povos Indígenas e os Direitos da Natureza: um caminho de ancestralidade. Artigo de Gabriel Vilardi

Atividade nas comunidades Tikuna | Foto: Lídia Farias (Cimi)

27 Mai 2024

É urgente avançar para além de uma visão antropocêntrica utilitarista e neoliberal, assumindo um paradigma ecocêntrico que considere os Direitos da Natureza e o direito prioritário dos Povos Indígenas. Como singulares guardiões de outros modos de vida que não aqueles predominantes no mundo ocidental capitalista, seus conhecimentos e cosmovisões são essenciais para as mudanças e reconstruções necessárias à sobrevivência da Vida neste planeta.

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Artigo publicado na revista Letramento Socioambiental do Instituto E.V.A em 13-08-2023.

Eis o artigo.

Por onde passei, plantei a cerca farpada, plantei a queimada. Por onde passei, plantei a morte matada. Por onde passei, matei a tribo calada, a roça suada, a terra esperada... Por onde passei, tendi tudo em lei, eu plantei o nada (Casaldáliga, 1979, p. 84).

Esse poema chamado de “Confissão do Latifúndio”, escrito pelo grande bispo-poeta da libertação, Pedro Casaldáliga, no seu livro Cantigas Menores (Casaldáliga, 1979), sintetiza o drama da desigualdade e da injustiça social em toda América Latina. Uma inolvidável realidade que tem gerado consequências nefastas nesta terceira década do século XXI, o escandaloso problema da fome. Um olhar mais atento perceberá que este flagelo está fundado na estrutura fundiária do continente, fruto de uma colonização violenta que expulsou e escravizou as populações originárias, destruindo e saqueando as riquezas da imensa biodiversidade dos territórios invadidos.

Em 2022, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional realizou o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN). Esta pesquisa por amostragem, visitou 12.745 domicílios urbanos e rurais de 577 municípios das 27 unidades da federação, nas cinco grandes regiões do Brasil, entre novembro de 2021 e abril de 2022, obtendo informações sobre 35.022 indivíduos (Penssan, 2022). De acordo com os achados desta pesquisa, sofrem de algum tipo de insegurança alimentar 125,2 milhões de pessoas, sendo que desse montante 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Trata-se, pois, de alarmantes 15,5% da população do país. Isso em um dos Estados conhecidos como o “celeiro do mundo”, grande baluarte do agronegócio e um dos maiores exportadores de commodities do planeta.

Embora seja historicamente um lugar de chocantes e normalizadas contradições, esses números são bastante difíceis de serem assimilados até mesmo pelos menos críticos dos brasileiros. Por mais que se queira ignorar, a falência do atual paradigma socioeconômico torna-se cada vez mais clara:

"Assim, podemos afirmar que o paradigma moderno e dominante convive com a ideia de que o mundo é uma máquina cujos pilares são a ordem e o progresso econômico a qualquer custo e, por essa razão, temos como resultado dessa lógica um processo de exclusão sem precedente. Isso é que chamamos de crescimento utilitário e funcional, cuja centralidade está em dominar e transformar sem a mínima intenção de compreender (Santos 2000). Os pilares dessa lógica são um modelo de desenvolvimento e conhecimento aprisionador pela ideia de que o mundo somente tem uma chance de existir, a afirmação diária de que a sociedade somente se desenvolve pela lógica do mercado e do consumo e, nesse contexto, desenvolver requer a aceitação de que a ordem e o progresso econômico liberal estão acima de qualquer suspeita" (Giffoni et al. 2020, p. 16).

Para ir além de análises e respostas superficiais impõe-se o dever de se indagar pelo modo de ocupação do território brasileiro. A questão remonta ao Brasil Colônia e a sua divisão em capitanias hereditárias, distribuídas entre as famílias amigas da Coroa portuguesa. Desde então a história de Pindorama, como originariamente se referiam os Povos Guarani à região, foi contada sob o viés dos invasores ao custo de muito sangue, violência e tentativa de apagamento identitário de mais de mil nações indígenas que aqui habitavam.

O problema da terra no Brasil

Jogar luz sobre esse passado, a partir de uma perspectiva “decolonial”, é tarefa urgente para os pensadores de um país, que deseja deixar de repetir no presente os abusos de um tempo ainda não conscientemente enfrentado. No processo de independência do Brasil de sua metrópole, as mudanças aconteceram para que os velhos coronéis permanecessem no poder e seus interesses não fossem ameaçados.

Com as pressões externas pelo fim da escravidão, uma legislação foi aprovada para garantir que as classes oprimidas não tivessem acesso à terra, mas apenas e tão somente aqueles que pudessem pagar por elas. Ainda que, é verdade, quase nenhum dos poderosos tenha realmente desembolsado algum valor por essas propriedades. Esses territórios eram tomados com base na violência ou em face das conexões políticas de seus pretendentes, ou ainda com a combinação desses dois elementos.

Nesse sentido apontam os estudiosos da questão agrária, que:

"No Brasil, as grandes mudanças foram operadas em 1850, por meio de um gabinete conservador que coloca em prática um amplo projeto de modernização econômica do país (...) Uma medida básica foi a Lei Eusébio de Queiroz, que leva ao fim do tráfico transatlântico de negros, cortando o abastecimento de mão de obra das grandes plantações de café. Ao mesmo tempo, uma lei de terras impõe, ao menos para as áreas já ocupadas, a compra como única forma de acesso à terra. Desconhecendo as formas tradicionais de posse e uso da terra, as chamadas terras de negros ou terras de indígena, aprofundam-se as possibilidades de expropriação das áreas ocupadas pelo campesinato negro, indígena ou mestiço, formado ao longo dos séculos de história colonial. Nenhum dispositivo estabelece limites à grande propriedade ou um imposto territorial, da mesma forma que a abolição gradual, que se completará em 1888, não prevê qualquer mecanismo de assentamento ou colonização agrícola para os ex-escravos" (Linhares, 2021, p. 109).

Entretanto, esse processo de ocupação do território brasileiro e consequente concentração de terra nas mãos de poucas e bem relacionadas famílias, não ocorreu sem conflitos e resistências. Parafraseando o poeta, no meio do caminho havia muitos Povos Indígenas. Muitos lutaram como puderam, outros foram dizimados, alguns como estratégia de sobrevivência recuaram a espera de melhores condições de retomada das suas terras roubadas. Outros tantos povos fugiram da barbárie trazida pelos “civilizados”, adentrando os interiores do país, em busca de refúgio e preservação de seu modo de vida.

Um desses espaços buscados por esses povos foi a Amazônia, lar de dezenas de outros grupos originários e de uma imensa biodiversidade. Vale acrescentar que ainda hoje resistem algumas dezenas de Povos em Isolamento Voluntário ou Povos Livres que não desejam contato com a sociedade envolvente ou mesmo com outros “parentes” indígenas. Infelizmente, como não poderia deixar de ser para um sistema capitalista devorador e voraz, a ocupação da região não tem destoado da lógica que dominou no restante do país.

Uma frase dita por um dos ministros da ditadura militar é bastante emblemática e reveladora da mentalidade das altas autoridades do regime, visão esta que infelizmente supera o período autoritário e pode ser estendida até os tempos recentes. Segundo Marianne Schmick e Charles Wood (2012), o influente Delfim Neto (1978) teria afirmado: “... primeiro, faremos um velho faroeste na Amazônia. E aí, chamamos o xerife... ” (Marques, 2019, p. 179). Acontece que invariavelmente o xerife (Estado) estava ao lado dos bandidos, daqueles que infligiam o terror e a morte na região.

A avidez da elite brasileira e do capital estrangeiro não possui limites. Em nome de um excludente e ultrajante “desenvolvimento nacional” avançaram destrutivamente sobre a Casa Comum das populações tradicionais, no último rincão de resistência e preservação.

Retomar essa história é imprescindível para se antecipar às propostas dos governos e empresários, que insistem em perpetuar a monetização e degradação do bioma amazônico.

Para tanto, tão bem sintetiza o professor Gilberto Marques:

"Conflitos e contradições sociais foram estendidos de outras regiões para a Amazônia e, ali, receberam outros agravantes, como a degradação ambiental. Assim, ocorreu a expansão da chamada fronteira agrícola, mas com muitas contradições e seguindo o percurso aberto pelas novas rodovias. Segundo Marques e Marques (2015), o imigrante/posseiro era o primeiro a chegar às novas terras, se enfrentando com populações indígenas e com a floresta. Depois de “amansada” a terra, chegava o fazendeiro imigrante que adquiria essa posse (por métodos diversos), fazendo com que o primeiro fosse deslocado para abrir uma nova área de terra (...) Esse movimento era acompanhado pela grande fazenda, comércio, banco, cartório, obras infraestruturais, ou seja, formas capitalistas de ocupação territorial. Já afirmamos que a política de distribuição de terras e incentivos na Amazônia priorizava os proprietários de fora da região, excluindo particularmente os pequenos produtores. Costa comprovou que os incentivos fiscais estavam concentrados em empresas gigantes (Banco Bradesco, por exemplo), seguidas por grupos familiares forâneos (São Paulo e Minas Gerais, principalmente). Os grupos oligárquicos locais totalizaram 21,5% dos investimentos" (Marques, 2019, p. 164-165).

Esse perigoso avanço da fronteira agrícola, que se faz baseada na descarada grilagem de terras públicas, ameaça a sobrevivência não só dos inúmeros Povos Indígenas que vivem na região, mas também o próprio direito de todos os cidadãos “ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida...”, garantido no art. 225 da Carta Magna de 1988.

O ponto de não retorno está se aproximando, como vêm alertando reiteradamente os cientistas. Caso esse nível seja atingido a floresta não poderá mais se regenerar e acontecerá um processo de desertificação do bioma. Isso afetará o regime de chuvas em todo o país e agravará as consequências das mudanças climáticas, com eventos extremos, como secas e enchentes.

Por isso, emerge como inadiável o questionamento das formas de ocupação da terra no país, seja tanto pelo extrativismo predatório, quanto pelo modelo do agronegócio exportador de commodities. Apesar da massiva propaganda que martela efusivamente o slogan do “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”, a realidade revela-se bastante distinta e preocupante.

Mesmo com o sucateamento da fiscalização no Mistério do Trabalho nos últimos anos, com um déficit de 1.500 cargos vagos, o que consiste em quase 50% da força de trabalho nessa área, a denúncia de pessoas em situação análoga à escravidão é a maior desde 2012. Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (Sobrinho, 2023), em 2022 foram resgatados 1.973 trabalhadores nessas condições. Dentre as principais atividades que se utilizaram de trabalho escravo estavam a lavoura de cana-de-açúcar (362), as atividades de apoio à agricultura (273) e a produção de carvão vegetal (212).

Parte considerável do agronegócio está baseada na monocultura em larga escala, voltada para a exportação. Uma busca rápida na mídia oferece dados atualizados que permitem perceber que para alcançar os níveis de lucro pretendidos, usa-se uma quantidade cada vez maior de agrotóxicos, sendo que apenas nos últimos quatros anos foram liberados 2.182 novos produtos, o que representa quase a metade de todos os compostos autorizados na série histórica desde o ano 2000 (Aguiar, 2022), segundo dados do próprio Ministério da Agricultura e Pecuária. O poderio desse setor no país é tamanho, que vários deles possuem princípios ativos que já foram há muito proibidos na União Europeia e nos Estados Unidos (Modelli, 2022), colocando em risco a integridade do meio ambiente e a saúde das pessoas.

Como demonstra um esclarecedor estudo recente, “o Agro não alimenta o mundo porque não alimenta nem os brasileiros, como pôde ser visto pela ótica da inflação dos preços alimentares e aumento da fome no Brasil (Mitidiero; Goldfarb, 2021, p. 34)”. Afinal, a maioria dos produtos produzidos pelo agronegócio é destinado ao mercado externo, como pode se depreender dessa análise elaborada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

"Em 1988, o Brasil possuía 24,7% de sua área ocupada pela agricultura cultivada com arroz, feijão e mandioca, base alimentar da maioria dos brasileiros. Em 2018, a área para esses alimentos caiu para 7,7% e, em 2022, a área plantada desses alimentos foi a menor desde 1977. Ao mesmo tempo, o cultivo de soja, que – com exceção ao óleo transgênico, consumido por grande parte da população – não compõe a base alimentar brasileira, teve sua área plantada ampliada para cerca de 76 milhões de hectares. No mesmo período, o arroz teve em área cultivada pouco mais de 1,6 milhão de hectares. E ainda é importante lembrar que, mesmo com recordes na produção de soja, o óleo dessa leguminosa subiu 104% no mesmo período. Por que essa aparente contradição?" (Cimi, 2023, p. 4). 

Um dos maiores intelectuais do país e grande estudioso da questão agrária foi o político, médico, geógrafo e sociólogo Josué de Castro (1908-1973), que se debruçou sobre a complexidade da fome em duas magistrais obras que marcaram o pensamento nacional e internacional, Geografia da fome (1946) e Geopolítica da fome (1951). Adotando uma perspectiva ecológica, rompeu com uma redutora visão economicista, considerando a:

"(...) fome como resultado da exploração econômica; fome como produto da dominação política; fome como consequência da injustiça; fome como dependência, fome física, fome espiritual, fome como alienação; fome como sede de lutar" (Castro, 1984 apud Fernandes, 2007, p. 12).

Propôs dois importantes conceitos, a fome epidêmica e a fome endêmica. O primeiro se refere à fome mais evidente, pois é total e aniquiladora. Ao passo que o segundo tipo de fome compreende um problema parcial, mascarado e estrutural, do qual se sofre lenta e permanentemente. Constata que se está diante do obstáculo trazido pela cerca e não pela seca. Para enfrentá-lo é preciso lucidez e coragem, ademais, se configurou ao longo da história um tema quase sempre evitado e relativizado. Assim indicou o cientista pernambucano:

O tipo de reforma que julgamos um imperativo da hora presente não é um simples expediente de desapropriação e redistribuição de terra para atender às aspirações dos sem terra. Processo simplista que não traz solução real aos problemas da economia agrária. Concebemos a reforma agrária como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas, entre os que detêm a propriedade agrícola e os que trabalham nas atividades rurais. Traduz, pois, a reforma agrária uma aspiração de que se realizem, através de um estatuto legal, as necessárias limitações à exploração da propriedade agrária, de forma a tornar seu rendimento mais elevado e principalmente melhor distribuído em benefício de toda a coletividade rural (Castro, 1984 apud Fernandes, 2007, p. 15).

Os Povos Indígenas e os direitos da natureza

Atacar a fome endêmica que assola o país passa pela imprescindível reforma agrária, por tanto tempo ignorada pelos governantes de plantão. Uma reforma que reconsidere o modelo de desenvolvimento econômico e as relações de produção a partir da terra, que rompa com qualquer visão utilitarista. Além dos pequenos agricultores sem-terra, dos posseiros, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais, os Povos Indígenas devem desempenhar um papel fundamental na formulação e implementação desse novo paradigma.

O conhecimento ancestral dos povos originários, cultivado ao longo de milênios em uma relação harmônica com a terra, tem muito a contribuir no despertar de uma ética que seja ecocêntrica. Suas cosmovisões e espiritualidades são um caminho para ensinar o mundo ocidental pós-moderno a não entrar em irreversível colapso. Afinal, como bem alertou o Papa Francisco, é preciso recordar que “tudo está interligado”, pois se está diante de uma mesma crise, indissociavelmente ecológica e social.

“LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor”, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que “geme e sofre as dores do parto” (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos" (Papa Francisco, 2015).

Apesar de representarem somente 5% da população mundial, os Povos Indígenas são responsáveis pela preservação de 80% da biodiversidade de todo o planeta, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, 2019). Sua agricultura de subsistência cultivada ao longo de milhares de anos nos mais diversos ambientes, sem o uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas, contribui para a manutenção de espécies crioulas resistentes às adversidades climáticas. Seus modos de se compreenderem e se relacionarem com a Natureza têm muito a ensinar à civilização tecnocientífica do século XXI.

Assim como as mães humanas, Mãe Terra é aquela dotada da inigualável função material e espiritual de prover e manter a teia da Vida, oferecendo território para o caminhar, alimento para nutrir, energia mantenedora das relações e conexões que encadeiam a teia da Vida de maneira naturalmente harmônica entre o caos e a ordem, entre viver e o morrer, que transmuta e faz o céu permanecer em pé, gerando e regenerando. (Oliveira, 2020). Nesse universo, a harmonia com a Natureza é o princípio dos princípios, a amálgama de outros princípios que seguem em estreita observação da abundância criadora da “Pachamama”, a complementariedade de opostos e do terceiro incluído que, por sua vez, são desdobráveis do princípio da relacionalidade ou reciprocidade. O paradigma da Harmonia com a Natureza, tecido a partir de uma percepção plural, multirrelacional e simbólica da vida, apoiado nos princípios de comunidade e de complementariedade de opostos, integrado pela consciência da Vida (Moraes, 2018 apud Giffoni et al., 2020, p. 23).

De acordo com estudos recentes, as Terras Indígenas já demarcadas e reconhecidas pelo Estado são muito relevantes na proteção da biodiversidade do país. Ademais, “ocupam 13,9% do território brasileiro e contêm 109,7 milhões de hectares de vegetação nativa, que correspondem a 19,5% da vegetação nativa no Brasil em 2020” (MapBiomas, 2023). Constatou-se ainda que, “nos últimos 30 anos, as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%” (MapBiomas, 2023).

Nessa medida, cumprir o disposto no art. 231 do Diploma Constitucional, que assegura a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos Povos Indígenas, traz incontáveis benefícios na manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado.

Outro estudo (Lima, 2023), liderado por Paula Prist do Ecohealth Alliance e denominado “Proteger os territórios indígenas da Amazônia brasileira reduz as partículas atmosféricas e evita os impactos e custos associados à saúde”, comprova que demarcar as terras indígenas fortalece a saúde pública. Acontece que parcela considerável da sociedade brasileira ainda não foi além dos estereótipos e visões caricatas, compreendendo tal importância.

Embora tenha representado uma significativa conquista no restabelecimento do Estado Democrático e Social de Direito, a Constituição Cidadã se encontra entre o primeiro e o segundo ciclo da “Reforma Constitucional Multiculturalista”, antes da incorporação da Convenção 169 da OIT, surgida um ano depois. Nesse sentido, o terceiro ciclo da mencionada reforma veio com as Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), em que se garantiu um “modelo de pluralismo legal igualitário, baseada no diálogo intercultural...” (Fajardo, 2009, p. 26), considerando a Natureza como sujeito de direitos. Há muito, portanto, que o Estado brasileiro precisa avançar no desenvolvimento de uma verdadeira Teoria Geral dos Direitos da Natureza:

A Teoria Geral dos Direitos da Natureza fundamenta-se no princípio da Harmonia com a Natureza, da Interdependência, da Reciprocidade, da Complementariedade e do Fazer comunitário. O princípio da Harmonia com a Natureza encontra-se previsto no art. 312 da Constituição da Bolívia, que estabelece a necessidade de um modelo de economia plural, e os processos de industrialização e exploração de recursos naturais deve por ele se orientar. O princípio da reciprocidade consiste na relação entre a natureza e os seres humanos, inclusive no sentido de renúncia a subjunção da natureza pelos seres humanos, como sendo uma mercadoria (Lacerda, 2020, p. 25).

Por outro lado, e concomitantemente, deve se reconhecer o direito prioritário do Outro, aquele que o filósofo Emmanuel Levinas descrevia como o pobre, o órfão e a viúva, mas que, seguramente, inclui os rostos tão diversos e tão fragilizados dos Povos Indígenas nesta Abya Yala.

Enquanto os direitos dos povos originários não forem respeitados na sua totalidade, garantindo em especial a integridade de seus territórios, tão cobiçados pelo capitalismo selvagem e desenfreado, qualquer caminho alternativo que busque a sobrevivência do planeta revela-se impensável. A proteção dos Povos Indígenas deve se inscrever na ordem jurídica para além do nível teórico, concretizando-se em políticas públicas a partir de suas insubstituíveis visões e lógicas próprias, rompendo com o modelo de Estado colonial, racista e excludente que ainda impera na mentalidade sociojurídico-política do país.

É, porém, essa particular condição de ser humano vulnerável que converte cada uma dessas faces presentes na realidade jurídica brasileira em detentora de direitos humanos inalienáveis. A grande descoberta de Emmanuel Levinas é a de justamente extrair da própria vulnerabilidade de Outrem o sentido de sua dignidade. O que torna o Outro digno de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados é justamente a sua condição de ser humano vulnerável, exposto à miséria e à morte. Há, assim, na própria fragilidade do Outro, no seu caráter indigente e desafortunado, uma espécie de alteza que o torna merecedor de direitos. O rosto, por isso mesmo, que oscila entre a miséria e alteza, entre a vulnerabilidade e a dignidade, é o que, desde sempre, interpela, reclama e reivindica por direitos aos quais o Outro faz jus originária e prioritariamente (Carvalho, 2021, p. 497).

É preciso, pois, recuperar as ancestralidades ainda tão vitalmente cultivadas no seio de tantas culturas originárias, ou talvez um pouco adormecidas em outras e até mesmo perdidas para alguns povos tão cruelmente perseguidos e massacrados pelos dominadores. Suas cosmovisões e espiritualidades expressam de diversas maneiras o Bem Viver, sempre em comunhão com a Mãe Terra e todos os outros seres. O desejo de acumular riqueza não faz sentido, afinal, eles formam parte dessa mesma e única Casa Comum.

Assim, urgente avançar para além de uma visão antropocêntrica utilitarista e neoliberal, assumindo um paradigma ecocêntrico que considere os Direitos da Natureza e o direito prioritário dos Povos Indígenas. Como singulares guardiões de outros modos de vida que não aqueles predominantes no mundo ocidental capitalista, seus conhecimentos e cosmovisões são essenciais para as mudanças e reconstruções necessárias à sobrevivência da Vida neste planeta.

Se forem assegurados e demarcados todos os territórios indígenas, muitos prestes a serem engolfados pelo insano capital, bem como esses povos passarem a ser realmente ouvidos na redescoberta do equilíbrio harmônico com a Casa Comum e todos os seus seres, a esperança se manterá poderosamente acesa.

Caminhos se manterão abertos e a imensa biodiversidade ainda resistente será preservada. Então, não haverá mais espaço nem sentido para a absurda fome, pois a Mãe Terra a todos pode alimentar.

Nesse novo tempo, o sonho-poema “Terra nossa, liberdade” (Casaldáliga, 1978) terá se tornado realidade e todos cantarão:

Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas Que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, Amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer a Terra, escrava e escravos os humanos! Outra é a Terra nossa, homens, todos! A humana Terra livre, irmãos! (Casaldáliga, 1978).

Referências

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