18 Julho 2024
“Aceitemos, sem rodeios, que a humanidade está numa encruzilhada. Se continuarmos no mesmo caminho, no melhor dos casos, apenas uma parte dos seus membros conseguirá sobreviver ao colapso ecológico. Para nós, aceitar esse destino é intolerável. Exigimos uma mudança de rumo, com transições que permitam, simultaneamente, aliviar os impactos do colapso que nos assola, ao mesmo tempo que reforçamos, construímos e reconstruímos outras formas de vida limitadas aos ciclos ecológicos em chave de justiça social e de democracia radical”. A reflexão é de Alberto Acosta e Enrique Viale, em artigo publicado por International Rights of Nature Tribunal, 15-07-2024. A tradução é do Cepat.
Alberto Acosta e Enrique Viale são, respectivamente, economista equatoriano e advogado ambiental argentino, juízes do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza e membros do Pacto Ecossocial Intercultural do Sul. São coautores de um livro a ser publicado proximamente sobre estes temas.
“Não há caminho para a paz; a paz é o caminho” (Gandhi).
Aceitemos, sem rodeios, que a humanidade está numa encruzilhada. Se continuarmos no mesmo caminho, no melhor dos casos, apenas uma parte dos seus membros conseguirá sobreviver ao colapso ecológico. Para nós, aceitar esse destino é intolerável. Exigimos uma mudança de rumo, com transições que permitam, simultaneamente, aliviar os impactos do colapso que nos assola, ao mesmo tempo que reforçamos, construímos e reconstruímos outras formas de vida limitadas aos ciclos ecológicos em chave de justiça social e de democracia radical.
Para isso, construamos alternativas de êxodo da atual civilização da mercadoria e do desperdício como faria Picasso, quando pintava suas grandes obras. O artista espanhol costumava sobrepor várias perspectivas diferentes da mesma imagem até criar uma pintura onde o belo e o abstrato se uniam com maestria. Reconhecendo a complexidade da tarefa, utilizemos o seu método para propor múltiplas opções – sobrepostas, temporárias e sucessivas – diante da falta de sentido criada pela civilização do capital.
Por isso, hoje mais do que nunca, acreditamos que é necessário multiplicar os esforços para caminhar em paz com a natureza em Nossa América, que é puxada por forças contrárias, algumas que incentivam cada vez mais a destruição e outras que a defendem. Na Argentina, o governo reforça o extrativismo e ameaça acabar com as leis ambientais, propondo uma caça aos ambientalistas, exacerbando a desigualdade e o conflito social sob um regime autoritário que prioriza os interesses corporativos.
No Equador, um governo de transição celebra um acordo com grandes empresas de mineração ao mesmo tempo que desencadeia ações violentas contra comunidades que defendem os seus territórios, a fim de aprofundar ainda mais a exploração dos recursos naturais. Em outros países, mesmo com governos progressistas, como no caso do Brasil e da Colômbia, a expansão do extrativismo de todos os tipos continua. Enquanto isso, a resistência se multiplica por toda parte para proteger os territórios, como espaços de vida.
Diante deste cenário conflituoso, comemoramos o empenho do governo colombiano que prioriza a paz com a natureza como tema central na Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade – COP 16, que será realizada no final do ano em Cali, Colômbia.
A defesa e proteção dos territórios é fundamental para vivermos juntos em paz. A destruição da natureza afeta as próprias bases da existência e agrava os conflitos sociais. Na prática, para superar este caminho de autodestruição, devemos promover a validade combinada dos Direitos Humanos e dos Direitos da Natureza: trata-se de uma somatória de direitos existenciais para garantir uma vida digna para seres humanos e não humanos.
Como ponto de partida, aceitemos que não pode haver nenhum direito que permita ou encoraje a exploração impiedosa da Mãe Terra, muito menos a destrua, mas apenas um direito à coexistência ecologicamente sustentável. As leis humanas e as ações dos humanos, então, devem estar harmonizadas e em sintonia com as leis da natureza. Nesta perspectiva, a validade destes direitos existenciais responde às condições materiais que permitem a sua cristalização e não a um mero reconhecimento formal no campo jurídico. A sua projeção, portanto, deve superar perspectivas que entendem os direitos como compartimentos estanques, uma vez que a sua incidência deve ser múltipla, diversa e transdisciplinar.
A tarefa parece simples, mas é complexa. Sabemos muito bem que o direito é um terreno em disputa. O desafio é superar o divórcio entre natureza e humanidade. Devemos promover uma espécie de reencontro, algo como reatar o nó górdio da vida rompido pela força de uma concepção predatória e insustentável de civilização. Ou seja, trata-se de superar a divisão ideológica entre a natureza e as culturas. Ao combinar ambos, até a política assume uma relevância renovada.
E este reconhecimento nos leva a verificar como os humanos, especialmente por estarem organizados em torno da acumulação do capital, estão exercendo múltiplas violências, ou seja, guerras contra a Terra. Cabe a nós, então, superar tanta aberração.
É urgente acabar com as guerras, sejam elas de baixa, média ou alta intensidade. Guerras que causam danos de forma gradual ou violenta, muitas vezes com impactos profundos e irreversíveis na natureza. São ações bélicas derivadas de relações socioambientais que emanam da ganância do capital, bem como de estruturas assimétricas, opressivas e hierárquicas, como o patriarcado.
Neste ambiente de guerra, a perda de biodiversidade é uma constante. A fragmentação, a degradação e até mesmo o desaparecimento de selvas, florestas, rios, charnecos, áreas úmidas, manguezais, salares e outros ecossistemas, que afetam as suas funções ecossistêmicas, estão na ordem do dia. Consequentemente, as espécies também desaparecem rapidamente. Os incêndios devastadores e as gigantescas inundações alimentados pelas mudanças climáticas, a desertificação das terras devido às monoculturas, a pulverização de agroquímicos, a extração de petróleo, a megamineração ou as monoculturas, devastam territórios inteiros. A pegada ecológica da espécie humana – desigualmente distribuída – excede a capacidade biológica da Terra. E a pobreza, assim como a crescente desigualdade social e a destruição de comunidades, também estão piorando em consequência destas guerras suicidas desencadeadas pela ganância do capital.
Com justa razão, na quinta sessão da Assembleia das Nações Unidas para o Ambiente, realizada em 2021, o Secretário-Geral, António Guterres, afirmou que: “Fazer as pazes com a natureza requer a compreensão de que enfrentamos uma tripla crise que entrelaça a mudança climática, a poluição e a perda de biodiversidade; trata-se de uma guerra suicida contra a natureza, pois sem ela a humanidade não pode existir no planeta”.
Para promover essas pazes que Guterres reclama, temos que começar por compreender que “o modo capitalista vive sufocando a vida e o mundo da vida. Este processo foi levado a tal extremo que a reprodução do capital só pode ocorrer na medida em que destrói tanto os seres humanos como a natureza”, nas palavras do filósofo equatoriano Bolívar Echeverria.
Sejamos realistas: a desconexão dos seres humanos com a natureza causou uma guerra encarniçada contra ela. Não entendemos plenamente que a natureza tem os seus próprios ciclos, que não podem ser afetados pelos humanos, sem que aquela reaja e se rebele. Compreendamos que a crescente mercantilização e coisificação da vida em todos os seus aspectos configura um caminho minado que leva inexoravelmente ao terricídio.
Fazer as pazes com a Terra e a partir da Terra implica, então, contar com agendas aprovadas pelos povos para a ação com vistas a superar os dispositivos de morte prevalecentes. Para conseguir isso, precisamos identificar com clareza todas as guerras que agridem a Terra, nas suas múltiplas frentes e formas.
Temos como eixo civilizacional um sistema econômico que sistematicamente explora e contamina a nossa base de existência. O produtivismo e o consumismo bombardeiam impiedosamente a Mãe Terra. O extrativismo representa invasões brutais de múltiplos territórios. As monoculturas e as falsas soluções, como os mercados de carbono ou as sementes geneticamente modificadas, minam brutalmente a biodiversidade. A homogeneização do consumo acelera os ritmos de destruição com enormes impactos ambientais devido ao transporte de alimentos a longas distâncias, para citar apenas um ponto crítico.
A tudo isto somam-se as conflagrações propriamente ditas: entre os povos ou contra eles, como o genocídio desencadeado pelo Estado sionista na Palestina, que arrasa não só os humanos, mas a própria natureza.
Ao mesmo tempo, temos de enfrentar aquelas guerras camufladas. Estamos nos referindo às formas de perceber, interpretar e vivenciar a natureza, que se baseiam, especificamente, naquele pressuposto civilizacional que considera o ser humano fora e inclusive acima dela para dominá-la. Este posicionamento supõe um impulso bélico imerso nas violências epistêmicas e ontológicas que acabam incentivando as mudanças climáticas, a poluição e a perda de biodiversidade, bem como todo tipo de depredação da natureza, sempre em nome do “progresso” e do “desenvolvimento”. E tudo isso com uma reverência perversa ao potencial da ciência e da tecnologia, que em muitos casos também funcionam como armas de destruição ambiental.
Essas visões levam à manutenção de um universo cultural, que, na essência, nos impõe a ideia de que só existe uma maneira de estar no mundo. Ao negar o pluriverso, invisibiliza-se, despreza-se, violenta-se ou inclusive elimina-se as diversidades biológicas, bem como as diversidades culturais existentes. Daí surge a padronização do conceito de natureza e com isso fecha-se inclusive a porta para outras visões, muitas delas portadoras de poderosos elementos de transformação. Por isso talvez seja melhor falar da Terra, da Terra em chave cósmica, do que simplesmente da natureza, conceito que pode ter leituras diferentes.
Ou seja, devemos assumir todos estes desafios sem cair na armadilha de simplesmente negociar limites ou remendos para continuar a tolerar a poluição e a destruição dos alicerces da própria vida, como tem sido feito em todas as COP até agora. Este absurdo pode repetir-se em Cali, por melhores que sejam as intenções do governo colombiano, pois sabemos muito bem que no âmbito das Nações Unidas prevalece a vontade dos governos e das corporações, e não necessariamente a vontade dos povos.
Na perspectiva da paz com a Terra devemos aceitar e respeitar a diversidade em todos os âmbitos: vidas, culturas, pensamentos e, claro, biodiversidade. Ou seja, a pluralidade de formas de estar com a natureza e de ser natureza, uma vez que o ser humano é natureza. Esta aceitação abre-nos a porta para compreendermos as diversas formas de assumi-la como Pacha Mama ou Mãe Terra, assim como muitas outras formas de nos relacionarmos com a natureza advindas da indigeneidade: como a entendeu o nosso amigo Aníbal Quijano. Aqui há até algumas leituras que poderíamos entender como derivadas da própria Modernidade, mas que, na essência, também apontam para a sua superação.
Todas essas abordagens não fecham os horizontes a visões parciais, mas, pelo contrário, abrem-nas promovendo outras visões de mundo, incentivando o pluriverso, ou seja, “um mundo onde cabem muitos mundos”, no qual possam coexistir e prosperar na dignidade e no respeito mútuo por todos os seres humanos e não humanos. Não mais “um mundo desenvolvido” que vive à custa de outros mundos, como acontece tão cruelmente no nosso tempo.
Dito isto, a paz na Terra não implica apenas o silêncio das armas. Exige igualmente a interrupção de todos os processos que geram danos irreversíveis ao ambiente – do qual fazemos parte –, danos que afetam as comunidades locais e a humanidade, danos que muitas vezes constituem crimes de ecocídio. Esta tarefa exige a construção de mundos apoiados na reciprocidade, na relacionalidade, na complementaridade, na correspondência, na ressonância, na solidariedade...
Ao mesmo tempo que bloqueamos as ações de destruição, precisamos encorajar aquelas de construção e reconstrução de outras formas de vida social e ecologicamente sustentáveis. Tudo isto exige uma virada copernicana em todos os níveis para deixar para trás a civilização atual, que deve ser estruturalmente superada. “Devemos virar o mundo de cabeça para baixo”, porque a Terra “só poderá ser curada com a inversão dos valores estabelecidos e a revolução das prioridades econômicas”, conclui a filósofa ecofeminista Carolyn Merchant.
Atualmente, multiplicam-se as ações alternativas em diversas áreas e territórios. Se prestarmos um pouco de atenção e – falando figurativamente – ficarmos em silêncio, poderemos ouvir o futuro respirar. São inúmeros os processos sintonizados com o pluriverso, bem como propostas de mudanças estruturais. Neste ponto, visões, valores, princípios, experiências e práticas como as da boa convivência provenientes das culturas originárias, sem idealizá-las ao nível inútil dos modelos ou essencializá-las desconhecendo as suas limitações, representam oportunidades para promover mudanças profundas.
Fazer as pazes com a Terra também significa reconhecer a sua agência e a rede de relações socioculturais nela incorporadas. Trata-se de reparar territórios contaminados e desmantelar infraestruturas destrutivas, bem como de mudar sistemas de produção e práticas de consumo predatórios. Isto nos convida a apelar à imaginação e à audácia. Precisamos passar, nas palavras do grande teólogo Leonardo Boff, “de senhores e donos para irmãos e irmãs entre nós e com todas as criaturas. Esta nova ótica implica uma nova ética de responsabilidade partilhada, de cuidado e de sinergia com a Terra”.
E neste contexto, os Direitos da Natureza – justiça ecológica –, caminhando de mãos dadas com os Direitos Humanos – justiça social –, dão-nos pistas para enfrentar o colapso ecossocial, bem como para promover e construir todas as alternativas que garantam uma vida digna para todos os seres da Terra. Ou seja, estes direitos existenciais servem para reparar e restaurar, assim como para prevenir, ao mesmo tempo que lançam as bases para a construção de uma justiça existencial global.
Se aceitarmos que é necessária uma nova ética para reorganizar a vida no planeta, temos que aceitar que todos os seres vivos têm o mesmo valor ontológico, o que não implica que todos sejam idênticos. Esta perspectiva articula a noção de “igualdade biocêntrica”, na qual, segundo Eduardo Gudynas, todas as espécies vivas têm a mesma importância e, portanto, merecem ser protegidas. E neste esforço precisamos criar as condições que garantam o respeito pelas pessoas e comunidades que protegem os seus territórios, o que é na verdade uma forma de autodefesa da própria Terra.
Definitivamente, é hora de compreender que a natureza é a condição básica da nossa existência e, portanto, que é também a base dos direitos coletivos e individuais da liberdade. Assim como a liberdade individual só pode ser exercida no âmbito dos direitos de outros seres humanos, a liberdade individual e coletiva só pode ser exercida no âmbito dos Direitos da Natureza. Se pensarmos nos nossos netos e netas, ou seja, nas gerações futuras, podemos muito bem concluir que a sua existência e liberdade dependem do respeito pela natureza. O jurista alemão Klaus Bosselmann observa bem que “sem os Direitos da Natureza, a liberdade é uma ilusão”.
É igualmente urgente desmantelar as estruturas patriarcais e coloniais que causam e reproduzem múltiplas violências. Será necessário efetivar a cobrança das dívidas coloniais e ecológicas, em que as nações que se enriqueceram pela exploração de outros povos e territórios são as devedoras. Da mesma forma, o sistema econômico global terá de ser desmantelado, com todas as suas ferramentas de dominação, como a dívida externa, que constituem máquinas depredadoras da vida.
Nessa "ralação" haverá avanços e retrocessos. Mas, na medida em que se consegue uma participação ampla e diversificada de povos, grupos, organizações e pessoas, em nenhum momento podemos perder a esperança, que não assumimos simplesmente como a crença de que algo vai inevitavelmente correr bem, pois preferimos assumi-lo com a certeza de que o que fazemos tem sentido, independentemente do resultado.
Se nós, humanos, não restabelecermos a paz com a Terra, não haverá possibilidade de paz para nós na Terra, que compreensivelmente se rebela contra tanta destruição que estamos provocando.
Temos a certeza de que, neste reencontro harmonioso e amoroso com a Mãe Terra, contaremos com a sua enorme capacidade de resiliência e recuperação, pois trata-se de uma verdadeira Mãe, que está do nosso lado.
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Caminhar em paz com a Terra. Requisito para a paz entre os humanos. Artigo de Alberto Acosta e Enrique Viale - Instituto Humanitas Unisinos - IHU