06 Abril 2024
“Do ponto de vista regional, aqui se entende que a reterritorialização em vista da globalização é a condição mais grave que se enfrenta. Muitos dos problemas identificados como graves, como o desmatamento ou a exploração mineral de ouro, sem dúvida o são. Mas em quase todos os lugares são consequência dessa condição. O fato de prevalecerem as reações aos sintomas, mas sem enfrentar as razões subjacentes, não recebe a atenção necessária e é urgente torná-lo evidente. O fato é que as alternativas, para serem verdadeiramente eficazes, devem lidar com as raízes dos problemas, como no caso da condição subordinada”. A reflexão é de Eduardo Gudynas, pesquisador do Centro Boliviano de Informação e Documentação (CEDIB).
A tradução é do Cepat.
Este texto avança alguns resultados do autor sobre alternativas e transições como pesquisador do Centro Boliviano de Informação e Documentação (CEDIB), com base na versão publicada pelo jornal Desde Abajo (Bogotá).
A destacada relevância da Amazônia, longe de diminuir, não para de aumentar. Esta gigantesca região, que abrange mais de sete milhões de quilômetros quadrados e que abarca territórios de oito países e uma colônia francesa, abriga ambientes de grande importância ecológica mas também econômica frente à demanda por recursos naturais. Ali se sobrepõem problemas sociais e ambientais que têm sido denunciados repetidamente, e que vão da pobreza ao desmatamento, da invasão de empresas mineradoras e petrolíferas à violência.
Estas e outras questões serão debatidas no próximo Fórum Social Pan-Amazônico, que acontecerá na Bolívia em junho próximo, e também na reunião dos governos no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica, na Colômbia, em outubro. Portanto, é oportuno repassar alguns aspectos da atual situação na região sob a perspectiva das alternativas ao desenvolvimento e possíveis transições para alcançá-las. Neste primeiro artigo a ênfase é colocada nas posturas dos governos.
Os governos dos países amazônicos historicamente tiveram responsabilidades diretas nas diversas crises que ocorreram na região, o que tem sido denunciado durante anos. Mas, diferentemente de outros momentos, atualmente, um desses governos mantém um discurso diferente. Tem a pretensão de abandonar o extrativismo em hidrocarbonetos e carvão, propõe uma abordagem mais ampla do problema amazônico (associando fatores ecológicos e econômicos) e está aberto a iniciar transições (com foco nos combustíveis fósseis). Esse é o caso da administração de Gustavo Petro na Colômbia. Pelo menos no passado recente, nenhum governo amazônico acenou com semelhante discurso, e por isso é bem-vindo.
Mas como já foi alertado diversas vezes, existem, por um lado, as intenções e os discursos presidenciais, mas, por outro lado, nem sempre há clareza nas ideias que dão sustentação a essas aspirações, nas ações que são necessárias, bem como na capacidade de atores políticos e técnicos para concretizá-las, sem esquecer que as ambições da população são muito mais radicais (1).
Essas aspirações colombianas devem dialogar com as de todos os outros países amazônicos. Nessa frente, podemos diferenciar, por um lado, a posição do Brasil, onde há atores que entendem a urgência de transições e alternativas, e, por outro lado, a dos demais Estados, que persistem em minimizar ou negligenciar a Amazônia.
No caso brasileiro, a presidência de Lula da Silva abriga diferentes tendências. Isto não deveria surpreender porque se trata de um governo de coalizão que conta com o apoio de setores partidários do centro e até da centro-direita, que deve negociar com os chamados “bolsonaristas”, tanto nos governos estaduais como no Congresso. Também não se pode esquecer que, na sua campanha eleitoral, Lula rejeitou o apelo lançado por Petro para uma coordenação pós-petróleo entre a Colômbia, o Brasil e o México. Em mais de uma ocasião, como candidato e depois como presidente, Lula se pronunciou a favor da continuidade da exploração de hidrocarbonetos, e sempre apostou no “desenvolvimento” da Amazônia.
Contudo, nesse governo merece destaque a presença de Marina Silva, novamente à frente do Ministério do Ambiente e Mudanças Climáticas. Ela é amazônica (originária do Acre), conhece a situação da região e não se pode negar a sua experiência, preparo e vocação. A Marina não tem um discurso que proponha o abandono do extrativismo dos combustíveis fósseis, mas deixou claro que entende essa questão. Ao mesmo tempo, seu ministério apoiou, por exemplo, a decisão de impedir novas explorações de petróleo na foz do Rio Amazonas devido aos seus impactos ambientais, o que gerou uma polêmica com o presidente Lula.
Além disso, a ministra Silva de alguma forma reconheceu perante o próprio Petro, numa mesa redonda no recente Fórum Econômico de Davos, que o seu governo está discutindo as implicações de uma moratória do petróleo na Amazônia, mas que isto envolve questões que vão além das considerações ambientais. Também não é menor o papel de Sônia Guajajara, a nova ministra dos Povos Indígenas, com posições que serviriam para explorar alternativas.
Em outros temas há mais coincidências. Por exemplo, a Colômbia e o Brasil interromperam os planos de militarização da gestão territorial amazônica lançados nos governos de Duque e Bolsonaro. Também concordam com a necessidade de melhorar a gestão ambiental na Amazônia e, especialmente, de estancar o desmatamento. Mas de qualquer forma, Brasília não apoia os discursos de transição que vêm de Bogotá.
Enquanto isso, os governos do Equador, Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana e Suriname, embora não tenham posições idênticas, podem ser agrupados num conjunto que carece de planos e gestão eficazes para a Amazônia, que não consegue deter o desmatamento ou controlar os incêndios, tolera a contaminação dos solos e das águas e permite a disseminação do extrativismo. Estes países não discutem alternativas ao desenvolvimento e até as consideram perigosas porque são concebidas como obstáculos ao lucro econômico.
Algumas diferenças nesse grupo devem ser apontadas. No Equador, a atual administração de Daniel Noboa deve lidar com uma situação que não se repete em nenhum outro país, já que aí, em 2023, foi bem-sucedida uma consulta cidadã que impede a exploração petrolífera na região amazônica de Yasuní. Apesar do apoio avassalador de quase 60% dos votos, há sinais que mostram que a administração Noboa tentará adiá-la ou desrespeitá-la. É difícil dizer como esta contradição irá avançar, uma vez que o país está mergulhado em uma onda de violência e escândalos de corrupção que dominam a atenção da população.
No caso da Bolívia, na década passada o governo manteve um discurso enérgico sobre a proteção da Mãe Terra, a plurinacionalidade e a indigeneidade, mas, como se sabe, na sua gestão optou por mais extrativismo, gerando múltiplos conflitos com as comunidades locais e organizações de base. O avanço do extrativismo em hidrocarbonetos e minerais foi tolerado e até apoiado, inclusive a mineração de ouro, mesmo em áreas protegidas, e houve crises graves como as dos incêndios florestais de 2019. A persistente crise política nesse país, agora alimentada por uma fratura dentro do governante Movimento ao Socialismo (MAS), faz com que na prática continue avançando, por exemplo, na exploração mineral na sua região amazônica, invadindo inclusive territórios comunitários ou nos descumprimentos na garantia de medidas de conservação nas áreas protegidas.
A situação no Peru é de certo modo similar. O governo anterior, liderado por Pedro Castillo, respondia a um plano extrativista e hostil à participação cidadã; a atual presidenta Dina Boluarte caiu em mais repressão e autoritarismo. A consequência é que os problemas amazônicos persistem, e até pioram devido à falta de ação do governo. Como se não bastasse, envolve-se em disputas políticas de menor importância, como a oposição presidencial à nomeação de autoridades colombianas na Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).
Finalmente, na Venezuela diferentes analistas e líderes cidadãos denunciaram a proliferação de múltiplas atividades na Amazônia, à semelhança do que acontece em outros países. A particularidade é que a administração de Nicolás Maduro destacou os militares, tanto na repressão e no deslocamento de pessoas, como na condução do extrativismo formal. O seu apetite extrativista fica evidente no conflito entre este país e o seu vizinho, a Guiana, na disputa das concessões petrolíferas marinhas.
Em resumo, entre estes seis governos podem haver apelos genéricos, às vezes com senso de publicidade ou oportunismo, que invocam a Amazônia. Mas faltam-lhes planos e ações concretos para pôr fim aos problemas subjacentes, como a destruição do ambiente, a pobreza e a violência, e os seus esforços referentes a emergências como os incêndios florestais ou a invasão da mineração de ouro são insuficientes. Nenhum destes governos se alinhará com os apelos de Bogotá para uma transição pós-fóssil, e até manterão distância de muitas posições brasileiras (como a de realmente tentar controlar o desmatamento, ao passo que há medidas efetivas para consegui-lo, por exemplo na Bolívia e no Peru). Não apenas isso, senão que sequer estão dispostos a explorar as possibilidades de uma transição.
Há abundante informação sobre os problemas amazônicos, desde alertas sobre a perda de biodiversidade, até a desigualdade e a pobreza, e especialmente aquela que afeta os povos indígenas (2). Não é possível aqui abordar detalhadamente todas estas frentes, mas uma análise da conjuntura deverá alertar-nos para um processo nem sempre evidente e no qual os governos têm responsabilidades diretas.
Na verdade, na Amazônia persistem processos de radicais e substantivas transformações territoriais, que estão se agravando de várias maneiras. Nos antigos territórios, sejam aqueles que correspondem a povos indígenas ou comunidades camponesas, ou aqueles que se devem a arranjos administrativos como municípios ou departamentos, novas territorialidades são impostas. Estes são extrovertidos, no sentido de estarem associados e dependentes de agentes, mecanismos e fluxos globais. Os seus exemplos mais dramáticos são a disseminação de enclaves de empreendimentos mineiros, petrolíferos ou agrícolas.
Os territórios pré-existentes tinham diferentes ligações com as áreas que os rodeavam, ao passo que estes novos, precisamente por serem enclaves, estão desconectados ou fracamente vinculados com os espaços vizinhos; alguns deles estão até cercados e protegidos por forças de segurança. Estes enclaves recebem insumos do exterior e os recursos naturais que extraem são exportados para outros continentes; isto depende frequentemente de empresas transnacionais, embora em algumas áreas ou países estas possam ser estatais ou associadas a empresas nacionais.
Esta nova territorialização responde a agentes e dinâmicas externas à Amazônia, que ultrapassam inclusive as capacidades regulatórias dos próprios governos. Incidem sobre eles os aumentos e quedas dos preços das matérias-primas, a disponibilidade de capital de investimento, os obstáculos ou aberturas comerciais e o apetite do consumidor de países como a China ou das nações industrializadas. Por exemplo, o recorde histórico do aumento do preço internacional de referência do ouro, acima dos dois mil dólares por onça, o que aconteceu em março de 2024, é um fator que fatalmente desencadeará ainda mais esse tipo de mineração na Amazônia. Os governos locais ou nacionais não controlam este tipo de dinâmica.
Do ponto de vista das comunidades locais, esses enclaves significam benefícios econômicos e trabalhistas irrisórios, e se perdem práticas ancestrais como a pesca, a coleta, a caça e a agricultura adaptadas a estes ecossistemas tropicais. É também uma territorialização imposta: ocupa os espaços, ignorando os territórios anteriormente existentes e os seus habitantes, e além disso, bloqueia-se a capacidade destas comunidades para influenciá-los, controlá-los ou rejeitá-los. Esta imposição pode seguir vias supostamente legais, como ocorre com as concessões mineiras ou petrolíferas que são decididas nas capitais dos países amazônicos. Mas também pode ser ilegal, onde o exemplo mais alarmante ocorre com a expansão da mineração aluvial de ouro, que invade os territórios de muitas comunidades e os ocupam à força.
Dessa forma, a reterritorialização extrovertida cria o que poderia ser descrito como “buracos” nos espaços amazônicos, uma vez que, ao extrair ou aspirar seus recursos, esses enclaves destroem a continuidade de seus ecossistemas. São vazios tanto sociais como ambientais, pois podem constituir passivos ambientais, como ocorre com locais desmatados e contaminados com mercúrio, que dificilmente podem ser restaurados, ou por comunidades deslocadas ou com seus membros dispersos. A sequência de paisagens e ecossistemas é interrompida por enclaves, podendo estes até convergir em grandes superfícies, como é o caso do arco do desmatamento amazônico que avança do sul.
Nessa dinâmica, é como se a Amazônia fosse realmente administrada a partir dos centros financeiros e comerciais. Os governos nacionais não têm capacidade para modificar ou amortecer estes fatores, uma vez que prevalecem os mercados internacionais e a globalização. Mas, apesar de tudo, os governos e os seus grupos de apoio empresarial apoiam este tipo de inserção internacional e, portanto, os Estados acabam por ser funcionais a estas situações. É assim que as regiões amazônicas são condenadas e subordinadas a essas dinâmicas globais.
É verdade que diferentes comunidades locais têm resistido a estas imposições de territórios que saqueiam os seus ambientes, e inclusive eclodiram conflitos sociais de intensidade variável. Mas sabe-se que as respostas governamentais predominantes têm sido apoiar a permanência dos enclaves e não hesitaram em reprimir as comunidades locais e perseguir as organizações de cidadãos.
A importância desta questão reside no fato de os governos não perceberem esta dinâmica e, se o fizerem, não a consideram um assunto sério. Embora geralmente minimizem as questões amazônicas, quando as abordam, concentram-se em problemas pontuais ou locais, como o desmatamento de um local, incêndios que saíram do controle ou uma revolta indígena. Mas parecem não compreender que todos esses são sintomas de uma doença mais profunda, que consiste nesta subordinação à globalização como fornecedores de recursos naturais. Essa é uma condição sofrida em cada país, mas que se articula e se fortalece em toda a bacia amazônica como um todo.
Nas concepções políticas mais simplistas, não faltaram atores políticos ou empresariais que consideram que a Amazônia está vazia ou quase vazia, que deve ser “civilizada” e que, para isso, os seus ativos naturais devem ser explorados. Esperam multiplicar as exportações na esperança de obter dinheiro para financiar as despesas do Estado, cobrir os déficits orçamentários e pagar a dívida externa. Nessa perspectiva, esta territorialização extrovertida é bem-vinda e não hesitaram em promovê-la.
Fica, deste modo, exposto um vazio dramático. Essa reterritorialização amazônica é um dos problemas mais graves e complexos que atinge toda a região amazônica. No entanto, não somente a questão não é reconhecida, como qualquer ação relativa à mesma requer o estabelecimento de estratégias e ações coordenadas entre os governos. Isto faz com que seja fundamental, do ponto de vista das transições centradas em alternativas ao desenvolvimento, recuperar a autonomia diante da globalização.
Ao contrário do que acontece com os governos, em alguns setores da sociedade civil existem múltiplas propostas alternativas, originárias da própria região, e que têm um enorme potencial. Embora uma análise da situação das expressões cidadãs exija outro artigo, alguns exemplos devem ser mencionados. Entre eles, o reconhecimento dos direitos da Natureza aprovados no Equador, ou a aplicação de moratórias, como a focada na região de Yasuní, para empreendimentos que tenham impactos profundos, que sejam considerados inaceitáveis ou intoleráveis, e que não tem resolução tecnológica. O mesmo acontece com a experiência peruana na organização de uma plataforma cidadã que exige alternativas ao extrativismo. Estas e outras ideias mostram propósitos e orientações nas alternativas e, tendo isso claro, é possível desenhar estratégias de transição para atingir tais fins. É importante ter esta condição em mente, pois atualmente, à medida que prolifera o uso do termo transições, nem sempre é claro para onde se quer chegar, o que por sua vez é afetado por imprecisões e confusões conceituais (3).
Tendo estas condições em mente, é possível proporcionar algumas reflexões sobre as alternativas. Do ponto de vista regional, aqui se entende que a reterritorialização em vista da globalização é a condição mais grave que se enfrenta. Muitos dos problemas identificados como graves, como o desmatamento ou a exploração mineral de ouro, sem dúvida o são. Mas em quase todos os lugares são consequência dessa condição. O fato de prevalecerem as reações aos sintomas, mas sem enfrentar as razões subjacentes, não recebe a atenção necessária e é urgente torná-lo evidente. O fato é que as alternativas, para serem verdadeiramente eficazes, devem lidar com as raízes dos problemas, como no caso da condição subordinada.
Tendo isto em mente, a retórica do atual governo colombiano oferece opções para discutir alternativas a partir de outras posições. É verdade que suas ações ainda são insuficientes para solucionar os problemas, mas servem de base de apoio para que a sociedade civil possa agregar suas próprias contribuições, com planos mais precisos e organizados, como os de garantir os direitos da Natureza em toda a Amazônia.
Por fim, deve-se garantir a identificação mais adequada dos princípios e, a partir daí, articular as alternativas de mudança e as formas de alcançá-las. Por isso, é necessário não ficar encapsulado nos modelos de transições organizados em outros continentes, com realidades muito diferentes das da Amazônia, para atender seriamente ao que foi pensado e ensaiado na própria Amazônia. Também não se pode repetir a autolimitação por obediência ou por simpatias políticas. As alternativas precisam somar em independência e rigor crítico.
1. Transiciones: una necesaria intención de cambio atrapada en una maraña de confusiones, E. Gudynas, Desde Abajo No 299, Bogotá, febrero 2023 - https://www.desdeabajo.info/ediciones/edicion-no299/item/transiciones-una-necesaria-intencion-de-cambio-atrapada-en-una-marana-de-confusiones.html
2. Ver, por exemplo, os relatórios da RAISG (Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada), em https://www.raisg.org/es
3. Sobre as diferentes alternativas e suas implicações, ver Desarrollos alternativos. Alternativas al desarrollo. Una guía ante las opciones de cambio, E. Gudynas, Ediciones desde Abajo, 2023 - https://libreria.dondeabajo.info/index.php?route=product/product&product_id=358
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Amazônia: imposição de territórios globalizados e conjuntura política. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU